- Das cooperativas de Trabalho
As cooperativas são caracterizadas pela associação autônoma e voluntária de pessoas para atender às suas necessidades e aspirações comuns, econômicas, sociais e culturais, por meio de empreendimento de propriedade comum e de gestão democrática[1].
Os primeiros movimentos cooperativistas foram registrados na Inglaterra em meados do século XIX, quando um grupo de tecelões demitidos resolveu se juntar para fundar uma cooperativa com a finalidade de prover as suas necessidades básicas de consumo[2]. Iniciativas similares espalharam-se por outros países da Europa, todas com o objetivo comum de encontrar uma saída própria para a ascensão econômica dos trabalhadores[3].
No Brasil, os empreendimentos cooperativistas foram ocorrer no final do século XIX, contudo os fatores propulsores foram distintos – mais ligados a benefícios econômicos às elites agrárias do que em função dos interesses sociais[4].
Entre os princípios básicos do cooperativismo, pode-se mencionar: a) adesão livre e voluntária, b) gestão democrática, c) participação econômica, d) autonomia e independência, f) educação, formação e informação, g) intercooperação e h) interesse pela comunidade[5].
As cooperativas servem de apoio ao fortalecimento dos trabalhadores, no sentido de lhes garantir a melhoria nas condições de vida. Por isso recebem apoio constitucional (art. 174, §2º da Constituição Federal de 1988). Dessa razão basilar segue a máxima de que não podem servir à mera intermediação de mão de obra[6].
- As fraudes nas cooperativas, a Súmula 281/TCU e o Termo de Conciliação com o Ministério Público do Trabalho
Desde a segunda metade do século XX muitas fraudes na constituição de cooperativas de trabalho têm sido identificadas – normalmente são utilizadas com o fim de lograr direitos trabalhistas e obter vantagens tributárias indevidas.
Em reação, o Ministério Público do Trabalho e a justiça trabalhista têm descaracterizado muitas dessas falsas cooperativas, apoiando-se no princípio da primazia da realidade, orientador das lides operárias. Como consequência, tanto as supostas cooperativas quanto os eventuais tomadores de serviços, se for o caso de terceirizações, têm sido condenados a pagar pelas verbas trabalhistas suprimidas[7].
Nesse contexto, por receio da aludida responsabilização, muitos tomadores de serviços passaram a evitar as cooperativas, e na Administração Pública a situação não foi diferente.
Diante do grande número de fraudes e tendo como objetivo proteger os trabalhadores, elo mais frágil na cadeia, em 5/6/2003 a União firmou termo de conciliação judicial com o Ministério Público do Trabalho, que a proibiu de contratar cooperativa de mão de obra para a realização de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor envolver subordinação como elemento essencial da terceirização[8]. Mais ainda, o termo vetou expressamente a contratação de cooperativas para a prestação dos seguintes serviços à União:
Serviços de Limpeza; Serviços de Conservação; Serviços de segurança, de vigilância e de portaria; Serviços de recepção; Serviços de copeiragem; Serviços de reprografia; Serviços de telefonia; Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de instalações; Serviços de secretariado e secretariado executivo; Serviços de auxiliar de escritório; Serviços de auxiliar administrativo; Serviços de office boy (continuo); Serviços de digitação; Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas; Serviços de motoristas, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio órgão licitante; Serviços de ascensorista; Serviços de enfermagem; e Serviços de agentes comunitário de saúde.
Além disso, o termo de conciliação obrigou os órgãos e entidades da União a estabelecer em seus editais regras claras atinentes às referidas vedações. No mesmo sentido, o Tribunal de Contas da União firmou jurisprudência e sumulou o tema nos seguintes termos: “É vedada a participação de cooperativas em licitação quando, pela natureza do serviço ou pelo modo como é usualmente executado no mercado em geral, houver necessidade de subordinação jurídica entre o obreiro e o contratado, bem como de pessoalidade e habitualidade” (Súmula 281, aprovada pelo Acórdão TCU 1.789/2012 – Plenário, de 11 de julho de 2012).
