Resumo: O artigo versa sobre a legalidade na utilização do pagamento antecipado por parte da Administração Pública procurando demonstrar que seu uso de maneira excepcional torna eficiente o trabalho que é realizado diariamente por seus agentes tendo como resultando uma Administração Pública cada vez mais gerencial voltada para a viabilização de políticas públicas de forma ágil e racional. Desse modo, apresenta uma visão inicial sobre toda a controvérsia existente em torno do tema passando pela defesa da legalidade na adoção desta forma de pagamento para no final concluir que o microssistema jurídico que fundamenta o instituto em comento possibilita seu uso, desde que realizada devidamente a motivação do ato e preenchido certos requisitos, dentre eles, a adoção de determinadas garantias ou cautelas nos artefatos que serão adotados na contratação respectiva.
- INTRODUÇÃO
É incontroversa a importância da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, para o direito administrativo brasileiro, dentre as alterações por ela processada pode ser citada a criação do princípio da eficiência no caput do art. 37 da Constituição Federal, o qual trouxe de maneira implícita em seu bojo a compreensão de que se deve deixar de controlar a todo custo o procedimento legal tendo em vista a maior efetividade que pode existir na verificação dos resultados obtidos pela Administração Pública, principalmente, quando se pretende implementar políticas públicas.
Desse modo, houve de certa maneira o afastamento da concepção de que necessariamente os processos devem ser pautados pela estrita legalidade, pela hierarquia e pelo procedimento formal, até mesmo porque a ideia de eficiência traz em si a necessidade de maior autonomia aos agentes administrativos.
Nessa lógica, a Administração Pública gerencial passa a ter importância na medida em que parte do modelo de governança no qual a preocupação é voltada para os fins a serem atingidos. Esse tipo de Administração, como já mencionado linhas acima, busca o controle de resultados dos agentes do Estado, o qual deve ser direcionado para os resultados por ele pretendidos.
Nesse formato existe a consagração do princípio da eficiência que desemboca na necessidade constante de implantação de meios que permitam desenvolver cada vez mais a racionalidade na Administração Pública.
Dessarte, no caminho diametralmente oposto ao precitado, mesmo depois da publicação da Orientação Normativa da Advocacia-Geral da União nº 37 de 2011, muito se discute ainda sobre a legalidade em ser realizado o pagamento antecipado.
Nessa toada, o texto da supramencionada ON/AGU nº 37/2011 dispõe que:
ORIENTAÇÃO NORMATIVA Nº 37, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2011
A antecipação de pagamento somente deve ser admitida em situações excepcionais, devidamente justificada pela administração, demonstrando-se a existência de interesse público, observados os seguintes critérios: 1) represente condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, ou propicie sensível economia de recursos; 2) existência de previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta; e 3) adoção de indispensáveis garantias, como as do art. 56 da lei nº 8.666/93, ou cautelas, como por exemplo a previsão de devolução do valor antecipado caso não executado o objeto, a comprovação de execução de parte ou etapa do objeto e a emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras. (grifei e sublinhei)
Para os que defendem a ilegalidade na utilização por parte da Administração Pública do pagamento antecipado o fazem interpretando restritivamente os artigos 62 e 63 da Lei nº 4.320/1964 (estabelece normas gerais de direito financeiro) no sentido de que o pagamento feito pelos órgãos públicos somente poderá ocorrer depois de cumprido todos os requisitos para que ocorram o empenho e a liquidação da despesa, o que pressuporia a comprovação da entrega do bem ou da prestação do serviço.
Em contrapartida, os que defendem sua possibilidade advogam no sentido de que de forma excepcional, desde que devidamente motivado o ato e obedecidos certos requisitos, dentre eles, a exigência de certas garantias ou cautelas por parte da Administração Pública é possível que o pagamento antecipado seja realizado.
