Para fins de comprovação da qualificação técnica de proponentes em licitações, permite, a lei, a exigência de atestados que comprovem a experiência anterior, cujo regramento editalício deverá atender ao disposto no art. 67 da Nova Lei de Licitações.
Por mais que o referido artigo, através dos seus incisos e parágrafos, tenha tratado o assunto com riqueza de detalhes, o legislador não positivou, de modo a garantir segurança jurídica, a possibilidade da participação de uma empresa em licitação, por meio de matriz ou filial, apresentando um atestado que não seja emitido pelo estabelecimento que efetivamente participa do certame, sendo esse o nosso objetivo. Melhor explicando, trataremos abaixo da possibilidade de um estabelecimento matriz participar de uma licitação apresentando um atestado emitido em nome de uma filial e vice-versa, ou seja, a possibilidade de um estabelecimento filial participar do certame apresentando um atestado em nome da matriz.
Esclareça-se que o tema é tão pacificado que, em poucos parágrafos, apresentaremos o referido assunto, utilizando, como maior parte dos nossos argumentos, trechos de acórdãos prolatados por entidades de controle, como o Poder Judiciário e Tribunais de Contas.
Pois bem. Inicialmente, temos a esclarecer, que: “A sociedade empresária pode ser titular de mais de um estabelecimento. Neste caso, aquele que ela considerar mais importante será a sede, e o outro ou outros filiais ou sucursais (para as instituições financeiras, usa-se a expressão ‘agência’, para mencionar os diversos estabelecimentos). Em relação a cada um dos seus estabelecimentos, a sociedade empresária exerce os mesmos direitos, sendo irrelevante a distinção entre sede e filiais, para o direito comercial” (cf. Fábio Ulhoa Coelho, in Curso de Direito Comercial, vol. 1, 15ª ed., Saraiva, São Paulo, 2011, p. 114).
A criação de mais de um estabelecimento comercial pela sociedade relaciona-se à sua estratégia comercial, de modo a permitir a melhor prestação de serviços ou fornecimento em outra localidade, sendo transferido do primeiro, da matriz ou de uma filial para o outro ou demais a expertise da empresa ou capacidade operacional, fato que permite uma uniformidade de atuação, performance, qualidade, entre as unidades. Assim ocorrendo, poderá a direção da pessoa jurídica decidir qual será o estabelecimento matriz ou filial, sendo eleita, conforme ensina o professor Fábio Ulhoa, aquela que a sociedade reputar a mais importante.
Posto isto, “9. Conceitua-se matriz aquele estabelecimento chamado sede ou principal que tem a primazia na direção e ao qual estão subordinados todos os demais, chamados de filiais, sucursais ou agências” (TCU – Acórdão n.º 3.056/08 – Plenário).
Por sua vez, “10. Como filial conceitua-se aquele estabelecimento que representa a direção principal, contudo, sem alçada de poder deliberativo e/ou executivo. A filial pratica atos que têm validade no campo jurídico e obrigam a organização como um todo, porque este estabelecimento possui poder de representação ou mandato da matriz; por esta razão, a filial deve adotar a mesma firma ou denominação do estabelecimento principal. Sua criação e extinção somente são realizadas e efetivadas através de alteração contratual ou estatutária, registradas no Órgão competente” (TCU – Acórdão n.º 3.056/08 – Plenário).
Resta claro, portanto, que os estabelecimentos matriz e filial fazem parte da mesma pessoa jurídica, incidindo, aqui, o princípio da unicidade jurídica. Sobre tal questão, o eg. STJ já salientou que: “1. A filial é uma espécie de estabelecimento empresarial, que faz parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica, não ostenta personalidade jurídica própria, e não é pessoa distinta da sociedade empresária” (REsp 1.355.812/RS, Primeira Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 22/5/2013).
Não obstante isso, é oportuno asseverar que tal dinâmica, objeto de estudo do Direito Comercial, tem um impacto nas contratações públicas, pois ainda que se entenda que há autonomia relativa entre matriz e filial no que diz respeito aos aspectos fiscais e tributários, sob a ótica do direito civil constituem uma única pessoa jurídica, de modo que a capacitação técnica ou experiência demonstrada por filial aproveita a matriz e vice-versa.[1]
Em outras palavras, ainda que se entenda que há autonomia relativa entre matriz e filial no que diz respeito aos aspectos fiscais e tributários, sob a ótica do Direito Civil constituem uma única pessoa jurídica, de modo que a capacitação técnica ou experiência demonstrada por filial aproveita a matriz e vice-versa.[2]
Sobre tal autonomia relativa entre matriz e filial, salienta o eg. TCU, in verbis:
“13. A diferença entre matriz e filial ganha importância quando se refere ao regime tributário, tendo em vista que uma goza de autonomia em relação à outra. Assim sendo, é que se expede uma certidão negativa ou positiva para a matriz e outra para a filial. Nesse sentido, a título de exemplo, a matriz pode apresentar débito e a filial não, e vice-versa. Deste modo, para fins licitatórios, os documentos de habilitação de licitante devem ser apresentados em nome da matriz ou da filial, não sendo permitido apresentar parte em nome da matriz e parte em nome da filial.
