Como é cediço, o ano de 2020 teve início com a notícia da descoberta de um novo vírus causador de doença pulmonar grave, que passou a ser conhecido como o Novo Coronavírus (Covid-19).
Contaminando as pessoas inicialmente na China, foi depois detectado em vários países (Estados Unidos, Taiwan, Tailândia, Japão, Coreia do Sul, Macau, Itália, Espanha e Inglaterra), alastrando-se como rastilho de pólvora por todo o mundo.
Preliminarmente, no fim de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto constituía Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Posteriormente, em 11 de março, elevou o estado de contaminação para pandemia, considerando a identificação de casos em mais de 115 países.
Essa situação impactou a economia e as relações sociais em todo o mundo, inclusive, é claro, no Brasil.
Como anotou Ivan Rigolin,[1] o rebuliço, a confusão planetária, e o quase pânico mundial provocado por essa pandêmica peste não poderia deixar de se espraiar no âmbito do direito, ensejando consequências jurídicas dignas de reflexão.
Nesse cenário, uma das importantes questões envolve as contratações públicas, tendo em vista a premente necessidade de os governos agirem com rapidez para atender os anseios da população.
Na prática, para oferecer os meios necessários aos administrados, a Administração, entre outras ações, necessita contratar serviços e adquirir materiais que possibilitem o pronto enfrentamento à situação.
Para tal, veio à tona a Lei federal nº 13.979/2020 (alterada pelas Medidas Provisórias nº 926/2020, 927/2020, 928/2020 e 951/2020),[2] que, conforme preceitua a sua ementa, dispõe sobre as providências para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Novo Coronavírus.
O diploma, logo no §1º do art. 1º, aponta a sua diretriz: proteger a coletividade, resguardando-a da pandemia. Como assentou Carmen Boaventura, “a lei foi objetiva no sentido de trazer, ab initio, qual a finalidade a que se destina, diante da emergência, definindo regras e situações vinculadas ao enfrentamento da crise de saúde pública”.[3]
Além de outras medidas, a Lei nº 13.979/2020, que se insere na competência privativa da União para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos, nos termos do art. 22, XXVII, da Constituição Federal,[4] engendrou uma nova hipótese de dispensa de licitação tão somente para o período de combate do vírus.
Nesse contexto, consigne-se preliminarmente que:
a) apesar de a situação requerer imediatas contratações por parte do Poder Público, motivo pelo qual a Lei previu a nova forma de dispensa licitatória, nada impede, após sopesamento da autoridade pública competente, a elaboração de procedimento licitatório para alguns objetos, conforme preceitua, inclusive, o seu art. 4º-G, com texto inserido pela MP nº 926/2020, que faz menção à possível adoção da modalidade pregão (eletrônico ou presencial). Nessa hipótese, contudo, também perseguindo a agilidade, disciplina que os prazos serão reduzidos à metade;
b) as disposições da Lei nº 13.979/2020 não afastam o regime de contratação da Lei nº 8.666/1993, mas instituem condições de exceção em função do momento excepcional;[5]
c) por ser uma norma geral, a Lei nº 13.979/2020 é aplicável a todos os entes federativos;
d) apesar das Estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista, bem como suas subsidiárias) serem conduzidas, nas suas licitações, contratações e dispensas, pela Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), a Lei nº 13.979/2020, por tratar de uma excepcionalidade, prevê que todas e quaisquer dispensas, contratações ou licitações destinadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Novo Coronavírus deverão ser por ela regidos;[6] e
e) as omissões da Lei nº 13.979/2020 deverão ser sanadas por intermédio de adoção subsidiária das regras das Leis nºs 8.666/1993 e 13.303/2016, no que couberem, tais como, por exemplo, as concernentes à aplicação de sanções por descumprimento contratual.
Os dispositivos a seguir são que tratam da dispensa licitatória ou tem conexão com as contratações dela oriundas:
Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
§ 2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
§ 3º Excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.
§ 4º Na hipótese de dispensa de licitação de que trata o caput, quando se tratar de compra ou contratação por mais de um órgão ou entidade, o sistema de registro de preços, de que trata o inciso II do caput do art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, poderá ser utilizado.