O objetivo deste artigo é, portanto, indagar se há legalidade na adoção do pagamento antecipado levando em consideração o objeto que se pretende contratar e a situação fática apresentada quando a solução para viabilizar a política pública de forma eficiente seja a antecipação do pagamento do objeto da contratação, total ou parcial, para tanto, a primeira parte este trabalho busca apresentar a polêmica existente em torno do assunto, no segundo momento será feita a defesa para utilização do pagamento antecipado concluindo, então, pela possibilidade de seu uso de forma excepcional, desde que respeitados determinados requisitos, dentre eles, a adoção de cautelas ou garantias específicas para tanto.
1.2. DA CONTROVÉRSIA JURÍDICA EXISTENTE SOBRE O TEMA
O dispositivo legal que gera dúvida quanto ao tema em questão é o art. 40, XIV, “d”, da Lei nº 8.666/1993, quando interpretado conjuntamente com o art. 65, II, “c”, da lei citada, resultando no entendimento de que o pagamento apenas pode acontecer se respeitado o cronograma inicialmente previsto e sempre só após a correspondente realização do serviço ou entrega dos bens.
Dessa forma, considerando o acima exposto e o que dispõem os artigos 62 e 63 da Lei nº 4.320/1964 a conclusão seria no sentido de que o pagamento do contrato administrativo ou de parcela contratual só poderia ser realizado após a regular liquidação, o que pressuporia não só o empenho da despesa, como também, a entrega definitiva do bem ou a realização do serviço.
Nada obstante, sob outra perspectiva, os que defendem a possibilidade de pagamento antecipado consideram o fato de que o artigo 15, inciso III, da Lei Geral de Licitações estabelece que as compras, quando possível, deverão ser submetidas às condições de pagamento semelhantes às do setor privado.
Seriam exemplos de contratos passíveis de pagamento antecipado, nos termos suprarreferido, a contratação de shows, o pagamento de assinaturas de periódicos, eventos etc.
É importante considerar também acerca do tema em questão o que dispõe o artigo 38 do Decreto nº 93.872/1986, senão vejamos:
Art. 38. Não será permitido o pagamento antecipado de fornecimento de materiais, execução de obra, ou prestação de serviço, inclusive de utilidade pública, admitindo-se, todavia, mediante as indispensáveis cautelas ou garantias, o pagamento de parcela contratual na vigência do respectivo contrato, convênio, acordo ou ajuste, segundo a forma de pagamento nele estabelecida, prevista no edital de licitação ou nos instrumentos formais de adjudicação direta. (grifei e sublinhei)
Sobre o assunto, se posicionando de forma contrária aos que defendem uma interpretação restritiva dos artigos 62 e 63 da Lei nº 4.320/1964 os autores Anderson Pedra, Rafael Sérgio e Ronny Charles precisamente assentaram que:
Conforme indica a leitura do dispositivo, o pagamento exige prévia liquidação. Contudo, como explica o próprio texto legal, esta (a liquidação) não necessita se dar apenas depois da execução ou do fornecimento. Ela deve, nos termos do caput do art. 63, ter por base “documentos comprobatórios do respectivo crédito”, como pode ser o contrato ou, buscando interpretar a Lei de 1964 sobre um prisma, digamos, atual, poderíamos sugerir um comprovante de embarque da mercadoria, o aceite do pedido, um comprovante de transação feito pela internet (vide blockchain), entre outros.
Importante salientar que o caput não indica quais seriam tais documentos comprobatórios, embora, obviamente, seja fundamental a confirmação de que a condição necessária ao pagamento tenha sido cumprida, o que não implica, necessariamente, na prévia prestação da atividade pactuada pelo contratado. (grifei e sublinhei)
Dessarte, razão assiste aos autores sobreditos além do fato de o caput do art. 63 da Lei nº 4.320/1964 claramente não exigir a efetiva entrega do objeto contratado para que a liquidação se concretize, também, o parágrafo primeiro do referido artigo dispõe que para a verificação do direito adquirido do credor, o que irá resultar no ato de liquidação da despesa, deve-se apurar apenas e tão somente a origem e o objeto do que se deve pagar, a importância exata a pagar e a quem se deve pagar a importância, ora, não há nesse rol referência à obrigatoriedade de entrega do objeto ou a efetiva prestação do serviço para que a liquidação seja realizada.
