Considerações iniciais
O Direito Administrativo nasce em um ambiente ideologicamente liberal[1], com forte bipolaridade à medida que buscava ao mesmo tempo, a liberdade do indivíduo e a autoridade da Administração[2]. No Brasil, o direito administrativo, como é sabido, nasce sob a influência dos direitos alienígenas, (direito francês, italiano e alemão), e mais recentemente, o direito europeu (União Europeia). Entretanto, o direito administrativo vem evoluindo no mundo, sendo marcante tal evolução no Brasil a partir da promulgação da Constituição de 1934 que, abandonando uma postura individualista, trouxe questões mais voltadas aos direitos fundamentais, como saúde, educação, previdência, etc., situação essa, que se desdobrou no necessário fortalecimento do Poder Executivo, e suas atribuições normativas.
Desse modo, é possível compreender que à medida que são conquistados novos direitos, novas demandas são institucionalizadas na prestação de serviços públicos pelo Estado, e o modo como o Estado se relaciona com a sociedade traz interferência direta com o direito administrativo. Assim, não há como dissociar a evolução dos direitos constitucionais das atribuições do Estado e consequentemente dos fundamentos do direito administrativo, ou seja, a Constitucionalização do direito administrativo. Observa-se, assim, uma forte conexão do direito administrativo com as questões políticas, econômicas e institucionais, em que o Estado, é responsável por desencadear todo esse processo.
Assim, depreende-se que a máquina administrativa do Estado será a responsável pela efetivação desses direitos, consubstanciada pela força cidadã da Constituição de 1988. Admite-se, então, a necessidade de uma estrutura muito eficiente por parte do Estado, tendo como consequência uma reestruturação da máquina pública. Paralelamente, surgem variadas discussões doutrinárias no âmbito do direito público, acerca dos temas correlatos, quais sejam, a atividade estatal, os serviços públicos e a delegação destes, os modelos patrimonialistas, burocrático gerencial, e na sequência, discute-se, claro, o papel do Estado, seu tamanho, a terceirização, as concessões, privatização, parcerias, entre outras. De modo que, concomitantemente, com as inovações constitucionais e a inserção de tantos direitos, também, evolui o entendimento acerca dos temas afins, com uma grande produção literária no âmbito constitucional e administrativo, surgindo grandes nomes no direito administrativo, com a publicação de manuais, muitas obras individuais e coletivas.
Assim caminha o direito administrativo; de mãos dadas com o direito constitucional. Nesse sentido, entende Di Pietro, que, assegura que o direito administrativo nasceu junto com o constitucionalismo[3]. Para a autora, a constitucionalização do direito administrativo existe desde a Constituição de 1934, consubstanciada pelas normas específicas sobre os servidores públicos, bem como, pela disposição do tema sobre a responsabilidade civil do Estado, entre outros[4]. No entanto, o tema constitucionalização do direito administrativo foi sendo mais discutido a partir da Constituição de 1988, com o Estado de direito[5], este intrínseco a um conjunto de valores, e não apenas regras[6].
A Constitucionalização do direito administrativo trouxe repercussões sobre a importância dos princípios, destacando-se o princípio da legalidade, pois, a ampliação deste reduziu a discricionariedade, trazendo maior amplitude ao controle judicial, até mesmo para algumas situações que antes eram consideradas questões de mérito administrativo[7], ressignificando, assim, a discricionariedade administrativa.
Medaur, Odete[8] afirma que “o direito administrativo se vincula à concepção de Estado de direito, justamente porque fixa normas para as atividades da Administração, que é um dos setores do Estado”, decorre desse entendimento que os direitos dos cidadãos serão protegidos por meio da instrumentalização da Administração Pública. Então, como está a efetivação dos direitos dos cidadãos, e a prestação dos serviços públicos? Em que sentido a governança pública ou a falta dela, tão alardeada nos últimos tempos, se relaciona com os preceitos constitucionais intrínsecos no direito administrativo real?
Mais uma vez, invocando as sábias palavras de Medauar[9]: “a Administração pública integra o contexto geral do sistema político de um Estado, refletindo e expressando as características e distorções desse sistema”. Assim, uma reforma administrativa efetiva deve ter como premissa um Estado eficiente na execução de suas políticas públicas, trazendo não só as soluções e as respostas ao cidadão, mas, as soluções e respostas céleres, ágeis e eficazes. Isso implica a discussão de vários temas específicos como governança, tecnologia, prioridade no orçamento público, combate à corrupção, planejamento, sustentabilidade, inclusão social e, é claro, entre outras diretrizes, uma correta aplicação do dinheiro público.
As atividades administrativas são variadas, entretanto, a doutrina italiana, nas palavras de Orlando, V.E citado por Medauar, Odete[10], divide tais atividades em jurídica e social, sendo a última a nossa preocupação, pois, são as atividades administrativas relativas às políticas públicas sociais que trazem o acesso aos indivíduos aos seus direitos constitucionais.