Tais posições relacionam-se fortemente com o rigor da aplicação da responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelos débitos trabalhistas das empresas que contrata, jurisprudência sedimentada na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Em sua leitura mais recente, a Administração responde pelos débitos trabalhistas inadimplidos pela empresa contratada em relação aos funcionários vinculados ao respectivo contrato[9].
Inaugurou-se, pois, um período de proibição das cooperativas de trabalho nas contratações públicas, ou, pelo menos, do universo de serviços terceirizados com dedicação exclusiva de mão de obra[10].
- Mudança de entendimento do TCU
Pouco tempo depois da edição da aludida Súmula 281/TCU, foi publicada a Lei 12.690, de 19 de julho de 2012, dispondo sobre as Cooperativas de Trabalho. Em seu artigo 10, § 2º, a Lei determinou: “A Cooperativa de Trabalho não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social”.
Tal dispositivo não alterou a jurisprudência da Corte de Contas, que apenas em 2019 começou a revisitar o assunto. No Acórdão 2.463/2019 – TCU – 1ª Câmara, Relator Bruno Dantas, o Tribunal reputou indevida a vedação apriorística da participação das cooperativas de trabalho em licitações, e encaminhou a referida decisão para a sua Comissão de Uniformização de Jurisprudência, a fim de que a Súmula 281 fosse reanalisada, o, entretanto, ainda não aconteceu.
Recentemente a questão foi retomada. No Acórdão 1.587/2022-TCU-Plenário, o Tribunal considerou possível a participação de cooperativa de trabalho em licitação destinada à contratação de serviços de enfermagem por hospital público federal.
Na decisão, o Tribunal optou pela deferência à escolha legislativa que proíbe à Administração embaraçar a participação de cooperativas nas licitações (art. 10, §2º, da Lei 12.690/2012). Além disso, enfatizou que o art. 10, caput, autoriza às Cooperativas a “adotarem por objeto social qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, desde que previsto no seu Estatuto Social”.
Nesse sentido, segundo a Corte de Contas, a Lei não teria instituído uma lista de serviços vedados às cooperativas, nem delegado a ato infralegal a imposição de tais limites.
Para o Tribunal a Lei conteria mecanismos próprios para avaliar a regularidade no funcionamento da cooperativa, entre os quais, as regras de criação e de funcionamento garantindo o exercício coordenado da autonomia, revezamento nas atividades de coordenação, proibição ao uso para a mera intermediação de mão de obra. Em todo caso, o legislativo teria atribuído ao Ministério do Trabalho a função de fiscalizar o adequado cumprimento da Lei, e aplicar as sanções pertinentes, ressalvada a hipótese de ação judicial para dissolução da cooperativa fraudadora (art. 17, caput e §3º, da Lei 12.690/2012).
Por fim, o Tribunal determinou novamente o envio da decisão à sua Comissão de Uniformização de Jurisprudência, a fim de revisitar a Súmula 281/TCU. Espera-se, assim que a matéria seja rediscutida em breve.
- Ilegalidade na vedação à participação das Cooperativas de Trabalho nas licitações
Em consonância com a ulterior decisão do TCU, deve-se reconhecer que o artigo 10, §2º, da Lei 12.690/2012, veda expressamente a proibição à participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas.
§ 2º A Cooperativa de Trabalho não poderá ser impedida de participar de procedimentos de licitação pública que tenham por escopo os mesmos serviços, operações e atividades previstas em seu objeto social.
A própria Lei 8.666/1993, após alteração promovida pela Lei 12.349/2010, já previa regra no mesmo sentido:
Art. 3, §1º É vedado aos agentes públicos:
I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas (…)
É verdade que o art. 5º da Lei 12.690/2012 repudia a utilização das cooperativas de trabalho para intermediação de mão de obra subordinada. Aliás, é comum o apelo a esse dispositivo para esvaziar o anterior, o art. 10, §2º. A partir de mera suposição de relação de subordinação, gestores públicos e o próprio judiciário têm proibido a participação de cooperativas em contratações públicas[11].
