A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLLCA, a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, foi promulgada e publicada sem previsão de uma vacatio legis. Isso porque o seu art. 194 diz que esse diploma entra em vigor na data da sua publicação. Enxergamos aqui uma fórmula problemática para uma norma da magnitude da Lei nº 14.133/2021. Porém, é indene de dúvidas que o legislador pátrio fez a opção da vigência imediata, desafiando a si próprio em face do disposto no art. 8º da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que reserva o vigor instantâneo para leis de “pequena repercussão”.
O art. 191 da NLLCA prevê um período de convivência de 2 (dois) anos entre o novo regime e o sistema tradicional. Isto é, embora a Lei nº 14.133/2021 já esteja em vigor, continuam vigorando também os diplomas relativos ao que denominamos de regime tradicional, que são a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002 (Lei do Pregão), e a Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011 (Lei do RDC). Estas últimas só estarão revogadas em 1º de abril de 2023, ou seja, 2 (dois) anos após a publicação da NLLCA (art. 193).
Nos termos do art. 191, no curso desses 2 (dois) anos iniciais, a Administração contratante terá a opção de licitar (procedimento competitivo) ou de contratar diretamente seguindo as regras do novel regime ou as do sistema tradicional, devendo o edital ou o instrumento contratual, na hipótese de dispensa ou inexigibilidade, indicar qual o regramento eleito pelo gestor para a contratação.
A despeito dessa alternativa expressamente concedida ao gestor para a aplicação da nova lei, há neste momento um caloroso debate acerca da implementação das condições necessárias para o uso imediato da Lei nº 14.133/2021. A discussão gira em torno, especificamente, da necessidade de regulamentação de alguns dispositivos e da implementação do Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, sítio eletrônico oficial criado pelo art. 174 da NLLCA.
Em relação ao primeiro ponto, entendemos que se trata de uma questão que só pode ser resolvida de forma tópica. Isto é, há pontos na nova lei que de fato carecem de uma regulamentação para terem a devida eficácia jurídica; porém, existem outros institutos do novo regime que podem ter aplicação mesmo sem regulamentação. De um modo geral, seria até possível dizer que, salvo casos específicos, os dispositivos da Lei nº 14.133/2021 são dotados de densidade normativa hábil a uma aplicação sem regulamentação.
O objeto desta coluna, entretanto, não diz respeito aos regulamentos necessários para a aplicação da NLLCA. Aqui se discute a possibilidade de aplicação da Lei nº 14.133/2021 sem que ocorra a implementação do Portal Nacional de Contratações Públicas. Aos nossos olhos, de fato, esse Portal foi o meio eleito pelo legislador para garantir transparência e publicidade aos atos relativos à aplicação da nova Lei de Licitações. O PNCP é, por expressa definição legal, uma espécie de “sítio eletrônico oficial” ampliado (art. 6º, LII, da Lei nº 14.133/2021), pois conta com uma concentração de atos relativos a procedimentos de contratação pública em nível nacional. Isto é, sua abrangência alcança as contratações governamentais municipais, estaduais, distritais e federais.
Em nossa avaliação, a criação e a consequente implementação do PNCP são posturas que possuem um nítido caráter nacional. Isso porque a instalação de um portal que concentre as informações das contratações das entidades de direito público de todo o país favorece a formação de um mercado público nacional, assim como consagra a publicidade dos atos por ser instrumento de transparência ativa e efetiva.
Em relação a este último aspecto, a concentração das informações em um único canal favorece o necessário controle institucional (externo e interno) e social das ações de contratação do Estado brasileiro como um todo. Por isso, a criação e a implementação do PNCP não é uma medida voltada apenas para alargar a competição nos procedimentos concorrenciais relativos às contratações governamentais. Há aqui também a concretização de normas constitucionais que visam à implantação de um controle social da Administração Pública (art. 5º, XXXIII e art. 37, § 3º, II, ambos da Constituição).
Ademais, a forma como a Lei nº 14.133/2021 prevê a gestão do PNCP, com representantes de todas as esferas da federação, cristaliza esse cunho nacional desse sítio eletrônico oficial (art. 174, § 1º). Em razão disso, percebemos no art. 174 o caráter de norma geral (art. 22, XXVII, da Constituição) apto a impor a todos os entes federados a publicidade dos atos exigidos pela nova lei no PNCP.