Nessa toada, nota-se que o parágrafo segundo do art. 63 da Lei nº 4.320/1964 dispôs sobre os documentos aceitos para que seja realizada a liquidação se houver despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados, o que não autoriza concluir que por ter o dispositivo previsto apenas quais documentos devem ser apresentados para pagamento de despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados haveria proibição para que seja realizado o pagamento antecipado.
Ademais, é importante que se tenha em mente que o comando constante do artigo 62 da Lei nº 4.320/1964 é no sentido de que “O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação”, logo, para que a liquidação seja ordenada, conforme exposto acima não há necessidade da efetiva prestação do serviço ou mesmo entrega do bem bastando para isso a verificação do direito adquirido do credor por meio da apuração da origem e do objeto do que se deve pagar, da importância exata a pagar e a quem se deve pagar a importância, o que pode ser feito por meio dos documentos citados no parágrafo segundo do art. 63 da Lei nº 4.320/1964.
Assim, considerando que os parágrafos expressam os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por ele estabelecidas (art. 11, inciso III, alínea “c”, da Lei Complementar N º 95, de 26 de fevereiro de 1998) forçoso reconhecer que da leitura conjunta dos parágrafos primeiro e segundo do artigo 63 da Lei nº 4.320/1964 é razoável concluir que há autorização para a realização do pagamento antecipado, de maneira excepcional, com a utilização do documento cabível de acordo com a situação apresentada podendo o contratante fazer uso do rol estabelecido no parágrafo segundo.
No caso específico do inciso I, do parágrafo segundo, do art. 63 da Lei nº 4.320/1964 a referência existente é ao contrato, ajuste ou acordo respectivo, como as hipóteses do dispositivo citado são alternativas e não numerus clausus no caso do inciso em comento não há como defender a efetiva entrega do objeto para que a liquidação seja processada, já que os instrumentos referidos não pressupõem que o objeto tenha sido entregue.
No que concerne ao artigo 65, II, “c”, da Lei nº 8.666/1993 no bem elaborado artigo dos autores Anderson Pedra, Rafael Sérgio e Ronny Charles tem-se a seguinte lição:
Ora, a vedação do dispositivo não é ao pagamento antecipado em si, mas à alteração contratual de modificação do pagamento, pela sua antecipação, em detrimento do cronograma financeiro inicialmente fixado na licitação.
Embora a redação não seja plenamente clara, uma leitura cuidadosa permite compreender que se trata de uma regra relacionada à alteração contratual. O que está sendo vedado é a alteração contratual que gere o benefício ilegítimo ao contratado de antecipar o pagamento, destoando do cronograma financeiro fixado na licitação ou na contratação. (grifei e sublinhei)
Outrossim, sobre a mesma temática Marçal Justen Filho destaca a possibilidade de realização de pagamento antecipado defendendo que haveria a ampliação da competição no procedimento licitatório e economia a ser obtida por parte da Administração Pública, in verbis:
Muitas vezes, a conveniência da antecipação é evidente. Os recursos estão disponíveis e, destinando-se a certo encargo, não podem ter outra aplicação. Se a Administração não puder efetivar o pagamento antecipado, os recursos permanecerão sem utilização durante longo período. Nesse ínterim, haverá a desvalorização da moeda. A Administração ainda se sujeitará ao pagamento de reajustes contratuais ou a recomposições extraordinárias de preços. Em outros casos, a antecipação de pagamento seria obrigatória. São os casos em que o pagamento antecipado seja condição de ampliação do universo de participantes, pois a execução do contrato exige investimentos de grande porte. O pagamento a posteriori representaria uma forma de restrição indireta. Funcionaria como uma pré-qualificação. Somente as empresas que detivessem capital de giro compatível com as necessárias inversões teriam condições práticas de participar da licitação. Quando se proíbe o pagamento antecipado e se institui a prévia execução do serviço ou entrega do bem, impõe-se restrição à participação no processo licitatório. Essa restrição é ainda mais provável por ser indireta e oculta. Aparentemente, inexistiria empecilho à participação de qualquer interessado. Na verdade, o ato convocatório exigiria um ‘financiamento indireto’ por parte do interessado. Somente poderia participar quem dispusesse de recursos suficientes para antecipar o pagamento das despesas, reavendo os valores após a execução da prestação.