Entretanto, é necessário lembrar, assim como destacou a Corte de Contas, que aludida Lei foi clara ao permitir a adoção de qualquer objeto social pelas cooperativas de trabalho, desde que prevista em seu Estatuto Social (art. 10, caput). Ou seja, o legislador não inferiu qualquer grupo de atividades que seriam, por sua própria essência, vedados peremptoriamente a essas entidades. O dispositivo possui eficácia plena, não admitindo, inclusive, regulamentação infralegal em sentido contrário.
A natureza do serviço não implica necessariamente subordinação. No caso concreto analisado pelo Tribunal de Contas da União, a contração envolvia serviços de enfermagem. A acusação imediata era de que necessariamente haveria subordinação nesse tipo de serviço, o que não é verdade.
É plenamente possível que uma cooperativa de trabalho se organize para a prestação de serviços de enfermagem, com rodízio nas funções de comando, a fim de garantir autonomia aos cooperados prestadores de serviços.
A existência de regras – a exemplo das que definem nível de qualidade do atendimento, horários, tolerância máxima a atrasos, sanções a comportamentos e condutas inapropriados – constitui prática corriqueira em qualquer contratação, mesmo na de cooperativas. Não há falar em relação de subordinação e pessoalidade pelo simples fato de tais condicionantes existirem.
Na contratação de prestador de serviços de enfermagem haverá uma série de regras a serem cumpridas, e a cooperativa, na qualidade de contratada, deve garantir esse cumprimento de acordo com o seu modelo de gestão operacional, o que não externa qualquer anormalidade.
A autonomia do cooperado não lhe garante liberdade irrestrita para trabalhar onde e quando decidir. Deve haver comprometimento com as regras compromissadas pela cooperativa junto aos seus clientes, sob pena de inviabilizar-se a própria entidade.
Caso verificado desvio no funcionamento da entidade – suspeita de vínculo empregatício disfarçado, por exemplo, cabe ao gestor socorrer-se aos meios correcionais cabíveis.
É importante não confundir os limites à terceirização pela Administração Pública, regulamentada em âmbito federal pelo Decreto 9.507/2018, com os requisitos para a contratação de cooperativas.
A exemplo, o art. 3º do decreto proíbe a contratação para execução indireta dos seguintes serviços:
I – que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle; II – que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;
III – que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e
IV – que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
Eventual irresignação quanto à terceirização dos serviços de enfermagem por parte de um hospital público, por exemplo, deve ser manifestada e discutida no seguinte plano: “poder ou não o hospital terceirizar referida atividade”. O que incluiria argumentos típicos acerca da existência subordinação e hierarquia entre os gestores do hospital e os prestadores de serviços de enfermagem.
Em que pese essa reflexão seja de enorme relevância sob o aspecto dos limites à terceirização, não é disso que tratamos aqui. Por hipótese, eventual conclusão de que o serviço de enfermagem não pode ser terceirizado – por constituir atividade finalística do hospital público ou porque sua realização envolve subordinação e habitualidade entre a Administração e o prestador de serviço – deverá valer tanto para as cooperativas quanto para as empresas. Estaremos a tratar de uma vedação relativa ao objeto e não à natureza jurídica do contratado.
Uma vez permitida a contratação – o que tem sido a prática atual – tanto empresas quanto cooperativas devem poder concorrer.
- Mecanismos legais de prevenção e controle
A Lei 12.690/2012 contempla uma série de mecanismos de prevenção e controle ao uso fraudulento das cooperativas. Nesse sentido, o art. 2º, §1º, prevê a fixação de regras de funcionamento da cooperativa em assembleia geral, as quais garantam o exercício coletivo e coordenado da autonomia. O parágrafo §2º desse dispositivo impõe a definição em assembleia geral da forma de execução dos trabalhos da cooperativa.
O art. 7º, § 6º, regulamenta a coordenação de atividades realizadas fora do estabelecimento da cooperativa, determinando o revezamento na função de coordenador das atividades, para evitar a formação de vínculos de subordinação e hierarquia.
