Coautoria Juliana Picinin
Advogada. Sócia da Carvalho Pereira Fortini Advogados. Mestre em Direito pela UFMG. Especialista em Psicologia Positiva e Desenvolvimento Humano. Ex- Assessora Chefe da Assessoria Jurídica da Emater (Governo do Estado de Minas Gerais). Ex- Assessora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Em 3/2/2022, o Professor Antonio Augusto Anastasia tomou posse como Ministro do Tribunal de Contas da União, passando a atuar na 2ª Câmara e nos casos submetidos ao Plenário daquela Corte.
As competências do Tribunal de Contas da União estão descritas na Constituição Federal no Art. 71. O TCU auxilia o Congresso Nacional no exercício do controle externo.
Em que pese os posicionamentos do Tribunal de Contas da União possam ser revistos pelo Poder Judiciário, seus acórdãos são relevantes em especial na matéria de licitações e contratos.
A vasta experiência profissional do Ministro Antonio Anastasia, como gestor e administrador público e como Professor de Direito Administrativo da UFMG, justifica a elevada expectativa em torno de seus pronunciamentos agora como Ministro no TCU.
Deve-se destacar que S. Exa. esteve à frente da produção de importantes leis como a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro e a Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Por tudo isso, para festejar seus primeiros 4 meses à frente de seu novo assento, seguem alguns acórdãos relatados por S.Exa., para conhecimento do público em geral.
O primeiro deles diz respeito a como se deveria compreender a expressão “erro grosseiro”, como uma das possíveis fontes de responsabilização do agente público. Embora, em princípio, isso possa parecer desinteressante para as empresas, não o é, porque se vive hoje um apagão de canetas, inclusive diante de pedidos de reequilíbrio, porque os agentes temem ser responsabilizados, ainda que reconheçam a pertinência do pleito.
A norma hoje vigente (art. 28 da LINDB, Decreto-Lei nº 4.657/1942), que tem as digitais do eminente Ministro Mineiro, estabelece que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
Por meio da lei se pretende melhorar a qualidade das decisões administrativas, judiciais e dos órgãos de controle, fazendo com que o agente público, ao longo do percurso decisório, pondere sobre consequências que as condutas podem provocar e explicite as razões que conduziram à conclusão adotada, em apreço ao já previamente existente princípio da motivação.
A referida lei também foca a necessidade de incrementar a segurança jurídica e proteger os agentes públicos do furor punitivista.
O setor da infraestrutura que, apesar de esforços legislativos como as Leis do RDC, PPP e PPI, ainda patina, depende do vigor da Administração Pública e de seus agentes de empreenderem buscando soluções e criando, por vezes, modelagens novas.
A LINDB deseja o agir corajoso, criativo, mas sempre responsável e motivado. A LINDB pretende romper a paralisia cujos danos são sentidos cotidianamente.
Por isso importa ver como vem sendo lida e cumprida, com a revisão do seu idealizador.
Esse primeiro exemplo, portanto, está na aplicação da ideia de “erro grosseiro”, pois a aplicação ampliativa ou restritiva do conceito vai significar a punição ou a absolvição do gestor público e, junto com esse, talvez do particular na qualidade de “beneficiário do ato”.
O que se assiste, muitas vezes, é uma sanha de punir pelo simples fato de o julgador não concordar com as escolhas de outrora, mesmo que estivessem essas no “quadro de leituras possíveis”.
Ou, outras vezes, porque se retiram do contexto as escolhas administrativas, sem apurar em que condições elas de fato se deram.
Vejamos como isso se confirma na relatoria do Em. Ministro:
Estamos falando, inicialmente, do acórdão nº 2.012/2022, relativo a julgamento realizado em 3/5/2022, acompanhado por seus pares, em que o Ministro mineiro faz um detalhado apanhado dos acórdãos já emitidos pela Corte a respeito de como compreender a expressão “erro grosseiro” e como a conceber diante de casos concretos.
Além de fazer uma organizada coletânea, própria de sua didática, o Ministro aponta que o Tribunal já caminhou em sentidos distintos para conceber como “erro grosseiro” deve ser entendido no caso concreto.