Além de tudo, o pagamento final acarretaria um encarecimento do custo. Os participantes teriam de abranger, na formulação das propostas, uma previsão de custos financeiros, além dos custos necessários à execução propriamente dita da prestação. (grifei e sublinhei)
Em arremate, a excepcionalidade retratada neste arrazoado está perfeitamente coadunada com a pandemia relacionada ao coronavírus e o estado de calamidade legalmente reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, o qual apesar de não estar mais vigente trouxe uma série de alterações legislativas e mostrou o quanto a legislação de contratações pública brasileira não estava preparada para a situação atípica apresentada, a qual ocasionou uma competição mundial pelos escassos produtos necessários para combater a doença referida.
Nesse contexto, foi que a Medida Provisória 961/2020, convertida na Lei nº 14.065, de 30 de setembro de 2020, com termo final em 31 de dezembro de 2020 (art. 2º), data em que cessou o reconhecimento, pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 6, da situação de calamidade pública dispôs expressamente em seu art. 1º que:
Art. 1º A administração pública dos entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos fica autorizada a:
[…]
II – promover o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos, desde que:
a) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço; ou
b) propicie significativa economia de recursos; e
[…]
§ 1º Na hipótese de que trata o inciso II do caput deste artigo, a Administração deverá:
I – prever a antecipação de pagamento em edital ou em instrumento formal de adjudicação direta; e
II – exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto, atualizado monetariamente pela variação acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou índice que venha a substituí-lo, desde a data do pagamento da antecipação até a data da devolução.
§ 2º Sem prejuízo do disposto no § 1º deste artigo, a Administração deverá prever cautelas aptas a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como:
I – a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente;
II – a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 , de até 30% (trinta por cento) do valor do objeto;
III – a emissão de título de crédito pelo contratado;
IV – o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; ou
V – a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.
§ 3º É vedado o pagamento antecipado pela Administração na hipótese de prestação de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra. (grifei e sublinhei)
De fato, da leitura do dispositivo suprarreferido percebe-se facilmente que a lei sobredita além de autorizar expressamente o pagamento antecipado, o condicionou à configuração de duas situações: a) representar condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço; ou b) propiciar significativa economia de recursos.
Nesse diapasão, é inquestionável que o disciplinamento legal da matéria foi para que o gestor sentisse segurança jurídica quando optasse pela utilização do pagamento antecipado, justamente, em decorrência do contexto pandêmico experimentado, desse modo, contata-se uma evolução em termos de disciplinamento da matéria, visto que ela passou a ter disposição expressa na norma legal.
Todavia, o artigo primeiro precitado acertadamente exigiu que certos requisitos não cumulativos fossem observados para que o pagamento antecipado fosse autorizado, sendo assim, além da necessidade da demonstração de que representaria condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço também deveria haver previsão expressa no edital ou no instrumento formal de contratação direta sobre a possibilidade em ser antecipado o pagamento, obrigando, dessa maneira, o gestor a motivar o ato com a confirmação do preenchimento das hipóteses mencionadas.
Releva destacar que a lei também exigiu como previsão obrigatória no edital “exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto, atualizado monetariamente pela variação acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou índice que venha a substituí-lo, desde a data do pagamento da antecipação até a data da devolução.”
Ainda, o parágrafo segundo obrigou, já que utilizou o termo “deverá”, que seja estabelecido não só no edital, mas também, nos contratos cautelas obrigatórias em decorrência do grau de risco alocado para a Administração Pública quando da adoção do pagamento antecipado, abrindo possibilidade, contudo, para adoção de garantias adicionais, ou seja, o gestor considerando o caso concreto deverá apontar quais cautelas devem ser adotadas podendo optar também pela adoção de garantias adicionais, nos termos do parágrafo segundo, inciso segundo, do artigo primeiro, da na Lei nº 14.065/2020.