O artigo 17, §§1º e 2º estabelece que o descumprimento da regra de rodízio aludida faz presumir intermediação de mão de obra, com a consequente sanção à cooperativa, estipulada, na Lei, em R$ 500,00 por trabalhador prejudicado, podendo ser duplicada em caso de reincidência.
O artigo 18 submete a falsa cooperativa às sanções penais, cíveis e administrativas cabíveis, bem como à ação judicial visando à sua dissolução.
Por fim, o artigo 17 determina que o Ministério do Trabalho fiscalize o adequado cumprimento da Lei, e aplique as sanções pertinentes, mantida, em todo caso, a possibilidade de ação judicial para dissolução da cooperativa fraudadora.
Nas justificativas declinadas no Projeto da Lei 12.690/2012 constava a necessidade de combater o mau uso ou o uso fraudulento dessas entidades[12]. E nesse intento a norma foi costurada com maiores detalhes quanto aos princípios de funcionamento, o respeito à autonomia e à gestão participativa, a fiscalização e punição para o uso de cooperativas como meras intermediadoras de mão de obra[13].
Com tais requintes a norma objetivou impor maiores controles ao uso fraudulento das cooperativas, e, sobretudo, reiterar a importância dessas entidades e a necessidade apoiar a sua inserção no mercado.
Ademais, a Lei 12.690/2012 preocupou-se em instituir direitos trabalhistas mínimos aos sócios (art. 7º), como, por exemplo, o direito ao salário-mínimo ou ao piso da categoria, descansos semanal e anual remunerados, hora extra, entre outros.
- Proteção constitucional às cooperativas
As verdadeiras sociedades cooperativas de trabalho resultam da associação legítima entre pessoas com objetivos comuns, e que veem nessa associação uma forma de driblar crises proporcionadas pelo capitalismo. É uma tentativa de superar o trabalho assalariado e almejar ganhos repartidos, o que de outro modo seria impossível para a grande maioria dos trabalhadores[14].
Do texto constitucional extrai-se o manifesto interesse do estado brasileiro no apoio e incentivo ao cooperativismo (art. 174, § 2º, CF/1988). Dever antes previsto no §2º do art. 2º, do Estatuto Legal das Cooperativas, Lei 5.764/1971, recepcionado pela CF/1988: “A ação do Poder Público se exercerá, principalmente, mediante prestação de assistência técnica e de incentivos financeiros e creditórios especiais, necessários à criação, desenvolvimento e integração das entidades cooperativas”.
Cabe lembrar também da garantia fundamental de não interferência estatal no funcionamento das cooperativas (art. 5º, XVII, CF/1988).
A partir dessa ideia, mas ciente da realidade fática das fraudes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou a Recomendação 193/2002, orientando os Estados a: “8.1 b) assegurar que não se instituam cooperativas, ou sejam usadas, como artifícios para escapar a obrigações trabalhistas ou para mascarar relações de emprego, e combater falsas cooperativas que violam direitos trabalhistas, garantindo a aplicação da legislação trabalhista em todas as empresas”.
Ao proibir a participação da cooperativa de trabalho em determinada licitação, a Administração atua de forma contrária, desincentivando e marginalizando todas as cooperativas. A pretexto de coibir as falsas cooperativas, a Administração cerceia todas elas.
Não obstante, tal obstrução é descontextualizada. Na economia atual, de globalização e institucionalização dos modelos uberista e de economia de plataformas, a liberdade de empreender foi emancipada dos quadros jurídicos nacionais, enquanto o modelo sindical ficou ali preso[15].
A constatação do declínio da tradicional relação entre os trabalhadores e os donos do capital dentro de um mesmo ordenamento jurídico – e os desafios que isso impõe à manutenção de condições dignas de vida aos trabalhadores – deveria servir de incentivo à busca de outras formas de arranjo produtivo, como o modelo cooperado, por exemplo.
As cooperativas foram historicamente constituídas para o desenvolvimento pessoal dos indivíduos, buscando independência econômica, melhoria de suas condições de vida, com foco na superação do modelo “empregado vs dono do capital”.