Vale dizer que em nossa leitura a Lei nº 14.133/2021 não impõe a publicação dos atos no PCNP apenas quando ela expressamente se refere a esse Portal. Enxergamos no inciso I do art. 174 um comando genérico de publicação no PNCP dos atos aos quais a lei impõe publicidade. Fazemos essa observação porque seria possível se interpretar que a publicidade exigida em nível de PNCP fosse apenas aquelas previstas no art. 54, no § 4º do art. 75, no art. 94 e no § 2º do art. 174, todos da Lei nº 14.133/2021.
É que o PNCP é uma espécie de sítio eletrônico oficial (caput do art. 174 da nova lei). A rigor, pelo art. 174, inciso I, do novo diploma, ele é o sítio eletrônico oficial de publicação obrigatória, sendo os demais facultativos e complementares (art. 6º, LII, c/c o art. 175 da NLLCA). Assim, sempre que a Lei nº 14.133/2021 fala em publicação em sítio eletrônico oficial ela está exigindo a publicação no PNCP. Tal é o sentido de sinonímia entre o PNCP e o sítio eletrônico oficial, que a NLLCA muitas vezes fala de sítio eletrônico oficial para casos já abarcados pelas hipóteses em que ela expressamente se refere ao PNCP.
Vamos a alguns exemplos. O art. 31, § 2º, diz que o leilão será precedido de publicação de edital em sítio eletrônico oficial. Esse comando é o mesmo contido no art. 54, que exige a publicação do edital de licitação no PNCP. O mesmo pode ser dito do art. 32, § 1º, incisos I e VIII, que se referem à publicidade dos editais de divulgação da licitação na modalidade diálogo competitivo. Ora, esses documentos referidos nesses dispositivos são editais relativos à segunda fase da licitação, que é a de divulgação do instrumento convocatório (art. 17, II, da NLLCA), sendo, portanto, a mesma publicação mencionada pelo art. 54, que fala em divulgação no PNCP. Isso comprova que a referência a sítio eletrônico oficial corresponde a uma menção ao próprio PNCP.
Além disso, há situações na Lei nº 14.133/2021 em que a exigência de publicação em sítio eletrônico oficial merece o mesmo grau de publicidade e transparência dado àquelas para as quais a NLLCA requer a divulgação no PNCP. É o caso do ato que autoriza a contratação direta ou do extrato do contrato que decorre de uma dispensa ou inexigibilidade. O Parágrafo único do art. 72 diz que um desses documentos deve ser “divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial”.
Não resta dúvida que tal sítio é o PNCP. Primeiro, há nesta hipótese uma questão de interesse concorrencial. Embora uma contratação direta não demande a convocação de interessados para atender a necessidade pública perseguida com o contrato, a sua divulgação deve ser ampla para efeito de controle e preservação da concorrência no mercado público. Uma contratação direta indevida fere a competitividade dos processos licitatório e, por isso, merece uma transparência efetiva, a fim de se garantir um controle dessas situações.
Como segundo ponto, indicamos ainda que há questões republicanas de preservação do interesse público e do patrimônio público que demandam a mesma transparência. Ademais, se o motivo de publicação no PNCP fosse apenas a convocação para a competição, não haveria razão para a lei impor a divulgação do contrato e de seus aditamentos no PNCP, como é feito no art. 94 da NLLCA. Assim como no caso das contratações diretas, a razão da publicidade dos contratos e de seus aditamentos no PNCP é o de garantir um efetivo controle social e institucional da atividade contratual do Estado. Sendo assim, enxergamos nessa hipótese a necessidade de ampla divulgação apta a justificar uma publicação no PNCP.
É preciso dizer, ainda, que não se pode confundir o sítio eletrônico oficial com o site do órgão ou entidade que promove a contratação. Como se verá adiante, a Lei nº 14.133/2021 traz o conceito daquele primeiro (art. 6º, LII), restando claro que não se trata da página da internet de cada um dos órgãos ou entidades contratantes.
Dito isso, advogamos a interpretação da Lei nº 14.133/2021 no sentido de que o PNCP é o sítio eletrônico oficial por excelência, devendo a Administração publicar no Portal Nacional todos os atos que a NLLCA impõe a divulgação em sítio eletrônico oficial, facultada a publicação em caráter complementar desses mesmos atos nos sítios eletrônicos do ente federado correspondente.