§ 5º Na hipótese de inexistência de regulamento específico, o ente federativo poderá aplicar o regulamento federal sobre registro de preços.
§ 6º O órgão ou entidade gerenciador da compra estabelecerá prazo, contado da data de divulgação da intenção de registro de preço, entre dois e quatro dias úteis, para que outros órgãos e entidades manifestem interesse em participar do sistema de registro de preços nos termos do disposto no § 4º e no § 5º.
Art. 4º-A A aquisição de bens e a contratação de serviços a que se refere o caput do art. 4º não se restringe a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido.
Art. 4º-B Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta Lei, presumem-se atendidas as condições de:
I – ocorrência de situação de emergência;
II – necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;
III – existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e
IV – limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Art. 4º-C Para as contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, não será exigida a elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns.
Art. 4º-D O Gerenciamento de Riscos da contratação somente será exigível durante a gestão do contrato.
Art. 4º-E Nas contratações para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência que trata esta Lei, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado.
§ 1º O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado a que se refere o caput conterá:
I – declaração do objeto;
II – fundamentação simplificada da contratação;
III – descrição resumida da solução apresentada;
IV – requisitos da contratação;
V – critérios de medição e pagamento;
VI – estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros:
- Portal de Compras do Governo Federal;
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; e
VII – adequação orçamentária.
§ 2º Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços de que trata o inciso VI do caput.
§ 3º Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos.
Art. 4º-F Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição.
(…)
Art. 4º-H Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.
Art. 4º-I Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.
Considerando que a grave situação pandêmica exige rápidas medidas do Poder Público, é evidente que a feitura de licitações para contratações urgentes de objetos que visem o enfrentamento do vírus, que, como se sabe, requerem um tempo razoável, dificilmente seria o meio adequado.
Nesse passo, como anotado, a Lei nº 13.979/2020 instituiu uma nova modalidade de contratação direta: a dispensa de licitação para aquisição de bens, insumos e serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Novo Coronavírus (art. 4º).[7] [8]
Com base neste dispositivo, qualquer ente do Poder Público ficou autorizado a dispensar a feitura do procedimento licitatório quando, exclusivamente em função da emergência de saúde pública, buscar adquirir bens/insumos ou contratar serviços, inclusive de engenharia.
Inovando no ordenamento jurídico, a MP nº 926/2020 inseriu na Lei a possibilidade do uso do Sistema de Registro de Preços (SRP) através da dispensa licitatória. Como se sabe, até então, só se admitia o uso dessa sistemática, regulada pelo Decreto nº 7.892/2013 (regulamentando o art. 15 da Lei nº 8.666/1993), nas licitações nas modalidades concorrência e pregão. Como obtemperou Ronny Charles, a previsão nessa premente situação buscou implementar a cultura de compras compartilhadas nas aquisições de bens e serviços voltadas às ações de enfrentamento ao COVID-19.[9]
Como assentamos em livro específico,[10] o SRP é uma ferramenta de auxílio consubstanciada num procedimento especial a ser adotado nas compras do Poder Público quando os objetos forem materiais, produtos ou gêneros de consumo frequente, e, ainda, em situações especialíssimas, nas contratações de serviços. Trata-se de uma solução inteligente de planejamento e organização na logística de aquisição de bens e serviços no setor público, pois, entre outros benefícios, reduz significativamente os custos de estoques, porquanto, com o sistema ter-se-á um estoque virtual, sem a necessidade dos gastos com armazenagem.
A sistemática baseia-se no conceito do sistema de administração da logística de produção adotado no âmbito privado denominado Just in Time, que se orienta apoiado na ideia de que nada deve ser produzido, transportado ou comprado antes do momento exato da necessidade. Assim, os bens ou serviços necessários ao processo de produção somente serão adquiridos no momento de sua necessidade para a aplicação.