Portanto não é apenas inconstitucional e ilegal proibi-las nas contratações públicas; é sobretudo equivocado e desinteressante.
- As cooperativas e a isonomia na licitação
Um dos princípios mais caros à licitação é a isonomia. Dele parte toda a razão de ser do instituto – colocar os competidores em condições de igualdade para que a melhor proposta vença, mantendo-se a disputa justa e impessoal.
Ocorre que a isonomia não é absoluta, e isso não é novidade nas licitações. A igualdade de condições buscada no certame é condicionada pelas diferenças naturais do mercado, da legislação fiscal, comercial, tributária, trabalhista e previdenciária.
As cooperativas – por não constituírem relações de emprego com os cooperados – atuam sem os custos dos encargos trabalhistas típicos -, contribuição para a previdência, para o sistema “S”, FGTS, 13º salário, verbas rescisórias, entre outros. Nesse sentido, não raro ouve-se que elas não poderiam participar das licitações pois comprometeriam a sua isonomia, já que teriam vantagens competitivas não extensivas às empresas em geral.
Todavia, a diferenciação é feita pelo próprio estado brasileiro, para incentivar esses tipos de entidades, compreendendo que elas possuem maiores dificuldades se comparadas com as demais. Prestigiou-se a equidade.
Nesse mesmo sentido, as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte gozam dos privilégios previstos na Lei Complementar 123/2006, como, por exemplo, empate ficto, licitação exclusiva e lote exclusivo (art. 44 e 48 da referida Lei). Esses benefícios também não são estendidos às demais empresas, e nem por isso se pode alegar a quebra de isonomia. Trata-se de política pública que tem por objetivo compensar a hipossuficiência das pequenas empresas, tratando-as desigualmente na medida de suas desigualdades.
Ainda, algumas empresas são beneficiadas pela desoneração da folha de pagamento, prevista na Lei 12.546/2011, prorrogada até 2023 pela Lei 14.288/2021, mediante a qual deixam de pagar os habituais 20% de encargos sobre a folha de salários e contribuem com alíquota inferior a 5% sobre o faturamento.
Para dar mais um exemplo, os regimes tributários a que são submetidas as empresas interferem fortemente nos seus encargos, diferenciando as condições de participação de umas em relação às outras.
Observe-se que em todas as situações mencionadas um grupo de empresas aproveita de forma desigual de um incentivo estatal, e isso não constitui quebra de isonomia nas licitações. A tentativa, na licitação, de compensar essa diferença, é ilegítima, porquanto contrária à própria política pública que instituiu o benefício.
- Mitigação de riscos para a Administração
No plano federal, a Instrução Normativa 5/2017-Seges/MPDG contempla procedimentos de prevenção às falsas cooperativas. Em síntese, deve-se exigir das entidades a apresentação de um modelo gestão operacional contemplando a possibilidade de execução dos serviços com autonomia pelos cooperados e que a gestão operacional do serviço seja executada de forma compartilhada ou em rodízio (Art. 10).
Além disso, nas contratações de serviços com dedicação exclusiva de mão de obra, a mesma instrução normativa prevê uma série de rotinas de fiscalização administrativa – inicial, mensal, procedimental – expedientes que podem bem servir ao gestor público para manter a vigilância da situação.
Por outro lado, a justiça obreira precisa reconhecer os limites de atuação da Administração Pública ao aplicar a Súmula 331/TST que impõe a responsabilidade subsidiária a esta nos casos de culpa na fiscalização do cumprimento de direitos trabalhistas por parte da contratada.
Sabendo-se que é impossível vedar a participação de cooperativas nas contratações públicas, que os mecanismos de fiscalização são limitados, e que, eventualmente, eles podem não detectar a fraude na constituição da cooperativa contratada, não há falar em culpa da Administração na fiscalização do contrato se os procedimentos cabíveis foram adotados.
Dizer o contrário – que em todo caso a Administração responderia no caso da desconstituição de uma cooperativa – é esvaziar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, de que “a responsabilidade da Administração não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada”[16].
