Considerações preambulares
Nos idos de 1995, e com perspicácia invulgar, o então Doutor em Direito pela USP e Conselheiro-Substituto do Tribunal de Contas do Estado de São, Paulo Sérgio Resende de Barros, deixou assentada uma posição muito peculiar em relação à licitação pública, no sentido de que ela se prestaria a fins outros, que não apenas o de garantir satisfação ao interesse administrativo (da Administração Pública), como expressão do interesse público, mas também ao interesse social. Este, a seu juízo, pode “prevalecer sobre o administrativo, o financeiro, o técnico, como critério de avaliação. Em casos especiais, à proposta financeira ou tecnicamente mais vantajosa, pode preferir outra, que seja de maior proveito social”,[1] assim exprimindo “a idéia de função social ou socialidade da administração pública”,[2] bem como apresentando o “contrato [administrativo] como instrumento do progresso social”.[3]
Ocorre que isso foi sustentado já em plena vigência da Lei nº 8.666/93 (LGL), a qual dispunha, à época, que:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
§ 1o É vedado aos agentes públicos:
I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato; (…).
Portanto, num primeiro lanço poder-se-ia afirmar, e com certa tranquilidade, que referida manifestação acadêmica seria insustentável, em particular por colidir frontalmente com as regras então constantes da Lei Geral de Licitações. Contudo, essa impressão se desfaz quando esmiuçado o texto legal originário a partir do que constante da Constituição de 1988, e mesmo de outras leis supervenientes, no sentido de que a licitação pública poderia-deveria
“se voltar para outro fim – adicional, secundário – que não a satisfação da necessidade direta e imediata decorrente da execução do objeto contratado. Em suma, que os procedimentos licitatórios também poderiam mirar outro objetivo, indireto e mediato, porém não menos importante, sua vocação para cumprimento de uma função social: latente, e de difícil precisão e delimitação, desde 15 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil); politizada em matéria ambiental por ocasião da realização da Conferência das Partes – COP 8 no Estado do Paraná (Decreto Estadual nº 6.252, de 22 de março de 2006); economicamente segmentada a partir de 14 de dezembro de 2006 (dia da publicação da Lei Complementar nº 123/2006 – o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte); regionalmente dirigida para o desenvolvimento sustentável (na Amazônia, com a Lei Estadual nº 135, de março de 2007; e em São Paulo, com a Lei Estadual nº 13.798, de novembro de 2009, dentre outras); nacionalmente especializada em matéria ambiental (Lei Nacional sobre a Mudança do Clima – Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009)”.[4]
A Constituição da República e o DNS
Apenas examinando a Constituição da República observa-se que, desde o seu preâmbulo, o compromisso assumido e alardeado pelos constituintes foi no sentido de
“instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
Não por acaso, nos termos do art. 3º, deixou-se literalmente consignado como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
DNS na Lei nº 8.666/93 (com a redação dada pela Lei nº 12.349/2010)
Logo, se esses são os objetivos do Estado Brasileiro, mutatis mutandis, eles também o são em face da Administração Pública ou de quem lhe faça as vezes, em qualquer esfera ou perante qualquer órgão de poder, o que restou pacificado com a Medida Provisória nº 495, de 19 de julho de 2010, e, em particular, após sua conversão na Lei nº 12.349/2010 (que alterou a Lei nº 8.666/93) – no sentido de genérica e abstratamente direcioná-la
“à promoção desenvolvimento (econômico, social e ambiental) nacional, e como condição de validade a ser observada por todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como pelos órgãos da administração direta, além dos fundos especiais, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas, das sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios”. [5]
Afinal de contas, por meio de alteração do caput do art. 3º, inseriu-se, por meio de regra jurídica, um terceiro fim legal para as licitações, ao lado de se garantir observância ao princípio constitucional da isonomia e de se perseguir a seleção da proposta mais vantajosa, sem prejuízo de se exigir, no seu processamento e julgamento, “estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.”
É dizer, pelo menos de partida, ou se dá concreção (ainda que em tese, in potentia) à promoção do desenvolvimento nacional sustentável (DNS), ou a licitação será inválida, ainda quando tenha garantido isonomia de tratamento e, afinal, até mesmo repercutido na seleção da proposta mais vantajosa (conforme o tipo de licitação adotado).
Todavia, a situação se alterou sobremaneira, sobrepondo-se novel e importantíssima lei às mais comezinhas lições doutrinárias. In casu, está-se a tratar da Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), introduzindo dois “postulados normativos aplicativos”[6] de supina importância para exame da situação em exame, a saber:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Por conta de tais disposições, o singelo raciocínio do “tudo” ou “nada” em relação ao cumprimento, ou não, das regras jurídicas não mais se sustenta, ficando vedado ao agente administrativo, ao controlador de contas e ao juiz simplesmente anular uma licitação na situação problematizada.
