Em 26 de outubro de 2017 a Lei nº 8.666, de 1993, sofreu alteração pela Lei nº 13.500, que introduziu o § 5° no art. 40[1] da primeira lei referida, o qual dispôs sobre a possibilidade de a Administração Pública exigir, nos editais de licitação para a contratação de serviços, que as empresas contratadas pelo Poder Público tivessem um mínimo de trabalhadores oriundos ou egressos do sistema prisional, na forma do decreto regulamentador.
Nesse sentir, segundo o texto expresso da norma supramencionada a finalidade com o acréscimo precitado foi de ressocialização do reeducando.
Em 1º de abril de 2021 foi publicada a Lei nº 14.133, que estatuiu no art. 25, § 9º, que o edital poderá, na forma disposta em regulamento, exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por: I – mulheres vítimas de violência doméstica; II – oriundos ou egressos do sistema prisional.
Além da disposição acima, também o art. art. 60, caput, inciso III, da Lei nº 14.133/2021determina que em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento.
Por fim, no período de 08 a 22 de março de 2022, o Ministério da Economia lançou consulta pública para receber contribuições relacionadas à minuta de Decreto que dispõe sobre a exigência, para fins de execução do objeto de contratações públicas, de percentual mínimo de mão de obra constituído por mulheres vítimas de violência doméstica, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, com base na nova Lei de Licitação (Lei nº 14.133, de 2021). A minuta ainda não foi publicada[2].
Há atualmente no Senado Federal considerando o total de 81 cadeiras 12 ocupadas por senadoras[3], o que corresponde a 14,8% do total de cadeiras[4].
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1 a cada ano, cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil. Trata-se de um problema de primeira grandeza sob o ponto de vista das políticas públicas. Para além da questão de segurança pública e de manutenção dos direitos básicos de cidadania, a violência que, muitas vezes, nasce nos lares, possui fortes implicações para o desenvolvimento do país, pois envolve perdas de produtividade das vítimas diretas e indiretas, eventuais custos para tratamento no sistema de saúde e menor participação da mulher no mercado de trabalho, conforme apontado por Lloyd (1997). (grifou-se)
Desse modo, uma primeira conclusão que se chega é que a intenção clara da norma suprareferida foi continuar fomentando esse tipo de política pública afirmativa por parte do Estado e, mais, reafirmar a necessidade de atenção por parte do Estado para esse tipo de política pública afirmativa almejando que a independência financeira da mulher agredida venha a possibilitar o rompimento do ciclo de violência.
Releva destacar no que toca à temática em comento que a Constituição Federal nos artigos 3º (objetivo fundamental da República Federativa do Brasil,) inciso IV e 5º, caput, consagrou o chamado princípio da igualdade.
Nesse diapasão, considerada a acepção material do princípio mencionado é razoável concluir que cabe ao Estado promover a igualdade por meio de ações que permitam o acesso a esses direitos, o que pode ser alcançado por meio de ações afirmativas, que busquem o incentivo à realização desses direitos constitucionalmente garantidos.
Outrossim, é dever do Estado realizar ações protetivas, o que se torna possível com o estabelecimento de políticas públicas voltadas para os grupos considerados mais vulneráveis, agindo assim, o Estado cumprirá o dever constitucionalmente previsto.
Em vista do exposto, pode-se dizer que políticas públicas são um meio por meio do qual o Estado pode agir. Assim, partindo de um planejamento anterior, o Estado tem como analisar em quais setores deverá atuar, tais como: 1) desemprego; 2) poluição; 3) igualdade de gênero ou raça; e 4) analfabetismo.
Maria Paula Dallari Bucci, dispondo sobre o conceito de política pública, conceituou-a da seguinte maneira:
Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. [5]
Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados. (grifou-se)
Do conceito acima, pode-se extrair que a política pública requer um planejamento estatal prévio, direcionado à escolha do que irá melhor atender ao interesse coletivo.