De acordo com o art, 3º do regulamento, o SRP deverá ser adotado nas seguintes hipóteses:
- quando, pelas características do bem ou serviço, houver necessidade de contratações frequentes;
- quando for conveniente a aquisição de bens com previsão de entregas parceladas ou contratação de serviços remunerados por unidade de medida ou em regime de tarefa;
- quando for conveniente a aquisição de bens ou a contratação de serviços para atendimento a mais de um órgão ou entidade, ou a programas de governo; ou
- quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.
Logo, diversamente do procedimento adotado nas licitações convencionais, onde os licitantes apresentam propostas específicas visando um objeto unitário e perfeitamente definido, no SRP ocorrerão proposições de preços unitários que vigorarão por certo tempo, período em que a Administração, baseada em conveniência e oportunidade, poderá realizar as contratações necessárias, sempre com a preocupação de verificar a compatibilização dos preços registrados com os praticados no mercado no momento do interesse.
Como se vê, o emprego do SRP determina flagrante economia, além de ganho em agilidade e segurança, com pleno atendimento ao princípio da eficiência.
Buscando trazer essa versatilidade para as contratações emergenciais voltadas para o enfrentamento da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus, o legislador federal, como retromencionado, criou a “Dispensa por intermédio do Sistema de Registro de Preços” ou, como a denominou Ronny Charles de forma inversa, “Dispensa de licitação para fins de registro de preços”.[11]
Alguns analistas tem demonstrado estranheza com essa medida, que para muitos não tem sentido.
Indubitavelmente, não obstante a boa intenção do legislador, o uso do SRP através de uma dispensa licitatória que objetive uma contratação emergencial é bastante questionável, pois a sistemática de registro de preços – que, conforme mencionado, objetiva principalmente compras futuras – não parece se compatibilizar com esse mister.
Nesse sentido, Luciano Reis e Marcus Alcântara:
Até nos parece que este enunciado normativo foi colocado de maneira inadequada, já que tal previsão era completamente dispensável. Extraindo a sua utilidade, o seu ponto positivo talvez resida na cooperação entre todos aqueles que exercem atualmente a difícil missão pública de contratar objetos em um período curto e de modo eficiente, em que pese as características e falhas acentuadas de mercado.[12]
Destarte, com texto de má técnica redacional, o § 4º autoriza o uso do SRP quando:
a) houver dispensa licitatória para aquisições ou contratações de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Novo Coronavírus; e
b) o objeto pretendido interessar a mais de um órgão ou entidade.
Por sua vez, o §5º permite a adoção do Decreto nº 7.892/2013, que, como informado, é o regulamento federal do SRP.
Dessa forma, em termos práticos, ter-se-á:
- A dispensa licitatório de certo objeto pretendido pela Administração; e
- Ao invés da celebração de um contrato, a assinatura de uma Ata de Registro de Preços (ARP), que, consoante o previsto no regulamento, configura um documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas.
Ou seja, o regramento autoriza a elaboração de uma ARP não através de licitação, mas, sim, por intermédio de uma dispensa licitatória.
Com a adoção do Regulamento, há de se ter o procedimento de Intenção de Registro de Preços (IRP), utilizado para registro e divulgação dos itens pretendidos e a realização dos atos (art. 4º do Regulamento), a qual, nos termos do § 1º do artigo 4º, poderá ser dispensada, desde que haja justificativa pelo órgão gerenciador da ARP.[13]
Por sua vez, o § 6º do art. 4º da Lei nº 13.979/2020, incluído pela MP nº 951/2020, informa que o órgão gerenciador da compra estabelecerá prazo, contado da data de divulgação da IRP, entre dois e quatro dias úteis, para que outros órgãos e entidades manifestem interesse em participar do SRP.
Logo, aplicando-se conjuntamente a Lei e o Regulamento do SRP, poderá a Administração dispensar a divulgação do IRP ou divulgar em prazo inferior ao do regulamento (entre dois e quatro dias úteis).