Pois bem, como correlacionar tantas regras e evoluções do direito constitucional e administrativo a um mundo tecnológico e globalizado, este em constante ebulição, permeado por tantas mudanças no pensamento e na construção do conhecimento? O que esperar das leis brasileiras, e sua efetividade frente aos desafios atuais da tecnologia, do enfrentamento do mundo real e virtual? Numa remota tentativa de resposta às questões acima expostas, é possível demonstrar de forma suscinta como a legislação vem na última década aprimorando os ditames constitucionais, destacando-se por exemplo, a publicação de algumas leis, tanto no âmbito do direito administrativo, como no âmbito de outros direitos que com ele se relaciona, como direito urbanístico, ambiental, etc. Dessa forma, algumas dessas leis impactaram o mundo jurídico, essas elaboradas após a promulgação da CF/88, e, independentemente de sua contextualização política à época, destacam-se: a Lei de Acesso à Informação, Lei Anticorrupção, Lei do Processo Administrativo, a Lei da Reforma Trabalhista, a Lei Geral de Proteção de Dados, a Lei do Governo Digital, Lei nº 14.129/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Públicos.
Observa-se que, além de todas as leis publicadas pós-constituição, o direito administrativo se manifesta por outros instrumentos como, por exemplo, os atos administrativos, como decretos, portarias, resoluções, etc. Desse arcabouço normativo em constante ebulição, – aliás, este é um dos motivos da difícil codificação do direito administrativo -, pode se inferir que é o direito administrativo na atualidade um direito muito presente na vida cotidiana dos cidadãos.
Cabe destacar que a evolução dos direitos constitucionais, a grande produção de leis para disciplinar os temas, tem instigado a doutrina nas análises e discussões das leis, mas, tem a doutrina brasileira no direito administrativo correlacionado seus temas às matérias de direito constitucional, em um ambiente de tantos desafios reais? É certo que sim, de certo modo, muito se tem escrito sobre os temas correlatos[11]. Entretanto, é perceptível que a ausência da participação social na discussão desses temas e o distanciamento entre os envolvidos na prestação dos serviços públicos e aqueles que “teoricamente” analisam tais situações, pode trazer uma clara lacuna nas abordagens doutrinárias, por vezes, pela falta de conexão com a realidade dos fatos. Nesse compasso, se observa a necessária discussão sobre as leis, sua aplicabilidade prática e efetividade e, em especial, uma necessária conscientização do princípio da legalidade, pois, é o norteador decisivo para a efetivação das politicas públicas.
Chama-se a atenção para o tema acerca do tema “efetivação dos direitos do cidadão”, presente na Lei nº 14.129, que foi publicada em 29 de março de 2021, a qual traz como objetivo no artigo 1º aumento da eficiência da administração pública, princípio esse introduzido pela EC 19/98. Assim transcreve-se:
(…)
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o aumento da eficiência da administração pública, especialmente por meio da desburocratização, da inovação, da transformação digital e da participação do cidadão” (negrito nosso).
Como se pode ver, sendo o objetivo da Lei citada, a busca pela eficiência e para que essa eficiência seja acelerada e redimensionada, foram inseridos quatro requisitos, conforme destacado acima: a desburocratização, a inovação, a transformação digital e a participação do cidadão, observando ainda que a Lei citada, conhecida como a Lei do Governo Digital, traz amplo âmbito de aplicação, ou seja, para toda a administração pública direta e indireta federal, em todos os poderes, inclusive, Tribunais de Contas da União e Ministério Público da União, além das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas, que prestem serviço público, autarquias e fundações públicas; estendendo-se também, às administrações diretas e indiretas dos demais entes federados, desde que adotem os comandos desta Lei por meio de atos normativos próprios. E o que isto significa? Em linhas gerais, a eficiência na Administração Pública no mundo atual passa pela necessária implementação de tecnologia digital nos serviços públicos dos Governos.
Voltando um pouco ao passado, antes da pandemia da COVID-19, não se tinha ideia da dimensão da importância da tecnologia na celeridade e eficiência das respostas do Estado aos seus cidadãos, e somente pela impossibilidade real do atendimento presencial dos serviços públicos prestados pelos órgãos da administração pública, e sendo necessário e iminente o atendimento das demandas, viu-se a administração pública compelida a implementar serviços nos formatos digitais para atendimento imediato a quem precisava dos serviços públicos de saúde, e até mesmo de ajuda financeira para sobrevivência. Tudo isso contribuiu para o aceleramento necessário na instrumentalização desses serviços, por meio da institucionalização de serviços digitais. Porém, para além da tecnologia, para que seja efetivada uma transformação na forma de prestação dos serviços públicos à sociedade, outros requisitos também se fazem presentes, como a desburocratização, a inovação e a participação do cidadão.
