Início Artigos Anderson Pedra A nova lei de licitação e a (im)possibilidade de conjugação dos regimes...

A nova lei de licitação e a (im)possibilidade de conjugação dos regimes sancionatórios à luz do Direito Administrativo sancionador

1
3628
a imagem mostra o símbolo da justiça na mesa e um homem assinando um documento

Anderson Sant’Ana Pedra[1]
Autor ONLL

Não se tem dúvida de que às infrações administrativas ocorridas e oriundas de pactuações celebradas nos moldes da Lei nº 14.133/2021 (NLLCA) serão aplicadas as normas sancionatórias (processuais e materiais) desse mesmo diploma legislativo. Contudo, a questão que se pretende analisar no presente artigo é verificar se as normas mais benéficas (processuais e materiais) que emanam da NLLCA devem ou não serem aplicadas à infração decorrente de pacto administrativo (lato sensu) celebrado pela Administração Pública brasileira sob a égide da Lei nº 8.666/1993 pouco importando quando tenha ocorrido essa hipotética infração, se durante a vigência exclusiva da Lei nº 8.666/1993 (março de 2021, v.g., ou em fevereiro de 2030[2]).

A análise será realizada a partir de uma perspectiva constitucional, principalmente das normas que emanam do art. 5º, inc. XXXVI[3] da Constituição brasileira de 1988 (CRFB) que consagra o princípio da segurança jurídica e do inc. XL[4] que contempla o princípio da retroatividade benigna (novatio legis in mellius) e sua (in)aplicabilidade no âmbito do direito administrativo sancionador.

A análise da questão é complexa e exige uma interpretação do microssistema normativo das contratações públicas na sua inteireza a partir de uma interpretação sistemática com a devida filtragem constitucional.

2         O regramento trazido pela Lei nº 14.133/2021

Uma leitura isolada da Lei nº 14.133/2021 pode conduzir a uma resposta precipitada de que suas normas teriam eficácia apenas aos pactos celebrados sob sua égide e não nas relações jurídicas já firmadas de acordo com as disposições da Lei nº 8.666, já que o art. 190 da NLLCA prescreve que “[o] contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada”[5] – formalizando a intitulada ultratividade normativa, enquantoo art. 191 prescreve que é vedada a “aplicação combinada” da Lei nº 14.133/2021 com a Leis nºs 8.666/1993, 10.520/2002 e 12.462/2011.

2.1       Interpretação sistemática e constitucional da Lei nº 14.133/2021

Deve-se compreender, de partida, que cada dispositivo da Lei nº 14.133/2021 integra o microssistema normativo das contratações públicas que exige que qualquer de suas normas jurídicas, de seus institutos jurídicos ou de seus enunciados normativos sobre contratação pública reste avulso, mas sim integrado ao sistema normativo na sua completude, a partir de uma interpretação sistemática, notadamente dos arts. 190 e 191 com uma necessária interpretação conforme à constituição (ou filtragem constitucional).

Pelo método da interpretação sistemática, o intérprete deve partir do pressuposto de que um enunciado normativo, contenha ele uma norma-regra ou uma norma-princípio, não existe isoladamente, mas sim, em coexistência com os demais enunciados (regras e princípios) que formam o microssistema normativo das contratações públicas. A interpretação do direito é a interpretação do direito em seu todo, não de textos isolados – não se interpreta o direito em tiras, em partes, aos pedaços; sendo um dos postulados da metodologia jurídica o da existência fundamental da unidade do Direito, o que converge assim para a interpretação sistemática[6] que pressupõe a unidade do sistema normativo que culmina e se origina com a Constituição brasileira de 1988, com seus princípios, direitos e garantias fundamentais, afinal, um enunciado normativo isolado, destacado, desprendido do sistema normativo, não expressa significado normativo algum.[7]

Melhor se alcançará o pensamento contido nos enunciados normativos do art. 190 e 191 da NLLCA quando estes estão enquadrados na ordem sistemática do conjunto de disposições de que faz parte, in casu, no microssistema normativo das contratações públicas.

Interpretar sistematicamente implica, então, excluir qualquer solução interpretativa que resulte logicamente contraditória ou descalibrada com alguma norma do sistema normativo, notadamente uma norma constitucional.