Apesar disso, a Advocacia-Geral da União por meio da Câmara Nacional de Modelos de Licitações e Contratos Administrativos/DECOR/CGU proferiu entendimento através do Parecer n.º 00012/2020/CNMLC/CGU/AGU no sentido de serem facultativas as cautelas previstas no § 2º do art. 1º da na Lei nº 14.065, nos termos abaixo colacionado:
[…]
VIII – O pagamento antecipado pode ser utilizado em todo tipo de contratação (salvo com dedicação exclusiva de mão-de-obra), fundada ou não na Lei nº 13.979/20, desde que justificando-se a decisão e enquadrando-a numa das hipóteses do art. 1º, II, da MPV nº 961/2020;
IX – É admissível a antecipação de apenas parte do pagamento devido à contratada, conforme previsão nos documentos de contratação;
X – As cautelas previstas no § 2º do art. 1º da MPV nº 961/20 são facultativas, devendo ser dimensionadas pelo administrador, sendo admissível desde a adoção de todas as cautelas até a de nenhuma;
XI – O dimensionamento do uso das cautelas facultativas ocorrerá conforme a demanda e as características do contrato a ser firmado, sempre mediante apresentação de justificativa, que deverá abordar o elo entre a situação fática em questão e as cautelas não obrigatórias eleitas;
XII – É possível a fixação de percentual de garantia (art. 1º, § 2º, II, da MPV 961/20) em qualquer percentual até o limite de 30%. Tal percentual não se confunde com os 5% de garantia contratual previstos no art. 56 da Lei nº 8.666/93, podendo ser cumulado com ele;
XIII – O uso das cautelas dos incisos II (garantia) ou III (emissão de título de crédito) do § 2º do art. 1º da MPV nº 961/20 é limitado ao valor da antecipação de pagamento prevista para o contrato. O acionamento desses mecanismos serve apenas para a recomposição desses custos, não servindo aos objetivos amplos da garantia contratual ordinária prevista no art. 56 da Lei nº 8.666/93.
[…] (grifei e sublinhei)
No que se refere a tese em foco Alyne Gonzaga de Souza trouxe importante consideração sobre a situação vivida no contexto da pandemia e as diversas conjunturas imprevistas ocorridas resumidas no trecho abaixo:
[…]
No âmbito do cenário pandêmico, a exemplo das situações extremas que podem levar à impossibilidade de exigência de garantia, são vislumbradas com maior facilidade. Cite-se, por exemplo: a escassez de produtos/insumos e/ou da concentração de tecnologia que pode acarretar a exclusividade de comercialização de vacinas, de equipamentos de proteção e insumos para produção de medicamentos. As regras negociais, para a obtenção dos aludidos produtos ou a prestação de serviço, podem não comportar a exigência de garantia. Caso a Administração Pública imponha a exigência de garantia, fatalmente infrutífera será a obtenção do bem ou da prestação do serviço.
[…]
Por certo, com a Administração Pública se apresentando cada vez mais complexa as alternativas e o próprio direito devem ser pensados de maneira não só a atender o interesse público primário, mas também, o direito fundamental envolvido.
1.3. DA LEGALIDADE NA UTILIZAÇÃO DO PAGAMENTO ANTECIPADO DE MANEIRA EXCEPCIONAL: DAS CAUTELAS E GARANTIAS PARA SUA ADOÇÃO
No que diz respeito à orientação normativa da AGU nº 37/2011, verifica-se da sua leitura que ela fixa o entendimento e dispõe sobre os requisitos que devem ser observados pela Administração Pública quando da opção pelo pagamento antecipado antes da execução do contrato ou de parcela deste, como exaustivamente declarado neste artigo.
É sabido que, como regra, a Administração Pública deve realizar o pagamento antes da execução do contrato, logo, após o cumprimento da obrigação pelo contratado.