De conseguinte, para que seja válido declarar a nulidade de um certame licitatório, o ônus argumentativo do órgão decisor aumentou sobremaneira, não bastando a mera indicação de descumprimento da regra jurídica como expressão de violação do princípio da legalidade como suficiente para tanto. É preciso antever (dentro do possível e do previsível) e sopesar os efeitos de tanto para a Coletividade, para a Administração Pública e para os licitantes ou contratados, nessa ordem de prioridade, para verificar a necessidade e adequação da providência a ser tomada em cada caso concreto.
De todo modo, o Superior Tribunal de Justiça já enfrentou problema dessa ordem e assim decidiu:
Ementa: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LICITAÇÃO. CONTRATO DE CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DAS ATIVIDADES INERENTES AOS CEMITÉRIOS. EXIGÊNCIA EDITALÍCIA. CAPITAL SOCIAL MÍNIMO ESCRITURADO. ART. 55, VI E XIII DA LEI N. 8.666/93. SANEAMENTO POSTERIOR. NULIDADE DO CONTRATO NÃO DECRETADA. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO.
1. Os princípios que norteiam os atos da Administração Pública, quando em confronto, indicam deva prevalecer aquele que mais se coaduna com o da razoabilidade.
2. No balanceamento dos interesses em jogo, entre anular o contrato firmado para a prestação de serviços de recuperação e modernização das instalações físicas, construção de ossuários, cinzários, crematório e adoção de medidas administrativas e operacionais, para a ampliação da vida útil dos 06 (seis) cemitérios pertencentes ao Governo do Distrito Federal, ou admitir o saneamento de uma irregularidade contratual, para possibilitar a continuidade dos referidos serviços, in casu, essenciais à população, a última opção conspira em prol do interesse público. (…)
4. O princípio da legalidade convive com os cânones da segurança jurídica e do interesse público, por isso que a eventual colidência de princípios não implica dizer que um deles restará anulado pelo outro, mas, ao revés, que um deles será privilegiado em detrimento do outro, à luz das especificidades do caso concreto, mantendo-se, ambos, íntegros em sua validade. (…)
7. Deveras, o Ministério Público Federal, na qualidade de custos legis, destacou que: “o princípio da continuidade dos serviços públicos admite o saneamento de uma irregularidade contratual, no intuito de atingir o interesse público. Correta a decisão do Tribunal a quo que entendeu possível a correção posterior de uma exigência prevista no edital de licitação (capital social mínimo de empresa) para preservar o bem comum dos administrados”. (fl. 662) 8. Recurso Especial desprovido.
(REsp 950.489/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/02/2011, DJe 23/02/2011 – destacou-se.)
Efeitos do descumprimento do DNS na LGL ou na Nova Lei de Licitações
Nesse sentido, à luz do direito vigente (Lei nº 8.666/93) ou mesmo da antevista Nova Lei de Licitações (PL 1292/95), a constatação administrativa, pelas Cortes de Contas ou mesmo pelo Poder Judiciário, acerca do descumprimento da promoção do Desenvolvimento Nacional Sustentável em seara de licitações e contratações públicas – seja como desatendimento a regra (art. 3º, caput, da LGL), seja por desatenção a princípio ou a regra (art. 5º, caput; e inciso IV do art. 11, ambos da NLL)[7] – não importará, inexoravelmente, na invalidação do certame e/ou do contrato se porventura já firmado, mas, na hipótese de sua manutenção, tudo indica que será preciso “compensar” referida falta, e.g., exigindo medidas específicas por parte do contratado como conditio sine qua non de sua firmação ou prorrogação, ou, nesta hipótese, ainda, quando não possível, proibindo-a, sem prejuízo de eventual responsabilização, pelo menos disciplinar, de quem (in)competente deixou de atender aos comandos legais e constitucionais.
[1]. BARROS, Sérgio Resende de. Liberdade e contrato: a crise da licitação. Piracicaba: Editora UNIMEP, 1995. p. 161-162.
[2] Idem, ibidem.
[3] Idem, ibidem.
[4] . FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável (no e do Brasil, antes e depois da MP nº 495/2010). Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 9, n. 107, p. 49-64, nov. 2010. p. 51-52.
[5]. Idem, ibidem.
[6]. Postulados normativos aplicativos são, no dizer de Humberto Ávila, “condições de aplicação dos princípios e das regras”. (In Teoria dos princípios. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 43.)
[7]. Art. 5º. Na aplicação desta lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. (…)
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, (…);
II – assegurar tratamento isonômico entre licitantes e a justa competição; (…)
IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.