Então, ao menos em tese, a aplicação do novo regime de contratação pública pátrio requer a publicação do edital da licitação, assim como dos seus anexos, “em sítio eletrônico oficial” (art. 25, § 3º), no caso, no Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP, que é o “sítio eletrônico oficial” (art. 174, caput) eleito pela nova lei como meio de “divulgação centralizada e obrigatória” dos atos cuja publicação é exigida pela Lei nº 14.133/2021 (art. 174, inciso I). O mesmo vale para as demais situações em que a lei requer a divulgação em sítio eletrônico oficial, a exemplo do que ocorre com o ato que autoriza a contratação direta ou o extrato do contrato de uma dispensa ou inexigibilidade (Parágrafo único do art. 72).
Ocorre, entretanto, que o PNCP ainda não está implementado, mas a nova lei já está em vigor (art. 194) e ela oferece ao gestor público a possibilidade de aplicá-la de imediato (art. 191), conforme critérios de oportunidade e conveniência. Sendo assim, há de se considerar a Nova Lei de Licitações no seu todo. Por isso, é preciso buscar implementar um meio pelo qual a publicidade ocorra dentro dos novos parâmetros legais, que podem ser verificados no art. 6º, LII, da Lei nº 14.133/2021.
Esse dispositivo traz o conceito de “sítio eletrônico oficial”, que é “sítio da internet, certificado digitalmente por autoridade certificadora, no qual o ente federativo divulga de forma centralizada as informações e os serviços de governo digital dos seus órgãos e entidades”.
Notamos que o novo regime de contratação pública nacional preza por uma verdadeira virtualização do processo de contratação pública (art. 12, VI, c/c o § 2º do art. 17, ambos da Lei nº 14.133, de 2021). Nesse ponto, a nova lei substitui a “imprensa oficial”, do art. 6º, XIII, da Lei nº 8.666/1993, pelo “sítio eletrônico oficial” (art. 6º, LII, do novo diploma). Este último, nos termos de sua definição, preza por: a) publicidade das informações (dos atos) por meio digital na internet; b) certificação digital do sítio por autoridade certificadora; c) centralização das informações do ente federativo em um único sítio.
Conforme já dito, o PNCP é, por definição expressa do art. 174 da Lei nº 14.133/2021, um sítio eletrônico oficial, motivo pelo qual deve atender todos esses requisitos do inciso LII do art. 6º da NLLCA, sendo que conta ainda com uma maior centralização da publicidade dos atos, já que em sua plataforma são publicadas as ações de todos os entes da federação. Por isso que afirmamos nas linhas passadas que esse Portal Nacional é o sítio eletrônico do inciso LII do art. 6º, sendo que ampliado.
Nesse prumo, enxergamos que a publicidade oficial dos atos de aplicação da Nova Lei de Licitações nos termos do inciso LII do seu art. 6º é o meio que mais se aproxima dos parâmetros legais de divulgação dos atos de aplicação desse novo diploma. Além disso, essa é uma hermenêutica que considera o que está posto na lei e a realidade fática de boa parte da Administração Pública nacional.
Dizemos isso porque muitos dos diários oficiais eletrônicos das unidades federadas atendem a esses requisitos legais (disponibilidade na internet e certificação), razão pela qual entendemos que a solução transitória, até que seja implementado o PNCP, é que cada ente da federação concentre a publicação dos atos exigidos pela Lei nº 14.133/2021 em um sítio eletrônico oficial, que pode ser os respectivos diários eletrônicos oficiais digitalmente certificados.
Em outras palavras, o que verificamos é que a NLLCA exige a implementação do PNCP e a consequente divulgação dos atos nesse Portal, mas isso não significa dizer que o PNCP é imprescindível para aplicação da nova lei. A partir dos parâmetros de publicidade e transparência fixados nesse novo diploma, é possível encontrar meios disponíveis de divulgação que se encaixam perfeitamente nos padrões do regime recém-inaugurado.
