Uma questão que continuamente vem afligindo os agentes públicos quanto ao planejamento e realização de certames destinados à contratação de bens e serviços de tecnologia da informação e comunicação (TIC) baseados na Lei n.º 14.133/2021: afinal, ainda seria aplicável o direito de preferência previsto no art. 3º da Lei n.º 8.248/1991, regulamentado pelo Decreto Federal n.º 7.174/2010?
Desde já é possível pontuar que a questão envolve uma lógica de antinomia aparente de normas e de direito intertemporal.
A Lei n.º 8.248/1991, anterior à Lei n.º 8.666/1993, foi editada com o objetivo de promover o incentivo e o aumento da competitividade do setor de informática e automação brasileiro. Na redação original[1] de seu art. 3º[2], a norma previa a preferência na contratação de bens e serviços de informática e automação “produzidos por empresas brasileiras de capital nacional“. Posteriormente, com ajustes redacionais pontuais, o dispositivo recebeu nova redação dada pela Lei n.º 10.176/2001[3].
Em vista do § 2º do art. 3º da Lei n.º 8.248/1991, por pressupor para a sua incidência “condições equivalentes de prazo de entrega, suporte de serviços, qualidade, padronização, compatibilidade e especificação de desempenho e preço”, compreende-se que o direito de preferência instrumentaliza-se como um critério de desempate.
O fato é que, com o advento da Lei n.º 8.666/1993, notadamente o §2º do art. 3º[4], que, em seu texto original[5], já estabelecia preferência, como critério de desempate, aos bens e serviços em geral produzidos no Brasil, estabeleceu-se a convivência com o art. 3º da Lei n.º 8.248/1991, porquanto se tratavam de disposições compatíveis, sendo a preferência estabelecida na norma de 1991 mais específica, vez que focada não necessariamente na nacionalidade da empresa produtora ou prestadora do bem ou serviços, mas sim no “desenvolvimento” da tecnologia em si.
O Decreto n.º 7.174/2010, notadamente em seus arts. 5º, 7º e 8º, ao regulamentar o art. 3º da Lei n.º 8.248/1991, veio a conferir operacionalidade prática ao “direito de preferência”, chegando a, inclusive, ostentar uma evidente inovação no inciso II do art. 8º, estabelecendo uma espécie de “empate ficto” com intervalo de 10%[6].
Os órgãos e entidades da Administração Pública habituaram-se à aplicação do direito de preferência quando da realização de licitações para contratação de bens e serviços TIC, inclusive de modo automático a depender da parametrização de sistemas de licitação eletrônica[7].
Todavia, ressalvado o regime de tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas estabelecido na Lei Complementar n.º 123/2006, a Lei n.º 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), em seu art. 60, passou a reger de forma exauriente as preferências e critérios de desempate nas licitações públicas.
Do panorama exaustivo do art. 60 da NLLCA, em especial seu §1º que disciplina os critérios de desempate, há de se concluir pela revogação tácita do art. 3° da Lei n.º 8.248/1991. Afinal, o art. 3° da Lei n.º 8.248/1991, ao dispor sobre preferência em contratações públicas, veicula o mesmo conteúdo normativo tratado de forma distinta pelo art. 60 da Lei n.º 14.133/2021. Em vista dos critérios de resolução de antinomia aparente de normas (§1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), em especial o critério cronológico, deve prevalecer a lei posterior que disciplina o mesmo assunto de lei anterior.
Se tacitamente revogado art. 3° da Lei n.º 8.248/1991, é preciso reconhecer que os arts. 5º, 7º e 8º do Decreto n.º 7.174/2010 não foram “recepcionados” pela Lei n.º 14.133/2021, não sendo juridicamente aceitável a aplicação dos normativos regulamentares em certames regidos pela NLLCA.
A seu turno, considerando o regime de transição estabelecido no art. 191 da Lei n.º 14.133/2021 e a ultratividade da Lei n.º 8.666/1993 incidente nos procedimentos licitatórios nela fundamentados, assim como se dá no caso do Decreto n.º 10.024/2019[8], entendemos ser pouco provável que o Poder Executivo Federal venha a promover a revogação expressa do Decreto n.º 7.174/2010. Em uma perspectiva concreta, tais regulamentações continuarão a reger os procedimentos licitatórios realizados (ou em andamento) com base nas Leis n.º 8.666/1993 e n.º 10.520/2002.
