O Plenário do Senado Federal aprovou, na última quinta-feira, dia 10 de dezembro, o Projeto de Lei nº 4.253/2020, o qual cria um novo marco legal para substituir a atual Lei de Licitações (Lei nº 8.666/1993), a Lei do Pregão Eletrônico (Lei nº 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011). O texto, de relatoria do senador Antonio Anastasia (PSD-MG), será agora submetido à avaliação da Presidência da República para sanção.
Tratar-se-á, como se sabe, de uma lei de abrangência nacional, pois suas regras valerão para a União, para o Distrito Federal, para os Estados e para os Municípios. Serão muitas as alterações, algumas das quais bastante inovadoras, como já destacado nos diversos e excelentes artigos publicados aqui no Observatório da Nova Lei de Licitações. Dentre as novidades, vem se destacando a previsão contida no § 4º do artigo 25, assim redigida:
Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento.
[…]
§ 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento. [grifos nossos]
A ideia não é nova: ainda no Ano de 2016, tive a honra de participar, como representante do CONACI – Conselho Nacional de Controle Interno, da Ação nº 5 da ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, ao lado de destacados colegas representando a CGU, a AGU, a Ajufe, a Ampcon, a Atricon, o BB, o BNDES, o CADE, a Caixa, a Casa Civil/RS, a CGA/SP, o CNMP, a Conjur/MJ, a Febraban, o MDIC, o MPF, o MPSP, a Seges/MP, a SP/MF, a Susep e o TCU. O objetivo dessa específica ação da ENCCLA era o de propor a criação de mecanismos que incentivem a adoção de sistemas de integridade em contratações públicas.
As principais questões enfrentadas por aquele Grupo de Trabalho foram as seguintes: a) definição do tipo de benefício (critério de habilitação, desempate, margem de preferência); b) definição de quem faria a certificação (se a escolha fosse setor privado, deveria também ser avaliado se o setor público atuaria como acreditador ou regulador de mercado). Decidiu-se, ao final, pela exigência de sistemas de integridade para licitações de grande vulto (superiores a R$30.000.000,00) e pelo setor privado como certificador, desde que respeitados os critérios de acreditação e os critérios mínimos definidos pelo Poder Público. No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria-Geral da União exerceria esse papel.
À época foram elaboradas duas propostas de normativos: a primeira delas de alteração da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial – LAE) e a segunda de regulamentação da matéria por decreto no âmbito do Poder Executivo federal. Em relação a LAE, a proposta era no sentido de acrescentar ao corpo do texto em vigor o artigo 2º-A, o qual teria a seguinte redação:
“Art. 2º-A. Os editais para contratações de bens, obras e serviços de grande vulto, bem como os de concessões e arrendamentos de valor equivalente, firmados com a Administração Pública, deverão exigir das pessoas jurídicas participantes programas de integridade efetivos.
§ 1º A comprovação da efetividade do programa de integridade deverá ser feita mediante certificação de empresa acreditada pelo poder público.
§ 2º Aplica-se o disposto no caput aos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação.
§ 3º Regulamento disporá sobre os critérios de acreditação, certificação e sobre a definição de contratações de grande vulto”.
Já o respectivo decreto regulamentador, segundo proposta ofertada pelo Grupo de Trabalho da Ação nº 5 da ENCCLA/2016, teria apenas quatro artigos com o seguinte texto:
“Art. 1º. Os editais de licitação para contratações de compras, obras e serviços, para concessões, arrendamentos, bem como os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, em valores superiores a R$30.000.000,00 (trinta milhões de reais) deverão exigir a certificação de programas de integridade efetivos.
Parágrafo único. Nos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação somente poderão ser contratadas empresas com certificação, salvo se o contratante comprovar no respectivo processo, mediante consulta comprovada no cadastro do Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União[2], o desinteresse das empresas certificadas em relação ao objeto a ser contratado.
Art. 2º. O Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União acreditará e fiscalizará pessoas jurídicas certificadoras de programas de integridade.
§ 1º. Os critérios de acreditação e certificação serão fixados por ato normativo interno do Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União.
§ 2º. O Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União manterá um cadastro das empresas certificadas, classificado por data de validade do certificado, ramo de atividade, objeto social e território de atuação.
§ 3º. O Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União poderá firmar acordos com os órgãos de controle interno estaduais e municipais para fins de adesão ao credenciamento federal.
Art. 3º. As empresas certificadoras não poderão prestar qualquer outro tipo de serviço ou manter contratos com a empresa ou grupo de empresas no período que compreende o início do processo de certificação e o final do prazo de validade do certificado.