14. Acrescente-se que, se a matriz participa da licitação, todos os documentos de regularidade fiscal devem ser apresentados em seu nome e de acordo com o seu CNPJ. Ao contrário, se a filial é que participa da licitação, todos os documentos de regularidade fiscal devem ser apresentados em seu nome e de acordo com o seu próprio CNPJ.
15. Destaca-se, ainda, que há certos tributos, especialmente em relação ao INSS e ao FGTS, cuja arrecadação pode ser feita de forma centralizada, abrangendo, portanto, matriz e filiais. Se assim o for, tais certidões, mesmo as apresentadas pelas filiais, são expedidas em nome da matriz, sem que nisto haja qualquer ilegalidade” (Acórdão n.º 3.056/08 – Plenário).
Sobre a questão da autonomia relativa, é importante asseverar que o acórdão retrocitado aponta que, em algumas situações, os documentos apresentados nas contratações públicas são emitidos por apenas um estabelecimento, podendo ser utilizados por outro, a exemplo das certidões que comprovam a regularidade fiscal perante o INSS e FGTS.
Nesse passo, é importante apontar que o atestado de capacidade técnica é outro documento que não é restrito ao estabelecimento que consta do mesmo, abrangendo todos os estabelecimentos da empresa, pois a capacidade técnica é adquirida pela pessoa jurídica e não pelo estabelecimento que atuou na execução do objeto, recaindo, aqui o princípio da unidade da empresa.
Não podemos nos esquecer que, nas palavras de Marçal Justen Filho, qualificação técnica consiste no domínio de conhecimentos e habilidades teóricas e práticas para execução do objeto a ser contratado.[3]
Com efeito, executando o estabelecimento um determinado objeto, por exemplo, uma filial, tem-se que a expertise desenvolvida por ela é absorvida pela pessoa jurídica, estendendo a mesma sobre os outros, inclusive a matriz, e vice-versa, sendo, assim, é plenamente possível valorar sua experiência anterior como um todo.[4]
Sobre tal questão, não é outro o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Vejamos:
“Suspensão – Atos administrativos – Em favor da ampliação da competitividade, não se demonstra favorável ao interesse público a restrição imposta pela Agravada quanto à impossibilidade de compartilhamento de atestados de capacidade técnica entre matriz e filial, que possuem CNPJs distintos no cadastrado na licitação, pois matriz e filial constituem uma só pessoa jurídica – De outro lado, cumpre lembrar que em se tratando de licitação na modalidade pregão, inquestionável o perigo na demora – Recurso provido” (TJSP; Agravo de Instrumento 2081914-91.2019.8.26.0000; Relator (a): José Luiz Gavião de Almeida; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 13ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 15/10/2019; Data de Registro: 18/10/2019).
“APELAÇÃO – Mandado de segurança – Pregão Presencial n.º 113/17 – Fornecimento de gasolina comum e óleo diesel – Inabilitação em virtude de constar no atestado de capacidade técnica o CNPJ da matriz, ao invés da filial – Inabilitação ilegítima – Mera irregularidade formal que não pode impedir a contratação da melhor oferta pela Administração Pública – Possibilidade de aplicação do disposto no art. 43, § 3º, da Lei 8.666/93 – Impetrante que já fornecia combustível há mais de cinco anos para aquela Municipalidade – Demonstração inequívoca de sua capacidade técnica que não pode ser suplantada por irregularidade sanável – Irrazoabilidade constatada – Reforma da r. sentença – Ordem concedida – Recurso provido” (TJSP; Apelação Cível 1010954-66.2017.8.26.0625; Relator (a): Silvia Meirelles; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro de Taubaté – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 01/03/2019; Data de Registro: 01/03/2019).