Em razão de ultratividade, tais regulamentos continuaram a surtir efeitos concretos até a última licitação a ser realizada com base no regime jurídico revogado. Ao chegarmos nesse horizonte, teremos uma espécie de eficácia exaurida dos arts. 5º, 7º e 8º do Decreto n.º 7.174/2010.
Em conclusão, entendemos que:
a) o art. 3° da Lei n.º 8.248/1991 foi tacitamente revogado pelo §1º do art. 60 da Lei n.º 14.133/2021;
b) os arts. 5º, 7º e 8º do Decreto n.º 7.174/2010 não foram “recepcionados” pela Lei n.º 14.133/2021;
c) o Decreto n.º 7.174/2010 não é aplicável aos procedimentos licitatórios regidos pela Lei n.º 14.133/2021.
Notas
[1] Redação original do caput do art. 3º da Lei n.º 8.248/1991:
Art. 3º Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da União, darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, nos termos do § 2º do art. 171 da Constituição Federal, aos produzidos por empresas brasileiras de capital nacional, observada a seguinte ordem:
I – bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
II – bens e serviços produzidos no País, com significativo valor agregado local.
[2] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1991/lei-8248-23-outubro-1991-367204-publicacaooriginal-1-pl.html
[3] Redação do art. 3º da Lei n.º 8.248/1991 dada pela Lei n.º 10.176/2001:
Art. 3º Os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta ou indireta, as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público e as demais organizações sob o controle direto ou indireto da União darão preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, observada a seguinte ordem, a:
I – bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País;
II – bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, na forma a ser definida pelo Poder Executivo.
[4] Redação original do §2º do art. 3º da Lei n.º 8.666/1993:
Art. 3º […]
§ 2º Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:
I – produzidos ou prestados por empresas brasileiras de capital nacional;
II – produzidos no País;
III – produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
[5] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1993/lei-8666-21-junho-1993-322221-publicacaooriginal-1-pl.html
[6] Sobre o tema, há muito apontamos em nossa obra “Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência”, a própria ilegalidade do inciso II do art. 8º do Decreto n.º 7.174/2010:
“A partir da leitura objetiva do art. 3º da Lei n.º 8.248, em conjunto com a atual redação do § 2º, art. 3º da LGL, depreende-se que, em se tratando de licitações para aquisição de bens e serviços de informática e automação, o exercício do direito de preferência (como critério de desempate) somente ocorrerá diante do empate nominal dos valores das propostas. Embora se destine à regulamentação do art. 3º da Lei n.º 8.248/1991, o art. 8º, II, do Decreto n.º 7.174 inova na ordem jurídica ao estabelecer a aplicação do direito de preferência às ofertas de produtos nacionais cujo valor seja até 10% acima da melhor proposta válida. Com efeito, o decreto regulamentar estabelece uma espécie de “empate ficto” para viabilizar o direito de preferência, de modo que, caso uma empresa que cote um produto enquadrado no art. 3º da Lei n.º 8.248/1991 oferte um valor até 10% da melhor proposta, poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, ou seja, “cobrir” o valor da melhor proposta até então. Parte da doutrina entende que a inovação contida no art. 8º, II, do Decreto n.º 7.174/2010 é ilegal, uma vez que, tratando-se de decreto regulamentar, nos termos do art. 84, IV, da CRFB, extrapola os limites da lei cuja execução pretende regulamentar: a Lei n.º 8.248/1991” (AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência. 3 ed. Brasília: Senado Federal, 2020, p. 151).
[7] No âmbito do sistema COMPRASNET, a aplicação prática do Decreto n.º 7.174/2010, desde que implementada em 2011 [vide: http://www.comprasnet.gov.br/noticias/noticias1.asp?id_noticia=391], mostrou-se problemática, porquanto inviável quando a licitação se processava a partir do agrupamento de itens. Para tanto, vide Acórdão TCU n.º 1.352/2018-Plenário e os esclarecimentos disponíveis em: https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-e-procedimentos/21-orientacao-sobre-a-aplicacao-do-direito-de-preferencia-nas-contratacoes-de-servicos-de-tecnologia-da-informacao-associados-ao-fornecimento-ou-locacao-de-bens
[8] O Decreto Federal n.º 10.024/2019, no âmbito da Administração Pública Federal, regulamenta o pregão, na forma eletrônica, consoante o panorama da Lei n.º 10.520/2002, revogada em 31/12/2023. Contudo, para as licitações realizadas com fundamento na Lei do Pregão, o mencionado decreto continua a incidir seus efeitos em uma lógica de ultratividade.