Sobre o assunto, Ronny Charles faz uma ressalva importante:
Na hipótese de divulgação da IRP, o órgão gerenciador deverá observar os prazos reduzidos para a divulgação, estabelecido na MP, entre dois e quatro dias úteis. Há que se ponderar que a adoção do IRP pode contrastar com necessidade de uma contratação rápida, repercutindo em atraso burocrático da contratação direta. Ademais, a inclusão de órgãos de diferentes perfis e localidades, com custos transacionais específicos, pode impactar o preço a ser contratado, tornando o compartilhamento economicamente ineficiente. Obviamente, nas hipóteses em que o órgão gerenciador (estadual ou municipal) não contiver previsão de IRP no regulamento ao qual se submete, não será necessária a realização do procedimento. [14]
Desassossegada com as medidas estabelecidas pela MP, Adrienne Reis Brasil Carmo vislumbra, com enorme preocupação, dificuldades no estabelecimento do prazo da ARP. Considerando que o art. 4º-H preceitua que os contratos terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos (enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento aos efeitos da situação de emergência de saúde pública) e art. 8º dispõe que o diploma vigorará enquanto perdurar o estado de emergência decorrente do coronavírus, exceto quanto aos contratos de que trata o citado art. 4º-H, que obedecerão ao prazo de vigência neles estabelecidos, obtemperou a jurista:
A lei não tratou do prazo da Ata de Registro de Preços. No que se refere a esse período, conclui-se pelas seguintes hipóteses: (a) a vigência ficaria atrelada unicamente ao previsto no art. 8º da Lei nº 13.979/2020; ou (b) vincular-se-ia ao disciplinado no mesmo art. 8º ou XXX meses, podendo ser prorrogado por até 12 meses, o que ocorrer primeiro. Nas duas hipóteses estaria reguardado o prazo de até 6 meses do contrato, pois o dispositivo que trata do tema está mencionado no mesmo art. 8º. Observa-se que a segunda hipótese é a que melhor se adéqua ao art. 8º c/c o art. 12 do Decreto 7.892/2013.[15]
Sobre a mesma questão temporal, Luciano Elias Reis e Marcus Vinicius Alcântara anotaram:
Não há qualquer alteração quanto à vigência das atas, pois a MP nº 951 apenas trouxe uma nova forma de celebração da ata de registro de preços (dispensa de licitação). As demais situações atinentes ao SRP devem ser respondidas com as disposições da Lei nº 8.666/1993, que prescrevem a duração máxima de 12 (doze) meses. Entretanto, vale ressaltar que a MP disciplinou no art. 4º, § 1º, que as dispensas de licitação (…)são temporárias e aplicam-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Assim, embora a ata possa ter a duração de até doze meses, caso a situação emergencial se encerre antes, a Administração deverá extinguir a ata também, pelo que seria conveniente estabelecer-se uma cláusula resolutiva, caso se adote um prazo tão longo para a sua vigência. Não se recomenda prazos alongados para a ARP em razão da variação em geral do mercado (número de fornecedores, estoque, demanda, etc.), orientando que as atas sejam de prazo de 30 a 45 dias. Reiteramos que, com o aumento do consumo principalmente de alguns insumos de saúde, os preços podem estar acima daqueles praticados em situação de normalidade.[16]
Independentemente de como será implementada a dispensa licitatória (seja pelo procedimento tradicional ou por meio de registro de preços), na adoção para os fins previstos presumir-se-ão atendidas as seguintes condições, consoante o preceituado no art. 4º-B:
- ocorrência de situação de emergência;
- necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;
- existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e
- limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Repare-seque, ao conferir presunção aos atos que dão base à dispensa, o legislador adotou o mecanismo da legalidade relativa, denominada juris tantum, isto é, aquele que a lei presume verdadeira até prova em contrário. A intenção, como bem anotaram Luciano Elias Reis e Marcus Vinicius de Alcântara,[17] foi gerar tranquilidade aos gestores públicos nas respectivas contratações, confiando na boa-fé, resumindo como legítima e verdadeira a situação de calamidade retratada.[18]
Como sintetizaram os juristas, “ainda que a lei preceitue a presunção juris tantum, que precisará ser comprovada a usurpação do seu uso e a culpa grave ou o dolo para gerar a responsabilização do gestor público nos termos do art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,[19] compreende-se que o raciocínio abarca todas as contratações que sejam baseadas na Lei nº 13.979/2020”.[20]
Para mais aligeirar o processo, o art. 4º-C assenta que as contratações de bens e serviços comuns não exigirão a elaboração de estudos preliminares.
