1 Controle das licitações e contratos públicos
O Título IV (“Das irregularidades”) do projeto de lei (PL) sobre licitações e contratos públicos estabelece uma série de medidas e mecanismos para efetuar o controle de economicidade e de licitude nesse tema. O presente artigo conferirá foco ao Capítulo III.
O art. 168 do PL aprovado pela Câmara dos Deputados fixa o que chamou de “linhas de defesa” – o termo parece bastante interessante. Em síntese, fixa três linhas de controle das licitações e contratos públicos, por meio das quais os certames e as contratações são submetidas a contínuas e permanentes práticas de gestão de riscos e controle preventivo. O emprego dos recursos de tecnologia da informação passa a ser um aliado muito importante. E, por fim, o controle social também se mostra muito importante. Os controles são feitos pelos servidores e empregados públicos que atuam na estrutura do órgão ou entidade; pelos fiscais dos contratos; pelas unidades de assessoramento jurídico e controle interno do órgão ou entidade; pelos órgãos de controle externo, como as cortes de contas, Ministério Público, Poderes Judiciário e Legislativo e cidadãos.
O caráter do controle preventivo é bastante finalístico. Por isso, deve ser fornecida para concretizar a integridade da probidade, ou seja, deve ser útil. Os controles neste nível devem ser oportunos, tempestivos, pertinentes, confiáveis, inteligíveis. As consultas não podem conduzir a uma má representação da realidade. As medidas para o saneamento e a mitigação dos riscos de se repetir a ocorrência devem ser implementadas, de preferência aperfeiçoando os controles preventivos e capacitando os agentes públicos responsáveis.
De outro lado, a legislação em tema de licitações foi pensada diante dos processos eletrônicos. E isto pressupõe compreender, por exemplo, mecanismos de fiscalização preventiva diante do contexto do cenário digital em que se insere[1].
O art. 168 prioriza o controle preventivo em relação ao repressivo. Por exemplo: a adoção de um plano de prevenção de riscos (risk managenent), a fim de mapear as áreas e as possíveis ocorrências de desvios, bem como implementar medidas neste combate, é um exemplo de controle preventivo. Tal sindicabilidade pode evitar perdas e danos patrimoniais que sequer atuação repressiva posterior logrará recuperar, a depender de seu vulto e complexidade.
O controle preventivo complementa e tenta minimizar o uma série de medidas repressivas no combate aos desvios. Por isto que ele deve ser real. Para tanto, o mencionado art. 168 “caput” estabelece que as contratações públicas devem se submeter a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo. Logo, há de se estabelecer verdadeiro “plano de controle” da atuação administrativa no âmbito das licitações e dos contratos públicos. É dizer: reclama-se a existência de uma série de metas, de procedimentos e de estruturas permanentes para se tentar evitar a prática de ilícitos nas aquisições feitas pelos entes estatais.
O “caput” do art. 168 do PL ainda enfatiza que os recursos de tecnologia da informação devem ser empregados para qualificar o controle das contratações públicas. A existência de procedimentos virtuais, o cruzamento de dados, a aplicação da inteligência artificial entre outras medidas são bastante profícuas no combate a ilicitudes. E isso não prejudica, por óbvio, a presença do controle social a ser exercido pelos cidadãos, os quais podem exercer esse controle, por exemplo, propondo ações populares contra eventuais atos ilícitos ou lesivos ao patrimônio público[2]; representando aos órgãos de controle; impugnando diretamente o edital de licitação por irregularidade na aplicação da Lei Geral de Licitações e Contratos Públicos[3]; etc.
O controle a ser efetivado pelas várias estruturas e formas disciplinadas na Lei Geral deverá ser regulamentada por cada entidade estatal (cf. art. 168, § 1º). Quem deve edital esse regulamento é “alta administração do órgão ou entidade”, ou seja, as autoridades que estão ocupando os cargos de máxima hierarquia, como, por exemplo, os Ministros de Estado, Secretários de Estado, Secretários de Município, Diretores de Autarquias ou de Fundações etc.
Todo o controle possui um custo, que poderá ser de natureza econômica, financeira, informacional etc. Por exemplo: a manutenção das estruturas de controle pode não ser economicamente viável ou eficiente. Ou mesmo o processo licitatório poderá contar com uma maior burocracia. Assim, a regulamentação e a implementação dos mecanismos de auditoria e governança deverão se pautar por uma série de parâmetros (art. 168, § 1º):
(a) Levará em consideração os custos e os benefícios;
(b) Deve se optar pelas medidas que promovam relações íntegras e confiáveis;
(c) Deve-se primar por medidas que qualifiquem a segurança jurídica para todos os envolvidos,
(d) Preferir-se-ão medidas que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas.
A fim de qualificar esse controle, o § 2º do art. 168 determinou que todas as informações, dados ou documentos podem ser acessados pelos órgãos que atuam na fiscalização das licitações e contratos. E foi além: o sigilo atribuído aos referidos dados ou às mencionadas informações não pode ser obstáculo ao acesso. Em outros termos, a classificação dos documentos em reservado, secreto e ultrassecreto nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação)[4] não terá efeito ao órgão de controle com o qual foi compartilhada eventual informação sigilosa. E ele, ao ter acesso ao dado, será corresponsável pela manutenção do seu sigilo.