Exigir condutas desarrazoadas, excessivamente burocráticas e ineficientes por parte da Administração, a pretexto de afastar sua culpa na fiscalização do cumprimento de obrigações trabalhistas da contratada, é, em verdade, uma maneira de não se curvar à posição do Supremo exposta acima, e aos comandos do art. 71, §1º, da Lei 8.666/1993 e, agora, do art. 121, §2º, da Lei 14.133/2021.
Esse mesmo comportamento
refratário fez surgir ideias como as de que para não correr qualquer tipo de
risco a Administração deveria vedar as cooperativas nas contratações públicas.
[1] Organização Internacional do Trabalho. R 193 – Sobre a promoção de Cooperativas. [online] Disponível em http://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242764/lang–pt/index.htm, acesso em 23/6/2020.
[2] ZAGATTO, Thiago Anderson. Cooperativas em contratações públicas e a amplitude da responsabilidade subsidiária da Administração Pública. Disponível em https://www.novaleilicitacao.com.br/2020/06/24/cooperativas-em-contratacoes-publicas-e-a-amplitude-da-responsabilidade-subsidiaria-da-administracao-publica/, acesso em 15/7/2022.
[3] Silva, Paulo Renato Fernandes da.. Cooperativas de Trabalho, Terceirização de Serviços e Direito do Trabalho (p. 19). Edição do Kindle.
[4] Silva, Paulo Renato Fernandes da.. Cooperativas de Trabalho, Terceirização de Serviços e Direito do Trabalho (p. 20). Edição do Kindle.
[5] Reconhecidos na Assembleia de 2002, da Organização Internacional do Trabalho — OIT.
[6] “Corroborando essa noção e adaptando-a ao problema da cooperativa, merece estaque também a lúcida posição de Jorge Luiz Souto Maior: Não é com a prestação de trabalho, mediante o sistema de cooperativas, sem a formação de vínculo empregatício, que os trabalhadores irão alcançar melhores condições de vida, até porque, nesse sistema desvirtuado, os trabalhadores não deixam de ser meros prestadores de serviços, não participando da atividade econômica e não usufruindo, livremente, da produção de seu trabalho. Apenas recebem uma contraprestação pecuniária pelo serviço prestado, como ocorre no sistema trabalhista, com o evidente prejuízo de não terem sua integridade física e mental protegidas pelas regras pertinentes à segurança e higiene no trabalho, além de tal situação exercer influência negativa no custeio das garantias sociais”. Silva, Paulo Renato Fernandes da.. Cooperativas de Trabalho, Terceirização de Serviços e Direito do Trabalho (p. 228). Edição do Kindle.
[7] A exemplo, tome-se a posição assumida no TST-AIRR-16100-45.2005.5.01.0020.
[8] Cláusula Primeira – A UNIÃO abster-se-á de contratar trabalhadores, por meio de cooperativas de mão-de-obra, para a apresentação de serviços ligados às suas atividades-fim ou meio, quando o labor, por sua própria natureza, demandar execução em estado de subordinação, quer em relação ao tomador, ou em relação ao fornecedor dos serviços, constituindo elemento essencial ao desenvolvimento e à prestação dos serviços terceirizados, sendo eles: Serviços de Limpeza; Serviços de Conservação; Serviços de segurança, de vigilância e de portaria; Serviços de recepção; Serviços de copeiragem; Serviços de reprografia; Serviços de telefonia; Serviços de manutenção de prédios, de equipamentos, de veículos e de instalações; Serviços de secretariado e secretariado executivo; Serviços de auxiliar de escritório; Serviços de auxiliar administrativo; Serviços de office boy (continuo); Serviços de digitação; Serviços de assessoria de imprensa e de relações públicas; Serviços de motoristas, no caso de os veículos serem fornecidos pelo próprio órgão licitante; Serviços de ascensorista; Serviços de enfermagem; e Serviços de agentes comunitário de saúde.