Contudo, como observou Rodrigo Pironti,[21] não se poderá prescindir de um planejamento acerca da demanda, com avaliações de mercado, com o propósito de evitar sobrepreços e superfaturamentos, nada incomuns em situações de crises em face do acréscimo extraordinário de procura de certos produtos e serviços.
Também com a intenção de acelerar a contratação, outras importantes disposições legais foram disponibilizadas:
a) excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando comprovadamente se tratar da única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido (§ 3º);[22] e
b) a aquisição de bens não se restringirá a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento (art. 4º-A); e
c) excepcionalmente e mediante justificativa da autoridade competente, será admitida a dispensa parcial de documentação habilitatória, quando houver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço. Contudo, ainda sim, a comprovação da regularidade relativa à seguridade social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da CF serão necessários (Art. 4º-F).[23]
Para dar transparência aos acordos, o § 2º do art. 4º impõe a imediata disponibilização das contratações em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber:
- as informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso às Informações);[24]
- o nome do contratado;
- o número de sua inscrição na Receita Federal (CPF ou CNPJ);
- o prazo contratual;
- o valor; e
- o respectivo processo de contratação ou aquisição.
Vide que, diversamente do que prevê o art. 26 da Lei nº 8.666/1993, o dispositivo não exige a publicação do ato de ratificação da autoridade superior na Imprensa Oficial. Isso não quer dizer, contudo, que essa ação não deva existir, uma vez que configura ato de controle hierárquico confirmador da legitimidade da contratação direta, com natureza similar ao ato de homologação das licitações.
Assim, após avaliar o processo, a autoridade superior poderá não ratificá-lo, caso verifique o não preenchimento dos requisitos de validade necessários, devendo anulá-lo, na constatação de vícios, ou devolvê-lo para retificação, se entender que há como reparar as impropriedades.
As contratações públicas provenientes de dispensa, assim como as advindas de licitações, devem obrigatoriamente ser precedidas de pesquisa de preços. Tanto a Lei nº 8.666/1993 (art. 7º, § 2º, inc. II e 40, § 2º, inc. II) quanto a Lei nº 10.520/2002 (art. 3º, inc. III) exigem a elaboração do orçamento estimado para a identificação dos valores praticados no mercado para objeto pretendido pela Administração.
Tal também ocorre com as dispensas com base na Lei nº 13.979/20020.
Assim, a obrigatória estimativa de preços deverá considerar, no mínimo, um dos seguintes parâmetros:
a) Portal de Compras do Governo Federal;
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores.
Cobertos de razão estão Luciano Reis e Marcus Alcântara, ao chamarem a atenção para o mau uso da expressão “outros” na comparação com preços de contratações similares, uma vez que, obviamente, as realizadas pela própria Administração também poderão servir como parâmetro.
Aliás, sobre a questão, os juristas acrescentam alerta oportuno:
Aproveita-se para dizer que se deve ter razoabilidade na pesquisa de preços no atual estágio da situação calamitosa vivenciada, a fim de não se transformar em uma gincana ou num momento de retardar o processo por três dias para encher os autos com centenas de páginas pouco frutíferas.[25]
Sobre a matéria, sempre com o intuito da agilização, o legislador fez constar dispositivo que flexibiliza o processo, indicando que os preços obtidos a partir de estimativa não impedem a contratação por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que haja justificativa nos autos.
Registre-se que, em situações excepcionais, mediante justificativa da autoridade competente, a Lei autoriza que se dispense a estimativa de preços (art. 4º-E, parágrafo segundo).
No que tange aos contratos a serem celebrados, o legislador especificou duas determinações excepcionais:
a) os contratos terão prazo de duração de até seis meses, podendo ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação emergencial (art. 4º-H); e
b) o Poder Público poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato (art. 4º-I).