Nesse diapasão, na execução dos contratos administrativos há um trâmite legalmente previsto para o pagamento, conforme disposto nos artigos 58 a 70 da Lei 4.320/1964, quais sejam:
- Empenho – equivale a autorização de fornecimento e reserva de crédito orçamentário;
- Liquidação do empenho, que tem como finalidade reconhecer a origem e o objetivo do que se deve pagar, a importância exata a ser paga e a quem se deve pagar, onde são apuradas, portanto, as condições necessárias para o pagamento, quais sejam: entrega do objeto contratado, a nota fiscal, medição da obra, valor a ser pago, etc;
- Processamento da liquidação;
- Pagamento.
Por outro lado, será que é razoável concluir pelo que se tem disposto no macrossistema jurídico atual que para a regra precitada é incabível exceções? É plausível considerar, tendo em vista a evolução natural da sociedade que o sistema jurídico a acompanhe? Esse é o cerne da questão posta neste tópico.
De início, importante pontuar os ensinamentos de Marçal Justen Filho sobre a técnica de interpretação, abaixo reproduzidos no que importa:
Já a interpretação corresponde a uma tarefa de (re) construção de vontade normativa estranha e alheia ao aplicador. O intérprete não atribui sua conclusão a um juízo de conveniência próprio, mas ao sistema jurídico. Na interpretação, o aplicador não revela a vontade do legislador, mas a vontade legislativa que é determinada pelo sistema jurídico em si mesmo. Na discricionariedade, a vontade do aplicador é legitimada pelo direito, que não impôs uma solução predeterminada ao caso concreto.
A técnica da interpretação conforme reflete uma manifestação do chamado princípio da razoabilidade, que preconiza ser a interpretação jurídica uma atividade que ultrapassa a mera lógica formal. Interpretar equivale a valer-se do raciocínio, o que abrange não apenas soluções rigorosamente lógicas, mas especialmente as que se configuram como razoáveis.
O princípio da razoabilidade não equivale à adoção da conveniência como critério hermenêutico. O que se busca é afastar soluções que, embora fundadas na razão, sejam incompatíveis como espírito do sistema.
Um instrumento fundamental e indispensável para a existência do sistema jurídico e a preservação dos valores fundamentais é o princípio da proporcionalidade.
Uma das peculiaridades do princípio da proporcionalidade consiste no reconhecimento de que a solução jurídica não pode ser produzida por meio do isolamento do aplicador em face da situação concreta. Não é possível extrair a solução pelo exame de textos legais abstratos. O intérprete tem o dever de avaliar os efeitos concretos e efetivos potencialmente derivados da adoção de certa alternativa. Deverá selecionar aquela que se configurar como a mais satisfatória, não do ponto de vista puramente lógico, mas em vista da situação real existente.
Mas é indispensável evitar que as considerações acima levem a identificar o princípio da legalidade com a necessidade de existência de disposições expressas no texto de uma lei. Quando se afirma que o princípio da legalidade envolve a existência de lei, isso não pode ser interpretado como exigência de disciplina legal literal e expressa. O princípio da legalidade conduz considerar a existência de normas jurídicas, expressão que não é sinônima de “lei”, tal como exposto.
Há princípios jurídicos implícitos. Também há regras jurídicas implícitas. A disciplina jurídica é produzida pelo conjunto das normas jurídicas, o que exige compreender que, mesmo sem existir dispositivo literal numa lei, o sistema jurídico poderá impor restrição à autonomia privada e obrigatoriedade de atuação administrativa. (grifei e sublinhei)
Para além disso, é relevante considerar que a adoção de medidas desta jaez vai ao encontro dos princípios da racionalidade administrativa, economia processual e celeridade o que resulta na eficiência da atividade administrativa.