Cláusula Segunda – Considera-se cooperativa de mão-de-obra, aquela associação cuja atividade precípua seja a mera intermediação individual de trabalhadores de uma ou várias profissões (inexistindo assim vínculo de solidariedade entre seus associados), que não detenham qualquer meio de produção, e cujos serviços sejam prestados a terceiros, de forma individual (e não coletiva), pelos seus associados.
Cláusula Terceira – A UNIÃO obriga-se a estabelecer regras claras nos editais de licitação, a fim de esclarecer a natureza dos serviços licitados, determinando, por conseguinte, se os mesmos podem ser prestados por empresas prestadoras de serviços (trabalhadores subordinados), cooperativas de trabalho, trabalhadores autônomos, avulsos ou eventuais;
Parágrafo Primeiro – É lícita a contratação de genuínas sociedades cooperativas desde que os serviços licitados não estejam incluídos no rol inserido nas alíneas ‘a’ a ‘r’ da Cláusula Primeira e sejam prestados em caráter coletivo e com absoluta autonomia dos cooperados, seja em relação às cooperativas, seja em relação ao tomador dos serviços, devendo ser juntada, na fase de habilitação, listagem contendo o nome de todos os associados. Esclarecem as partes que somente os serviços podem ser terceirizados, restando absolutamente vedado o fornecimento (intermediação de mão-de-obra) de trabalhadores a órgãos públicos por cooperativas de qualquer natureza.”
[9] Recurso Extraordinário 760931/STF.
[10] Para usar um termo cunhado pelo art. 17 da Instrução Normativa n. 5/2017 do então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
[11] STJ, REsp 1.204.186/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda TUrma, DJE de 29/10/2012). no mesmo sentido: STJ, RMS 25.097/GO, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE de 12/12/2011; REsp 1.185.638/rs, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJE de 10/09/2010; AGrg no REsp 960.503/rs, rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJE de 08/09/2009; AGrg no REsp 947.300/rs, rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJE de 16/12/2008.
[12] Após a edição do parágrafo único ao artigo 442 da CLT, multiplicaram-se as cooperativas de mão de obra, organizadas de acordo com a lei n° 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas. A crescente utilização de cooperativas deve-se à necessidade de redução de custos, num cenário competitivo, e a busca de oportunidade de trabalho por pessoas que, não fossem as cooperativas, estariam na informalidade ou desocupadas.
Deve-se reconhecer que a Lei 5.764/71, apresenta lacunas no que concerne as cooperativas de mão de obra, servindo de estímulo à formação de falsas cooperativas de trabalho. É indispensável se assegurar a formação de cooperativas de mão-de-obra, pela contribuição que podem dar à geração de trabalho. O projeto ora apresentado visa suprir as ausências da lei, inspirando-se na Lei 6019/74, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e insere o cooperado no programa de Alimentação do Trabalho (PAT). Face ao exposto, solicito aos demais parlamentares apoio para a aprovação da matéria em questão.
[13] ZAGATTO, Thiago Anderson. Cooperativas em contratações públicas e a amplitude da responsabilidade subsidiária da Administração Pública. Disponível em https://www.novaleilicitacao.com.br/2020/06/24/cooperativas-em-contratacoes-publicas-e-a-amplitude-da-responsabilidade-subsidiaria-da-administracao-publica/, acesso em 15/7/2022.
[14] ZAGATTO, Thiago Anderson. Cooperativas em contratações públicas e a amplitude da responsabilidade subsidiária da Administração Pública. Disponível em https://www.novaleilicitacao.com.br/2020/06/24/cooperativas-em-contratacoes-publicas-e-a-amplitude-da-responsabilidade-subsidiaria-da-administracao-publica/, acesso em 15/7/2022.
[15] SUPIOT, Alain. L’esprit de Philadelphie. La justice sociale face au Marché total, Paris, Seuil, 2010, 182 [Versão em Português: O Espírito de Filadélfia – A Justiça Social Diante do Mercado Total. Alain Supiot. Tradução de Tânia do Valle Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014]
[16] Recurso Extraordinário 760931.