Em que pese as duas correntes já havidas no TCU desde a renovação da LINDB levem em conta que se está falando sobre culpa grave, a primeira delas fala do que se espera do “homem médio” (tese encabeçada pelo Ministro Benjamin Zymler) e a segunda delas fala do que se espera do “homem ordinário”.
Na ótica do Ministro mineiro alguns cuidados devem ser tomados:
a) O primeiro deles é entender que erro “grosseiro” não é qualquer tipo de erro, havendo uma aceitação de que humanos podem errar e possível esperar que isso aconteça. Portanto, não existe punição ao erro em si, mas ao erro que grosseiramente foi cometido, demonstrando uma gravidade destacada na negligência, imperícia ou imprudência de quem assim escolhe agir;
b) O segundo deles é entender que não existe erro grosseiro sem avaliação do caso concreto, escapando do objetivo da lei ou do intérprete proceder-se a uma generalização de comportamentos e que sejam cegos à investigação minuciosa do caso para compreensão do que, de fato, interferiu no agir do agente público;
c) O terceiro deles é entender que não se pode desconsiderar que o agente público não tem determinadas habilitações técnicas (e que nem são pré-requisitos de ingresso no cargo) e, portanto, deve ser avaliado pelo que se espera do efetivo exercício de sua atividade;
d) O quarto deles é entender que o agente público não pode ser responsabilizado por todo e qualquer comportamento de sua equipe, atribuindo-se-lhe uma obrigação de a tudo investigar, revisar, avaliar e remediar, se praticados por seus delegatários, sob pena de se inviabilizar o exercício das funções próprias e privativas desse agente, desconsiderar a relevância das divisões de tarefas e a responsabilidade individual na ocorrência dos fatos;
e) O quinto deles é avaliar, com profundidade e seriedade, a origem dos fatos que desencadearam o resultado danoso. Não apenas avaliar o fim da cadeia de atos e transportar a responsabilidade a quem não vigiou ou mal escolheu o executor. Necessário, portanto, nessa análise da raiz dos atos entender qual comportamento, de fato, seria desencadeador das condutas praticadas.
Com isso, é possível afirmar que somente uma avaliação profunda e criteriosa é capaz de indicar se, no caso concreto, outro agir seria esperado do agente público e sobre o qual a opção pelo pior comportamento deva ser punida.
Segundo o Ministro mineiro, o TCU “vem se inclinando no sentido de considerar como erro grosseiro, para o exercício do poder sancionatório desta Corte de Contas, o que decorre de grave inobservância do dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave”, negritos originais, a partir de acórdãos proferidos após a edição da lei de 2018.
Assim definiu, ao final, o Ministro mineiro:
a) “esta Corte tem precedentes no sentido de que teoria da culpa da má escolha (in eligendo) ou da culpa da ausência de fiscalização (in vigilando) não impõe ao prefeito o dever de fiscalizar todo e qualquer ato praticado pelos gestores municipais sob sua tutela”. Citando acórdão de relatoria do Ministro José Jorge (na esteira de várias outras citações que promove), “a realização do controle nesses moldes torna inviável tanto a fiscalização pretendida, em face do grande número de atos a serem examinados, quanto o exercício do mandato, eis que não haverá tempo hábil para o desempenho das funções no executivo municipal”. Essa posição claramente atende à LINDB, no Art. 20 da redação anastasiana, quanto à avaliação das consequências práticas do decidir;
b) Ao final, então, após avaliar ponto a ponto as imputações fáticas que constavam da acusação, concluiu: “além de terem sido de responsabilidade direta dos referidos técnicos responsáveis (que, diga-se, possuíam habilitação técnica específica), não vislumbro culpa grave ou erro grosseiro na conduta do ex-gestor municipal no trato com esses aspectos estritamente técnicos, não afetos à atividade de Prefeito Municipal (critério do ‘gestor médio’)”.
Portanto, desse posicionamento se extrai que o Ministro considerou que não é “qualquer homem médio”, senão quando os atos investigados são afetos à atividade de Prefeito, dando um sentido estrito à interpretação da atividade e da expertise esperados.
Para além disso, esse julgado possui outro importante referencial que é, ao reconhecer a responsabilidade em tese de técnicos que antecederam à ação do Prefeito, entender que o princípio da segurança jurídica também orienta a que não se inaugurasse, a este tempo, um processo de investigação e responsabilização.