Dessa maneira, cabe ser destacado que o Tribunal de Contas da União – TCU, há algum tempo, admite, como exceção, a possibilidade de a Administração Pública realizar pagamento antes da efetiva execução do objeto contratado, como por exemplo, nos Acórdãos 134/1995 e 59/1999, ambos do Plenário, consolidando o entendimento no sentido de que o pagamento antecipado somente pode ocorrer quando estiver previsto no instrumento convocatório, deve estar condicionado à prestação de garantias e representar “a única alternativa para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço desejado, ou ainda quando a antecipação propiciar sensível economia de recursos” (Acórdão 276/02 – 1ª Câmara).
Desse modo, segue abaixo a abrangente jurisprudência sobre o tema no âmbito do TCU:
Quanto ao pagamento antecipado, forçoso reconhecer que ele não é vedado pelo ordenamento jurídico. Em determinadas situações ele pode ser aceito. Mas esta não é a regra. Originariamente o pagamento feito pela Administração é devido somente após o cumprimento da obrigação pelo particular.
(…) Julgo mais adequado condicionar a possibilidade de pagamento adiantado à existência de interesse público devidamente demonstrado, previsão no edital e exigência de garantias. (grifei e sublinhei). Acórdão 1442/2003.
[…] a jurisprudência do TCU também é firme no sentido de admitir o pagamento antecipado apenas em condições excepcionais, contratualmente previstas, sendo necessárias ainda garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto (grifei e sublinhei). Acórdão 1614/2013.
A antecipação de pagamento somente deve ser admitida em situações excepcionais, devidamente justificadas pelo interesse público e observadas as devidas cautelas e garantias. (grifei e sublinhei). Acórdão 1565/2015.
É vedado o pagamento sem a prévia liquidação da despesa, salvo para situações excepcionais devidamente justificadas e com as garantias indispensáveis (arts. 62 e 63, § 2º, inciso III, da Lei 4.320/64; arts. 38 e 43 do Decreto 93.872/86). (grifei e sublinhei). Acórdão 0158/2015.
Pode ser admitida a antecipação de pagamentos em casos excepcionais, desde que devidamente justificados, considerando as peculiaridades de cada caso e as garantias oferecidas, que devem ser suficientes ao resguardo do interesse da administração. Em tal caso, devem ser promovidas as devidas justificativas no âmbito do processo de contratação, com informação detalhada dos benefícios e riscos auferidos com essa antecipação. (grifei e sublinhei). Acórdão 3003/2010.
Em regra, os pagamentos relativos a contratos devem ser efetuados após o regular cumprimento das obrigações. Pagamentos antecipados somente devem ser admitidos quando houver garantias suficientes de ressarcimento ao erário em caso de não cumprimento obrigacional, comprovada economia de recursos e desde que haja a devida justificativa. (grifei e sublinhei). Acórdão 0496/2012.
À guisa de conclusão, nesse ponto específico, o Acórdão 4143/2016 – 1ª Câmara do TCU enumerou os requisitos a serem atendidos para a realização de pagamentos antecipados, quais sejam: 1) previsão no ato convocatório; 2) existência, no processo licitatório, de estudo fundamentado comprovando a real necessidade e economicidade da medida; e, 3) estabelecimento de garantias específicas e suficientes, que resguardem a Administração dos riscos inerentes à operação.
Deve-se ressaltar, ainda, que no âmbito dos Tribunais de Contas Estaduais o TCE/MG já se manifestou sobre o tema na Consulta nº 788.114: “Município. Contratação de produtora de eventos culturais. Despesa. Antecipação de parcela do pagamento. Possibilidade, desde que redunde em desconto no valor a ser dispendido, esteja prevista no instrumento convocatório, no termo de contrato e haja prestação de garantia por parte do contratado.”
De fato, forçoso reconhecer que a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, atenta à necessidade de disposição normativa que socorresse eventual necessidade em ser excepcionada a forma de pagamento restritiva, sem a possibilidade de antecipação, achou por bem trazer previsão expressa autorizativa no sentido de que:
Art. 145. Não será permitido pagamento antecipado, parcial ou total, relativo a parcelas contratuais vinculadas ao fornecimento de bens, à execução de obras ou à prestação de serviços.