Parágrafo único. A empresa certificadora não poderá prestar nem ter prestado assessoria acerca do programa de integridade da organização para a qual venha emitir o certificado de conformidade.
Art. 4º. Este Decreto entra em vigor no prazo de 180 (cento e oitenta dias) da data de sua publicação”.
Em termos de valor, o Projeto de Lei recentemente aprovado no Senado estabeleceu outro piso, pois, de acordo com o inciso XXII de seu artigo 6º, considera “obras, serviços e fornecimentos de grande vulto aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais)”, valor este muito acima daquele idealizado pela Ação nº 5 da ENCCLA em 2016.
Além disso, a contrário do que concluiu o Grupo de Trabalho da ENCCLA, o PL aprovado no Senado Federal não estabeleceu como exigência a implementação de sistemas de integridade para as hipóteses de concessões, de arrendamentos e para os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, o que poderá acarretar, ao final, uma certa contradição. Por outro lado, estabeleceu não apenas o desenvolvimento pelo licitante de sistema de integridade como critério de desempate nas licitações (artigo 59, inciso IV), mas também a implantação ou aperfeiçoamento de sistema de Integridade para efeito de dosimetria das sanções aplicáveis da futura lei (artigo 155, § 1º, inciso V) e também como condição de reabilitação do licitante ou contratado (artigo 162, parágrafo único).
Nesse particular, um ponto merece destaque. Como se sabe, a Lei Anticorrupção Empresarial, por força de seu artigo 2º, está calcada em uma estrutura de responsabilidade objetiva, de modo que não há a necessidade de demonstração do dolo ou mesmo da culpa para que haja a devida responsabilização da pessoa jurídica, bastando a demonstração de que houve a prática de um ato lesivo, que ele tenha sido praticado por empregado(s) da pessoa jurídica acusada ou terceiro(s) que age(m) em seu nome e que a conduta tenha se dado no seu interesse ou em benefício, exclusivo ou não. Assim, para que o sistema de integridade de uma empresa seja considerado verdadeiramente efetivo, ela somente poderá estabelecer relações negociais com outras que também possuam sistemas de integridade de mesma qualidade, pois, se o preposto ou o representante da subcontratada incorrer em qualquer das condutas consideradas lesivas pelo artigo 5º da Lei nº 12.846/2013 na execução do contrato entre ambas firmado, a contratante também poderá ser responsabilizada. Daí a importância das “due diligences” nas contratações, as quais, doravante, passarão a ter uma importância ainda maior.
Isso significa, em outras palavras, que, se o Projeto de Lei nº 4.253/2020, já aprovado no Senado Federal, for sancionado pelo Presidente da República, estaremos diante de uma verdadeira revolução no ambiente negocial brasileiro, pois não apenas as empresas interessadas em firmar com a Administração Pública brasileira contratos de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto terão que implementar sistemas efetivos de integridade, mas também quaisquer outras – sejam elas de pequeno, médio ou grande porte – que demonstrem interesse em contratar com as vencedoras em tais licitações.
Descortina-se nos próximos anos, assim, um amplo mercado para os profissionais brasileiros de compliance e, o que é melhor, cria-se uma justa expectativa de serem mitigados os malefícios da corrupção no Brasil pela utilização da ferramenta mais eficiente e já consagrada internacionalmente: a prevenção (e não a repressão) na origem, ou seja, no âmbito da própria iniciativa privada, e não do Poder Público.
Nas palavras de Ariano Suassuna, “não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança”. Oxalá não sejam minhas expectativas desmentidas!
Feliz
2021!
[1] Diretor de Governança e Conformidade da Petrobras. Ex-Promotor de Justiça do Estado do Espírito Santo. Sócio-fundador do Instituto IGIDO. Ex-Secretário de Controle e Transparência do Estado do Espírito Santo, o primeiro estado do Brasil a criar uma estrutura administrativa e a aplicar sanções administrativas com base na Lei Anticorrupção Empresarial e premiado pela Controladoria-Geral da União com o primeiro lugar no cumprimento das regras da Lei de Acesso à Informação (2015) e pelo Ministério Público Federal com o primeiro lugar no ranking dos melhores portais de transparência no Brasil (2015). Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV – Faculdade de Direito de Vitória e Doutor em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Professor da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) nos cursos de graduação e pós-graduação.
[2] A Controladoria-Geral da União – CGU, à época, era nominada como “Ministério da Fiscalização, Transparência e Controladoria Geral da União”.