Essa segunda regra cria exorbitância para a Administração, pois oferece à Administração a prerrogativa de impor ao contratado a obrigação de aceitar acréscimos ou supressões, caso perdure a necessidade, configurando uma alteração unilateral quantitativa. O que exigirá, evidentemente, cláusula contratual punitiva por descumprimento.
Não obstante, como obtemperam
Luciano Reis e Marcus Alcântara,[26] por tratar-se de
contratação num período anormal, de mercado volátil e com comportamento
econômico desequilibrado, é certo, caso a contratada justifique e comprove que
não tem condições de satisfazer a alteração quantitativa pretendida pela
Administração, que
a situação não demandará sancionamento.
[1] RIGOLIN, Ivan Barbosa. Ocoronavírus e os contratos de emergência. Revista Eletrônica de Licitações e Contratos administrativos, Edição de maio 2020 – nº 92 – ano IX, INAP).
[2] Ressalta-se a possibilidade das MPs não serem convertidas em lei. Nessa hipótese, todos os atos nelas fundamentados estarão sujeitos ao previsto nos §§ 3º e 11 do art. 62 da CF, que indicam a competência do Congresso Nacional para editar decreto legislativo disciplinando tais atos jurídicos. Na ausência dos referidos decretos, eles estarão consolidados.
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
(…)
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
(…)
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
[3] BOAVENTURA, Carmen Iêda Carneiro. Breves considerações sobre a lei 13.979/2020 e a pandemia do coronavírus. Disponível em <https://ronnycharles.com.br/breves-consideracoes-sobre-a-lei-13-979-2020-e-a-pandemia-do-coronavirus/>
[4] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (…) XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/988).
[5] O inc. IV da Lei nº 8.666/1993 versa sobre a contratação por dispensa licitatória devido à situação emergencial.
[6] Nesse sentido, Alexandre Di Pietra: “A lei silenciou quanto à natureza da pessoa jurídica, se de direito público ou privado. Esse silêncio faz incluir as empresas estatais, porque ao definir a natureza do objeto da dispensa ou do excepcional procedimento de licitação o fez definindo o objetivo ou a finalidade que é a aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.” (Revista Eletrônica de Licitações e Contratos administrativos, Edição de abril 2020 – nº 91 – ano IX, INAP).
[7] Vide que a dispensa não é aplicável às obras. Eventuais obras necessárias para o combate ao coronavírus, quando caracterizada a situação de urgência, deverão ser contratadas com fulcro no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993.
[8] Ressalta-se que os bens a serem adquiridos não necessitam ser novos, pois o art. 4º-A autoriza a contratação de equipamentos usados, com a ressalva que o fornecedor deve se responsabilizar pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem.
[9] TORRES, Ronny Charles L. de. Dispensa de licitação para fins de registro de preços. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/>.
[10] BITTENCOURT, Sidney. Licitação de Registro de Preços – Comentários ao Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, alterado pelos Decretos nº 8.250, de 23 de maio de 2014, e nº 9.488, de 30 de agosto de 2018, 5 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2019, pag. 19.
[11] TORRES, Ronny Charles L. de. Dispensa de licitação para fins de registro de preços. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/>.
[12] REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Sistema de Registro de Preços na COVID-19. Disponível em: <ttp://rcl.adv.br/site/wp-content/uploads/2020/03/CONTRATA%C3%87%C3%83O-P%C3%9ABLICA-EXTRAORDIN%C3%81RIA-NO-PER%C3%8DODO-DO-CORONAV%C3%8DRUS-19-Luciano-Reis-e-Marcus-Alc%C3%A2ntara.pdf.>.
[13] O inc. III do art. 2º do Decreto nº 7.892/2013 conceitua órgão gerenciador: “III – órgão gerenciador – órgão ou entidade da administração pública federal responsável pela condução do conjunto de procedimentos para registro de preços e gerenciamento da ata de registro de preços dele decorrente.”
[14] TORRES, Ronny Charles L. de. Dispensa de licitação para fins de registro de preços. Disponível em: < https://ronnycharles.com.br/>.