§ 1º A antecipação de pagamento somente será permitida se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, hipótese que deverá ser previamente justificada no processo licitatório e expressamente prevista no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta.
§ 2º A Administração poderá exigir a prestação de garantia adicional como condição para o pagamento antecipado.
§ 3º Caso o objeto não seja executado no prazo contratual, o valor antecipado deverá ser devolvido. (grifei e sublinhei)
Assim, no contexto da lei supramencionada não há mais dúvida de que é possível, excepcionalmente, o pagamento antecipado não havendo que se cogitar a ilegalidade do dispositivo sobredito.
A lei suprarreferida trouxe como requisitos para que seja utilizado o pagamento antecipado, total ou parcialmente: 1) a demonstração da sensível economia de recursos deixando, nesse caso específico, por conta do gestor, a motivação para tanto, tendo em vista a característica atribuída de conceito jurídico indeterminado pela norma para esta previsão; ou (alternativa) 2) representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço; 3) deverá ser previamente justificado no processo licitatório; 4) estar expressamente previsto no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta; e 5) previsão expressa no edital e no contrato de que caso o objeto não seja executado no prazo contratual, o valor antecipado deve ser devolvido.
A lei nada dispôs sobre a obrigatoriedade de adoção de cautelas, as quais na inteligência da ON/AGU nº 37/2011, da Advocacia-Geral da União seriam assim consideradas: 1) a previsão de devolução do valor antecipado caso não executado o objeto; 2) a comprovação de execução de parte ou etapa do objeto; e 3) a emissão de título de crédito pelo contratado, dentre outras, apenas indicou relativamente às garantias que elas são facultativas, visto que utilizou a expressão “poderá”, logo, ficará a cargo do gestor eleger quais cautelas serão necessárias e se deverão ser consagradas, podendo incluir no caso das cautelas a serem consideradas as garantias do art. 96 da Nova Lei de Licitações e Contratos juntamente com outras que julgar devidas.
1.4. CONCLUSÃO
O objetivo deste artigo foi apresentar toda a discussão ainda existente no que se refere à viabilidade na adoção pela Administração Pública do pagamento antecipado. O caminho percorrido em torno da apresentação dos argumentos contrários e favoráveis e da interpretação das normas relacionadas ao tema possibilitou concluir que é legalmente permitido este tipo de pagamento.
Nessa lógica, levando em consideração o risco que a adoção desta prática atrai para a Administração Pública é fortemente recomendável que o gestor além de lançar motivação robusta no processo também adote certas precauções quando de sua utilização, conforme prevê a Nova Lei de Licitações, a ON/AGU nº 37/2011, o Tribunal de Contas da União, bem como cautelas, incluídas nesse caso, as garantias previstas tanto no art. 56 da Lei nº 8.666/1993, quanto no art. 96 da Lei nº 14.133/2021.
Do exposto, de acordo com os fundamentos lançados neste artigo conclui-se que é possível o pagamento antecipado nos contratos administrativos firmados sob a égide da Lei nº 8.666/1993 mesmo não havendo disposição expressa em seu texto, quanto na Lei nº 14.133/2021, a qual contemplada a hipótese em evidência.
Para além de toda a discussão sobre o tema é importante que se tenha em mente que adoção de práticas que deixem à disposição do gestor mais de uma possibilidade de escolha é medida que torna a Administração mais gerencial e menos burocrática resultando na prestação de direitos fundamentais por parte do Estado, como, por exemplo, a saúde, educação, segurança pública, dentre outros, que vão atender, ao fim e ao cabo, o interesse público por meio de realização de políticas públicas.
1.5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PEDRA, Anderson Sant’Ana. OLIVEIRA, Rafael Sérgio de. TORRES, Ronny Charles Lopes de. A Mística da Impossibilidade de pagamento Antecipado pela Administração Pública. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-mistica-da-impossibilidade-de-pagamento-antecipado-pela-administracao-publica/ . Acesso em: 24.05.2021.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª ed. São Paulo: Dialética.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Editora Fórum, 2012.
Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai – São Paulo: Editora JusPodivm, 2021.