Nota-se, ainda, do conceito mencionado, que não há como não considerar que o planejamento da ação estatal também tem relevância, na medida em que leva à necessidade de um estudo relacionado ao que é considerado socialmente relevante para aquele momento vivido pelo Estado e a quais decisões políticas devem ser buscadas.
Na segunda parte do conceito, deve-se destacar o tipo ideal de política pública traçado pela autora.
Nesse sentido, para que uma política pública seja considerada ideal, deverá: 1) ter objetivos definidos para que se possa buscar realizá-los; 2) expressar o atendimento às prioridades da coletividade; 3) reservar os meios financeiros para a sua implementação e, nesse ponto, o orçamento passa a ter importância, pois é nele que estarão previstas as ações governamentais; 4) prever em quanto tempo se espera que os resultados esperados sejam atingidos.
Na medida em que a política pública passa a ser entendida como uma decisão estatal, com objetivos definidos, voltados ao atendimento do interesse público, a forma de implementação passa a ter relevância, visto que os recursos e os meios à disposição do Estado, sendo escassos, dificultam ou, muitas vezes, impossibilitam o atendimento devido a certa política pública.
Noutro prumo, o ideal a ser alcançado com uma política pública é que a sociedade possa expressar o que é mais importante para ela naquele determinado momento. Assim, sendo ouvido pelo Estado, o indivíduo passa a ser visto como cidadão, também responsável pela realização da política pública, portanto, louvável a disponibilização para consulta pública da minuta de Decreto que dispõe sobre a exigência, para fins de execução do objeto de contratações públicas, de percentual mínimo de mão de obra constituído por mulheres vítimas de violência doméstica, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, com base na nova Lei de Licitação (Lei nº 14.133, de 2021).
Nesse contexto, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a realização das políticas públicas tem como fim a materialização dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Além disso, o vínculo que se forma entre as empresas contratadas e a Administração aumenta a participação social na implementação das políticas públicas e faz com que a fiscalização e o monitoramento do resultado que ser quer alcançar passem a ser de interesse da sociedade.
Alinhado ao que foi até este momento exposto Christiane Stroppa[6] em sua dissertação chama a atenção para a função social da licitação alertando que
Ora, atende plenamente a ideia de supremacia do interesse público a transformação do instituto da licitação em uma das atividades estatais mais relevantes, haja vista a possibilidade real de transformação econômica e social de um país.
[…]
Diante disso, parece possível o cotejo de outras formas de se buscar a vantagem nas licitações. Dito de outo modo: seria juridicamente possível incluir, como um dos objetivos dos procedimentos licitatórios, o fomento de valores e metas desejadas de maneira explícita na Constituição. (grifpou-se)
Inegável, portanto, que a nova lei de licitações e contratos
consolida a função social da licitação como meio para viabilização de políticas
públicas afirmativas e implementação de direitos constitucionais por parte do
Estado.
[1] Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:
[…]
§ 5º A Administração Pública poderá, nos editais de licitação para a contratação de serviços, exigir da contratada que um percentual mínimo de sua mão de obra seja oriundo ou egresso do sistema prisional, com a finalidade de ressocialização do reeducando, na forma estabelecida em regulamento. (Incluído pela Lei nº 13.500, de 2017).
[2] https://www.gov.br/compras/pt-br/nllc/Relatorio_regulamentos_14133_PORTAL_29jun.pdf. Acesso em: 18.07.2022.
[3] Segundo o Mapa das Mulheres na Política 2020, feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela União Interparlamentar (UIP), o Brasil ocupa o 140º lugar no ranking de representação feminina no Parlamento. Na América Latina, o país está à frente apenas de Belize (169º) e Haiti (186º). Lideram o ranking Ruanda (1º), Cuba (2º) e Bolívia (3º) (https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-03/com-pouca-representatividade-politica-mulheres-ainda-buscam-direitos. Acesso em 20.07.2022).
[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/08/bancada-feminina-precisa-ocupar-espaco-no-congresso-dizem-senadoras. Acesso em 20.07.2022.
[5] BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.
[6] https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/6254.