Ao se seguir esse padrão legal de publicidade (art. 6º, LII, da Lei nº 14.133/2021), o único elemento contido no PNCP que não seria atendido seria a concentração nacional da publicidade dos atos relativos à contratação pública do novo sistema. Ainda assim, não se vê, dada a situação transitória, agressão à lei. É sabido que o Direito deve ser compreendido tendo em conta as condições legais e fáticas (art. 20 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro). A hermenêutica dos textos legais não pode prescindir da realidade fática. No caso, a ausência do PNCP com a possibilidade de aplicação imediata da lei pode ser resolvida com a publicidade dos atos em padrões equivalentes ao do PNCP, que, no caso, é o inciso LII do art. 6º da Lei nº 14.133/2021, sendo que este último dispositivo exige uma concentração da publicidade apenas por ente federativo, ou seja, local, regional ou federal.
Salientamos que, no caso dos estados e municípios, ainda há uma questão de respeito às suas autonomias federativas. É sabido que a implementação do PNCP é de responsabilidade da União, ente federativo que o criou no art. 174 da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Desse modo, não é possível, dentro dos parâmetros federativos, condicionar à opção dos estados e municípios assegurada no art. 191 da Lei nº 14.133/2021 a uma ação da União. Vale aqui a atuação subsidiária dos demais entes da federação até que a União implemente a condição necessária para a concentração nacional da publicidade dos atos relativos à execução da nova lei em formato digital.
Um ponto que precisa ser observado na divulgação dos atos relativos à Lei nº 14.133/2021 é o conteúdo do que deve ser disponibilizado no meio legal, no caso, no sítio eletrônico oficial. A NLLCA não exige apenas a publicação dos extratos dos documentos. Devem estar disponíveis no sítio eletrônico oficial os documentos em relação aos quais a nova lei exige divulgação (art. 25, § 3º). É sabido, entretanto, que divulgação do inteiro teor desses documentos no diário oficial eletrônico seria uma medida custosa e burocrática. Por isso, acreditamos que a melhor solução para tal questão seja a publicação do extrato no diário oficial eletrônico com a indicação de um link no qual seja possível baixar o documento ao qual se refere o extrato e os seus anexos. Não podemos ignorar que o mundo da internet se vale dos potenciais da rede, que conecta pontos hospedados em diferentes postos digitais. Desse modo, garantidos os devidos mecanismos de segurança digital, a indicação desse link atenderia plenamente o comando legal contido no art. 25, § 3º, no art. 54 e no art. 94 da Lei nº 14.133/2021.
Cabe ressalvar o contido no Parágrafo único do art. 176 em relação aos municípios com até vinte mil habitantes. Segundo esse dispositivo da nova lei, esses entes da federação podem fazer suas publicações em diário oficial, e não em sítio eletrônico oficial, o que autoriza a adoção da nova lei mesmo com a publicação em instrumento impresso.
Com a devida vênia daqueles que entendem de modo diverso, pensamos que não atende à sistemática da Lei nº 14.133/2021 a publicação em diário oficial impresso. Considerar que qualquer modo de publicação disponível atende ao comando legal é desconsiderar até mesmo as linhas gerais definidas na NLLCA. Ademais, aceitar que a publicação nos moldes da Lei nº 8.666/1993 preenche o requisito de divulgação da contratação realizada sob o manto da Nova Lei de Licitações é mesclar, ainda que minimamente, os regimes, o que é expressamente vedado pelo art. 191 da Lei nº 14.133/2021.
Como dito, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz em si a virtualização dos procedimentos de contratação pública como um meio de ampliação da competição e do controle social. Ela se preocupa não só com a publicidade, mas também com a transparência (ativa) dos atos. A diretriz da NLLCA é a informação segura, concentrada ao menos por ente federativo e disponível na rede mundial de computadores. Qualquer instrumento que preencha esse requisito será satisfatório. Por isso, em nossa avaliação, o PNCP é o ideal de publicidade da Lei nº 14.133/2021, mas esse mesmo diploma prevê expressamente outros meios capazes de suprir a publicidade e a transparência dentro dos padrões do novo regime.
Neste caso, podemos já aplicar a nova lei de licitações para compras e serviços em câmara municipais?
Brilhante comentário prof. Rafael. Exauriente, porém necessário. Esse é um dos pontos nevrálgicos da NLLC. A polêmica está estabelecida. Ganha o direito, sem dúvida.
Saudações!
Robervaldo Pinheiro Cavalcante
Advogado Administrativista