2 Linhas de defesa do controle das contratações públicas – atores do controle das licitações e contratos públicos
O art. 168 estabeleceu uma série de autoridades ou instituições que devem fazer o controle das contratações públicas, o que convencionou chamar de “linhas de defesa”. Em verdade, os incisos do referido dispositivo apenas congregam autoridades, órgãos ou instituições que devem atuar no controle da Administração Pública. E o § 3º, a seguir comentado, regula algumas condutas a serem tomadas, diante de determinadas situações.
Cabe dizer que essas “linhas de defesa” não necessariamente se subordinam, porque, em verdade, atuam em regime de cooperação. Logo, uma complementa a outra. A “primeira linha”, por exemplo, não prevalece sobre a “segunda”, e assim por diante. Assim, não estamos diante de uma sucessão de fases ou de estágios.
(a) Primeira linha de defesa: é exercida por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade (inciso I). Opera-se por meio de autotutela, ou seja, os agentes mencionados tem o dever de avaliar e, se constatado, anular atos administrativos ilegais[5];
(b) Segunda linha de defesa: é feito por meio de controle de legalidade ou de economicidade, a ser exercido por análise feita por unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade. Em outros termos, ocorre quando a licitação ou o contrato público são submetidos à análise de órgãos como a Advocacia da União, Procuradorias de Estado, Procuradorias de Municípios, Controladoria-Geral da União, dos Estados ou de Municípios.
(c) Terceira linha de defesa: feita por órgão central de controle interno da Administração e tribunal de contas. Em verdade, no primeiro caso, tal situação assemelha-se aos controles internos da “segunda linha de defesa” (item “(b)”), com a diferença que, aqui, a sindicabilidade é feita pelo órgão de controle interno central. E, também, o controle pode ser feito externamente, quando o inciso III fala da auditoria feita pelas cortes de contas.
Cabe referir, ainda, que outros sujeitos, autoridades ou órgãos que não listadas nos incisos I, II e III do “caput” do art. 168 podem também exercer o controle das licitações e dos contratos públicos, até como exercício de um direito ou de um mister constitucional ou legalmente garantido. Como exemplo disso, pode-se citar o Ministério Público ou os cidadãos.
3 Formas ou modos de controle
Quando os integrantes das “linhas de defesa” a que se referem os incisos I, II e III do “caput” do art. 168 perceberem que existe uma prática ilícita ou indevida, podem tomar as condutas listadas nos incisos I e II do § 3º da mesma regra. Essas ações não excluem outras atuações.
Quando constatarem simples impropriedade formal, ou seja, uma irregularidade ad probationen e que não prejudica o interesse público ou de terceiros, as autoridades e órgãos poderão adotar medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência. Aqui, pode ser aplicado o disposto no art. 55 da Lei nº 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal): “Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.”.
Nesse caso, deve-se dar preferência ao aperfeiçoamento dos controles preventivos e à capacitação dos agentes públicos responsáveis (art. 167, § 3º, inciso I). Logo, nessas situações, uma atuação orientativa e pedagógica passa a ser uma conduta prioritária.
Na hipótese de se constatar vício jurídico ad substancian, ou seja, nulidades e irregularidade que configure
dano à Administração Pública, deverão ser adotadas as providências necessárias para apuração das infrações administrativas
(art. 168, § 3º, inciso II[6]).
Veja que essa é uma conduta cogente e vinculada, porque a autotutela, nessa
hipótese, não admite um juízo de oportunidade e conveniência. Adicionalmente,
ainda, podem ser adotadas as medidas previstas no inciso I do § 3º do art. 168[7].
Para tanto, há de se ter o cuidado de se observar a segregação de funções e a necessidade de individualização das
condutas. A autoridade ou do órgão que constatar essa irregularidade deve remeter
ao Ministério Público competente cópias dos documentos cabíveis para apuração
dos demais ilícitos de sua competência[8].
[1] Mostra-se candente minimizar as assimetrias de informação, bem como estruturar melhor uma matriz de riscos.
[2] A ação popular possui é disciplinada pela Lei nº 4.717/65, e possui fundamento no art. 5º, inciso LXXIII, da CF/88.
[3] Tal controle possui fundamento no art. 163 do PL e no direito de petição garantido constitucionalmente (art. 5º, inciso XXXIV: “[…] são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;”).
[4] Sobre o acesso às informações públicas e as classificações de sigilo, consultar nossa obra: HEINEN, Juliano. Comentários à Lei de Acesso à Informação. Lei nº 12.527/11. Belo Horizonte: Fórum, 2015.
[5] Cf. Súmula nº 473 do STF e art. 53 da Lei nº 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal).
[6] PL, art. 168, § 3º, inciso II: “quando constatarem irregularidade que configure dano à Administração, sem prejuízo das medidas previstas no inciso I do caput deste artigo, adotarão as providências necessárias para apuração das infrações administrativas, observadas a segregação de funções e a necessidade de individualização das condutas, bem como remeterão ao Ministério Público competente cópias dos documentos cabíveis para apuração dos demais ilícitos de sua competência.”.
[7] PL, art. 168, § 3º, inciso I: “quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis.”.
[8] Na linha do que dispõe o art. 15 da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa): “Art. 15. A comissão processante dará conhecimento ao Ministério Público e ao Tribunal ou Conselho de Contas da existência de procedimento administrativo para apurar a prática de ato de improbidade. Parágrafo único. O Ministério Público ou Tribunal ou Conselho de Contas poderá, a requerimento, designar representante para acompanhar o procedimento administrativo.”.