O artigo 3º da referida Lei, estabelece vários princípios para a sua aplicação, princípios esses que fundamentarão a sua execução prática, pois, são os princípios, a base do sistema jurídico, e não haverá instrumentalização efetiva, sem que tais valores existam e alicercem as ações. Assim, os princípios e as diretrizes de uma lei, como essa que tem como objeto o Governo Digital e a eficiência do Estado, são diversos em seu texto, porém, estruturadores da política a ser implementada. Nesse sentido, foi elencado como primeiro princípio, um valor importante, a “desburocratização” do serviço a ser prestado. Este importante vetor exige estudo aprofundado a ser realizado em todos os critérios de seleção exigidos para a prestação de um serviço público de qualidade, que seja eficiente e eficaz. Avalia-se, então, nesse momento, o que deve ou não ser critério de exigência para o alcance do direito pelo cidadão, numa tênue verificação entre o que é ou não é necessário, o que é exagero ou excesso de formalidades. Na sequencia do texto legal são invocados outros princípios[12] e diretrizes como, por exemplo, a modernização, a simplificação da relação do poder público com a sociedade, a disponibilização em plataforma única do acesso às informações e aos serviços públicos, inclusive por meio digital, monitoramento da qualidade dos serviços; participação social no controle e na fiscalização; prestação de contas dos recursos públicos; interoperabilidade de sistemas e a promoção de dados abertos; proteção de dados pessoais, conforme Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, adoção preferencial, no uso da internet e de suas aplicações, de tecnologias, de padrões e de formatos abertos e livres, entre outras. Nesse sentido, o Governo Digital tem na sua área de competência uma enorme responsabilidade pois se torna um desafio a mais na consecução das políticas públicas sociais, na medida em que é responsabilização dos governos a disponibilização de tecnologias seguras que instrumentalize tais concessões de direitos.
Mas, não basta ter leis, é preciso governança e uma boa governança que traga efetividade aos setores envolvidos, destacando-se nesse aspecto, a obrigatória prioridade política e disponibilização de recursos orçamentários dos governos, pois, sem isso, nada será possível. O artigo 14 da Lei do Governo Digital, estabelece que:
(…)
a prestação digital dos serviços públicos deverá ocorrer por meio de tecnologias de amplo acesso pela população, inclusive pela de baixa renda ou residente em áreas rurais e isoladas, sem prejuízo do direito do cidadão a atendimento presencial.
Então como isso é possível? O artigo 15 da citada Lei faz referência a uma integração e cooperação entre toda a administração pública, o que envolve esforços de todos os entes federativos, mas, se faz necessário que cada um desse participantes, priorize politicamente e orçamentariamente a implementação do seu governo digital.
A Constituição Federal de 1988 está vigente há mais de vinte anos, inserindo direitos na vida do cidadão, mas, a pandemia da COVID-19 e o afastamento do trabalho presencial trouxe de forma significativa o impacto sobre a mudança na forma da prestação dos serviços públicos, exigindo celeridade na prestação e eficácia nos resultados. Desse modo, são as leis brasileiras o norte da atividade administrativa na prestação dos serviços públicos[13], trazendo consigo a bandeira da legalidade juntamente com os princípios impostos pela CF/88. O arcabouço jurídico reveste toda a atividade administrativa, forma-se então o panorama normativo necessário à ação estatal, mas, o que falta à eficiente efetivação dos serviços públicos no Brasil? A resposta está no artigo 1º da Lei nº 14.129/2021, a necessária desburocratização, a inovação, a transformação digital e a participação do cidadão, sendo os três primeiros requisitos voltados a atos da administração pública, e o último requisito depende da vontade do cidadão, pois, destaca a participação popular, esta ainda incipiente no tratamento do tema. Talvez, seja esse requisito que esteja ainda deficiente na elaboração e efetivação das políticas públicas, uma maior participação dos interessados, a completa inclusão digital nos governos, para trazer de forma eficaz os resultados esperados, e principalmente, cumprir o que diz a Constituição na entrega do direito à saúde, à educação, à moradia, entre tantos outros direitos. Não basta termos Constituição, leis, normas jurídicas das mais diversas, se não houver priorização das verbas orçamentárias na União, Estados e Municípios, para implementação de tecnologia para efetivação das políticas públicas e, claro, a participação popular na busca desses direitos.
Referências
Medauar, Odete. Direito Administrativo moderno. 21, ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2020. 462p. ISBN: 978-85-5518-006-0.
Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. – 31. ed. rev. atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.ISBN 978-85-309-7956-0
De Palma, Juliana Bonacorsi na obra Direito administrativo e políticas públicas: o debate atual. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Direito público em evolução: estudos em homenagem à Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 177-201. ISBN 978-85-7700-785-1.
Notas
[1] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. p.85
[2] Idem. p.130
[3] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. p.45
[4] Idem. p.64
[5] A expressão Estado de direito, significa um arcabouço de valores, e não meramente normas escritas.
[6] Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. p.27.
[7] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. p.297
[8] Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. p.27.
[9] Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. p.27.
[10] Idem. p.108
[11] Destaca-se excelente texto sobre o tema produzido por DE PALMA, Juliana Bonacorsi na obra Direito administrativo e políticas públicas: o debate atual.
[12] Ver o artigo 3º da Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021.
[13] Pietro, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. Segundo Di Pietro: (…) “nossa definição de serviço público como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. p.45.