“Agravo de Instrumento – Mandado de Segurança – Pretensão de participar de processo licitatório, admitindo-se o cômputo de todos os atestados que possui, seja da matriz e de suas filiais, para fins de sua comprovação técnica – Decisão da Juíza “a quo” que entendeu pela concessão parcial da medida de urgência pleiteada, no sentido de garantir a participação e eventual habilitação da empresa agravada, considerando os atestados de capacidade por ela apresentados, ressalvando, no entanto, a necessidade de cadastro dos CNPJs na Bolsa Eletrônica de Compras – BEC/SP – Decisão agravada que merece ser mantida – Comprovação da qualificação técnica que se reporta a uma mesma pessoa jurídica – A existência de cadastros distintos não é capaz de descaracterizar a unicidade da pessoa jurídica, observada, porém, a necessidade de prévia inscrição e cadastro dos CNPJs, ainda que distintos, junto ao BEC/SP. Recurso desprovido” (TJSP; Agravo de Instrumento 2192156-59.2015.8.26.0000; Relator (a): Marrey Uint; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 10/11/2015; Data de Registro: 20/11/2015).
“A matriz é o estabelecimento principal, a sede, aquela que dirige as demais empresas que são as filiais, sucursais ou agências; a filial é o estabelecimento mercantil, industrial ou civil, sendo subordinada a matriz Esse fato permite concluir ser impossível matriz e filial participarem de uma mesma licitação, apresentando propostas distintas, uma vez que não é possível que uma pessoa jurídica concorra com ela mesma. Além disso, se a Administração permitisse que uma mesma pessoa jurídica participasse da licitação, apresentando propostas distintas para cada um de seus estabelecimentos, haveria flagrante ofensa ao princípio da competitividade e isonomia, uma vez que ela teria mais chances de vencer o certame do que as demais empresas que participaram de forma regular. Ademais, a Administração Pública contrata a pessoa jurídica, e não o estabelecimento empresarial…” Desembargador Pedro Manoel de Abreu, nos autos do Reexame Necessário nº 2013.045780-7, da Terceira Câmara de Direito Público, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgado em 17 de junho de 2014 (Agravo de Instrumento nº 2081914-91.2019.8.26.0000 – Voto n.º 42727 6).
Não é outro o entendimento do Tribunal de Contas da União e do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Vejamos:
“O ato convocatório deve ter disciplinado a forma de apresentação dos documentos. Usualmente exige-se que os documentos estejam:
• em nome do licitante e, preferencialmente, com número do CNPJ e endereço respectivo, observado o seguinte;
• se o licitante for a matriz da empresa, todos os documentos devem estar em nome da matriz;
• se o licitante for filial, todos os documentos devem estar em nome da filial;
– No caso de filial, é dispensada a apresentação dos documentos que, pela própria natureza, comprovadamente sejam emitidos somente em nome da matriz.
– Os atestados de capacidade técnica/responsabilidade técnica podem ser apresentados em nome e com CNPJ da matriz e/ou da filial da empresa licitante” (cf. in Licitações e Contratos: Orientações Básicas/ Tribunal de Contas da União. – 3ª ed., rev. atual. e ampl., TCU, Secretaria de Controle Interno, Brasília, p. 143; disponível em <http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/comunidades/licitacoes_contratos> (grifos nossos)”.
“Recepção de atestados de experiência anterior emitidos em nome de empresa controlada, controladora, coligada, e/ou sob controle comum da licitante, além de matriz estrangeira de filial brasileira, converge ao propósito de ampliação da disputa” (TCE/SP – TC-022485.989.21-4).
“A propósito dos atestados técnicos demandados nos itens 8.1.4 e 8.1.4.1 do Edital, ideal que as cláusulas correspondentes também passem por revisão, no sentido de tornar fora de dúvida a possibilidade de apresentação dos documentos indistintamente pela empresa matriz ou empresa filial, quando se tratar de matéria atinente à comprovação da capacidade técnica; afinal, trata-se de estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica.
(…)
d) reveja a redação dos itens 8.1.4 e 8.1.4.1, no sentido de tornar fora de dúvida a possibilidade de apresentação dos documentos indistintamente pela empresa matriz ou empresa filial, quando se tratar de matéria atinente à comprovação da capacidade técnica” (TCE/SP – PROCESSOS: 0016048.989.20-6, 0016131.989.20-4, 0016162.989.20-6).
Ante todo o exposto, portanto, tem-se que poderá a Administração Pública, seguramente, receber e declarar habilitado neste quesito um licitante que apresenta um atestado de capacitação técnica emitido por um estabelecimento (a exemplo da matriz) cujo CNPJ não está previsto no documento (filial).
Notas
[1] TJ/SP – Agravo de Instrumento nº 2081914-91.2019.8.26.0000.
[2] TJ/SP – Agravo de Instrumento nº 2081914-91.2019.8.26.0000.
[3] FILHO. Marçal Justen. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 575.
[4] Agravo de Instrumento nº 2081914-91.2019.8.26.0000 – Voto n.º 42727 3.