Como dito pelo Ministro, “dado o longo tempo decorrido desde o início do empreendimento, não se mostra possível, nesta fase processual, o chamamento ao processo de outros responsáveis ou autoridades delegadas, dado o comprometimento da ampla defesa e do contraditório, chamamento esse que deveria ter ocorrido na fase inicial de citação, ou mesmo durante a fase interna da TCE (tomada de contas especial)”. Isso especialmente considerando que os contratos investigados haviam sido celebrados há 15 anos.
Precisamos sempre afastar o pressuposto de que a atuação fiscalizatória é sempre uma ação punitiva e de que isso melhora o ambiente administrativo decisional.
A lógica punitivista, na verdade, gera uma paralisia, um pânico, entre os administradores públicos que preferem não decidir, transferindo essa competência decisória para outras esferas.
O segundo acórdão a ser destacado é o 988/2022, julgado em 4/5/2022, em face da Companhia Docas do Rio de Janeiro, no qual foi determinada a abstenção de prorrogar contrato firmado em prestação de serviços de levantamento batimétricos periódicos nos acessos aquaviários de seus portos, considerando que na fase da licitação deixou de ser oportunizado à licitante de melhor proposta apresentar documentos preexistentes que avalizavam a possibilidade de ser contratada, preterindo-se não só o menor preço, mas também o direito à diligência.
Conforme decisão:
a) “Não conceder a manifestação prévia do licitante no caso de possível desclassificação fere o Art. 5º, inc. LV da Constituição” Federal (que trata dos princípios do contraditório e da ampla defesa, com todos os recursos e meios a esses inerentes);
b) “Nos casos em que os documentos faltantes relativos à habilitação em pregão forem de fácil elaboração e consistam em meras declarações sobre fatos preexistentes ou em compromissos pelo licitante, deve ser concedido prazo razoável para o devido saneamento, em respeito aos princípios do formalismo moderado e da razoabilidade, bem como ao Art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999”.
Além de se destacar do acórdão a concepção de que formalismo exacerbado não atende a interesse público algum, o que deve ser destacado, importa considerar que o Ministro ponderou o interesse público para mais além: mesmo entendendo que o contrato firmado é nulo porque desrespeitou um dever de diligenciamento na fase licitatória, a necessidade de prestação contínua do objeto ao órgão informava dever-se modular os efeitos da decisão.
Assim, mesmo nulo o contrato continuaria a gerar efeitos, para não deixar o órgão a descoberto. No entanto, porque nulo fora, não foi permitido ao órgão o prorrogar, obrigando-se a realizar novo processo licitatório onde as impropriedades não persistissem.
Portanto, esse encontro conciliatório das soluções significa aplicar outro dispositivo da LINDB trazido na lei de 2018 de sua autoria: avaliar as consequências práticas da decisão e ponderar possíveis soluções alternativas.
Em que pese o acórdão não tenha feito referência expressa aos dispositivos no voto, é fato que os aplicou corretamente, modulando os efeitos para que a Administração Pública se corrigisse, mas não ao custo de ficar desassistida de um serviço contínuo e necessário às suas finalidades.
O terceiro acórdão a ser destacado é o 779/2022, julgado em 22/2/2022, em uma Tomada de Contas Especial (TCE) oriunda do Fundo Nacional de Saúde, relativos a irregularidades na aplicação de recursos do SUS para compra de medicamentos.
O posicionamento anterior para quando a aquisição de medicamentos se desviava do Plano Plurianual da Saúde é que, além de julgar irregulares as contas e aplicar multa ao servidor responsável, também se determinava que o ente público respectivo procedesse à devolução dos recursos ao Fundo.
Sobre esse último ponto o Ministro apresentou posicionamento contrário, sob fundamentos que interessam a outros ramos de serviços e produtos (inclusive engenharia) que é a possibilidade de utilização da medida de mau emprego de verbas como política predatória.