[15] CARMO, Adrienne Reis de Souza Brasil. Parecer (arquivo pessoal).
[16] REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Sistema de Registro de Preços na COVID-19. Disponível em: <ttp://rcl.adv.br/site/wp-content/uploads/2020/03/CONTRATA%C3%87%C3%83O-P%C3%9ABLICA-EXTRAORDIN%C3%81RIA-NO-PER%C3%8DODO-DO-CORONAV%C3%8DRUS-19-Luciano-Reis-e-Marcus-Alc%C3%A2ntara.pdf.>.
[17] REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Contratação Pública Extraordinária no período do Coronavírus. Disponível em <http://www.blogjml.com.br/?cod=77812bb1543ef529166dc793a98074a5>.
[18] Gabriela Pércio, Rafael Sérgio de Oliveira e Ronny Charles têm outra ótica: “Embora a norma transcrita fale que esses elementos são presumidos, entendemos que o gestor deve tomar o cuidado de expor minimamente nos autos cada um desses requisitos. Em nossa avaliação, o que é dispensada é a ampla comprovação das alegações, que podem ser vertidas de forma simplificada no processo. Ou seja, a presunção afasta a necessidade de prova, mas não a de motivação. Seria irrazoável imaginar que a simples invocação do art. 4º da Lei nº 13.979, de 2020, fosse o suficiente para já se inferir toda a situação indispensável para a aplicação da Lei. É preciso lembrar que a Lei procura simplificar e flexibilizar o processo de contratação, mas sem abrir mão de princípios básicos da Administração Pública, como é o caso do princípio da publicidade (art. 37 da Constituição). Expor minimamente nos autos o motivo da dispensa é condição para a transparência do ato, que merecerá a devida fiscalização social e das instâncias competentes no seu devido tempo.” (A dispensa de licitação para contratações no enfrentamento ao coronavírus, disponível em <http://www.licitacaoecontrato.com.br/artigo_detalhe.html>.
[19] Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. (Decreto-Lei nº 4.657/1942).
[20] REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Contratação Pública Extraordinária no período do Coronavírus. Disponível em <http://www.blogjml.com.br/?cod=77812bb1543ef529166dc793a98074a5>.
[21] PIRONTI, Rodrigo. Covid-19: Reflexos e implicações nas contratações públicas. Disponível em <http://www.mpc.pr.gov.br/covid-19-reflexos-e-implicacoes-nas-contratacoes-publicas/>.
[22] O que se deve observar nesse quesito é que o bem jurídico protegido – vida – é mais importante, juridicamente relevante, do que a situação da empresa contratada. Em outros termos, durante o período de coronavírus, mais vale garantir a vida de seres humanos, da coletividade, adquirindo bens relacionados à sobrevivência humana, do que comprovar se a empresa pode ou não contratar com o Poder Público (BOAVENTURA, Carmen Iêda Carneiro. Breves considerações sobre a lei 13.979/2020 e a pandemia do coronavírus. Disponível em <https://ronnycharles.com.br/breves-consideracoes-sobre-a-lei-13-979-2020-e-a-pandemia-do-coronavirus/>).
[23] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20/1998).
[24] § 3º Os sítios de que trata o § 2º deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, aos seguintes requisitos:
I – conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão;
II – possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações;
III – possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina;
IV – divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação;
V – garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso;
VI – manter atualizadas as informações disponíveis para acesso;
VII – indicar local e instruções que permitam ao interessado comunicar-se, por via eletrônica ou telefônica, com o órgão ou entidade detentora do sítio; e
VIII – adotar as medidas necessárias para garantir a acessibilidade de conteúdo para pessoas com deficiência, nos termos do art. 17 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e do art. 9º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008.
[25] REIS, Luciano Elias; ALCÂNTARA, Marcus Vinicius Reis de. Contratação Pública Extraordinária no período do Coronavírus. Disponível em <http://www.blogjml.com.br/?cod=77812bb1543ef529166dc793a98074a5>.
[26] Ibidem.