Explica o Ministro, com base na área técnica da Corte: “a determinação para que a municipalidade recomponha os próprios cofres municipais pode ter o efeito contrário, ou seja, servir de estímulo para que o gestor pratique o desvio de objeto. Isso porque, ciente de que a determinação, de acordo com os necessários trâmites processuais, não ocorrerá durante o seu mandato, o gestor pode se sentir estimulado a praticar o ilícito de forma a prejudicar o seu sucessor, eventual adversário político. Ou seja, o prefeito antecessor pratica o ato ilícito para atender interesses próprios de sua gestão e ainda prejudica o seu sucessor”.
Avaliar as consequências práticas do decidir é, como ressaltamos sobre o acórdão anterior, aplicar o que determina a LINDB (Arts. 20 e 21).
O quarto acórdão a ser destacado é o de nº 924/2022, julgado em 27/4/2022, esse já pelo Plenário da Corte e sobre pregão realizado pelo Ministério da Saúde.
A celeuma dizia respeito à ausência de diligenciamento do órgão para que o licitante pudesse esclarecer a suficiência dos atestados de capacidade técnica apresentados e a impropriedade de o edital exigir que o atestado abarcasse para além das parcelas de maior relevância e valor significativo para o objeto.
Segundo o Ministro, deixando de acompanhar o posicionamento da área técnica no primeiro argumento, não haveria utilidade na declaração de nulidade porque, mesmo se reconhecendo que o órgão deixou de diligenciar quando podia, ou seja, na fase habilitatória, poderia o licitante interessado que ter apresentado documentos, atestados ou esclarecimentos na fase recursal e não o fez.
Com isso, seu comportamento demonstrou que em qualquer outro momento não seria a medida útil, não havendo nulidade declarável apenas em amor à forma.
Para além de assim se aplicar um conceito clássico (pas de nullitè sans grief, ou seja, não existe nulidade sem perquirir prejuízo), isso mais uma vez é aplicar o disposto nos Arts. 20 e 21 da LINDB.
Portanto, em que pese se oriente o órgão a não mais cometer a impropriedade, não há razão para desfazer o ato por esse motivo.
Como dito antes, adota-se viés não punitivista, o que condiz com o espírito da ação de controle.
Para além disso o acordão entendeu procedente a representação para repreender o órgão no segundo fundamento, ou seja, a exigência de atestados para além dos limites legais, devendo esses se restringirem às parcelas de maior relevância e valor significativo.
O quinto e último acórdão dessa seleção é o de nº 785/2022, julgado em 22/2/2022, avaliando atos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Em que pese a matéria de fundo não seja atinente a licitações e contratos ou tema aplicável à engenharia, a LINDB volta à lume para orientar a decisão outra vez.
Neste caso para realçar o chamado “princípio da não-surpresa” que foi trazido pela mudança legislativa em 2018.
Segundo o Ministro, “nossa legislação de Direito Administrativo reprova a aplicação retroativa de entendimentos jurisprudenciais em desfavor do administrado”, ou seja, “a revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas” (Art. 24).
Essa aplicação interessa, sobremaneira, às empresas de engenharia que vêm, há anos, respondendo a processos administrativos e judiciais, por acórdãos que posteriormente o TCU publicou, com aplicação retroativa prejudicial à pessoa jurídica.
Isso tem se dado, historicamente, tanto por acórdãos do próprio TCU quanto por manifestações de outros órgãos de controle em cascata. Daí a relevância do acórdão.
Absoluta ênfase se dê, então, à conclusão do acórdão, acompanhado por seus pares: “em que pese a existência de teses contrárias à aplicação dessas normas ao controle externo exercido por este Tribunal, a diretriz legislativa não pode ser ignorada, principalmente quando se ponderam as peculiaridades do caso concreto. Isso porque, ainda que se trate de um ato de pensão publicado em 2020, após a nova orientação jurisprudencial desta Corte, a eventual impugnação da sua estrutura de proventos, após ter sido analisada, chancelada e registrada há mais de cinco anos por este mesmo Tribunal, implicaria, na essência, uma revisão de entendimento sobre o caso concreto, o que, a meu sentir, atrai as regras legais de vedação consignadas”.
Assim, portanto, tem o Eminente Ministro mineiro contribuído para tornar concreta e bem aplicada, no âmbito do controle externo, importante legislação que aportou ao sistema jurídico, tão relevante para a segurança jurídica e o impulsionamento do decidir administrativo.