A interpretação sistemática deve ser definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação dentre várias possíveis aos princípios, às regras e aos valores jurídicos, hierarquizando-os em um todo aberto, fixando o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica. Assim, ao se aplicar uma norma contida em um enunciado, está-se aplicando o sistema como um todo.[8]

Tem-se então que a interpretação sistemática de qualquer enunciado normativo (regra ou princípio) da Lei nº 14.133/2021 é aquela que se realiza em consonância com todas as demais normas do microssistema normativo das contratações públicas, considerando o ordenamento jurídico hierarquizado, máxime na Constituição brasileira de 1988, com seus objetivos, princípios, direitos e garantias fundamentais, considerados dinamicamente e em conjunto.

A concepção de microssistema normativo das contratações públicas deve ser compreendida a partir da sua unicidade, completude e coerência de conceitos, institutos e categorias; iluminando e comandando a elaboração teórica e a aplicação prática do conhecimento jurídico moderno a fim de verificar sua funcionalidade e servir eficazmente para eventuais ampliações e adequações do seu espectro normativo sempre que as necessidades sociais, econômicas ou administrativas exigirem[9], devendo esse microssistema ser pensado como um conjunto aberto de regras e princípios e em permanente processo de concretização e de interação, de modo dialético e dinâmico, com as demais ciências e ramos do direito – como, in casu, com o Direito Penal e o Processual Penal, tendo seu epicentro na Constituição brasileira de 1988, sendo que esse processo da constitucionalização das contratações públicas[10] se identifica sobretudo com a interpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.

Indispensável, assim, que os enunciados normativos da Lei nº 14.133/2021 sejam interpretados em conformidade com a Constituição brasileira de 1988 para que o microssistema normativo das contratações públicas esteja devidamente calibrado com o sistema normativo constitucional brasileiro, notadamente com os princípios, os direitos e as garantias constitucionais.

2.2       Segurança jurídica

A certeza e a segurança das relações jurídicas, utilizadas e invocadas em vários ramos do direito expressa-se pelo princípio da segurança jurídica – elemento constitutivo de um Estado Democrático de Direito e uma das finalidades do Estado para promover uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social.[11] É certo também que havendo ou não menção expressa a um direito à segurança jurídica, há muito, pelo menos no âmbito do pensamento constitucional contemporâneo, enraizou-se a ideia de que um autêntico Estado de Direito é também um Estado da segurança jurídica. Com efeito, a doutrina constitucional contemporânea tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito.[12]

Em virtude de sua importância, o art. 5º da NLLCA trouxe expressamente o princípio da segurança jurídica e a Lei nº 13.655/2018, ao incluir dispositivos na LINDB, teve como preocupação conferir melhor concreção e coloração à segurança jurídica na criação e na aplicação do direito público.

O princípio da segurança jurídica visa a preservar a estabilidade nas relações, situações e vínculos jurídicos, e dentre suas consequências pode elencar: (i) proibição, em geral, de retroatividade dos atos administrativos; (ii) impedimento de aplicação de nova interpretação a situações pretéritas; e, (iii) respeito aos direitos adquiridos, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito.

A segurança jurídica é entendida como sendo um princípio (ou conceito) jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva.

A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualificam como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada conforme prescreve a o art. 5º, inc. XXXVI da CRFB.

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança (confiança legítima) das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspetos de sua atuação.[13]

2.3       Conflito entre princípios: concordância prática (ou harmonização)

Em razão das nuances que aqui serão trazidas, tem-se que a partir da abertura semântica dos princípios é praticamente impossível não observar um possível conflito aparente entre eles, in casu: o da segurança jurídica a partir do que está delineado no inc. XXXVI e o da retroatividade benigna previsto no inc. XL, ambos do art. 5º da CRFB

Havendo conflito entre princípios, e como não há hierarquia entre eles, para se chegar a uma solução, é indispensável o manuseio de alguns métodos interpretativos, alguns gerais (intepretação sistemática), outros próprios de conflitos entre princípios (concordância prática ou harmonização).

Conjuntamente com o método da interpretação sistemática, o princípio interpretativo da concordância prática ou da harmonização apresenta-se de modo importante e ferramental forte para se buscar a solução de conflitos entre princípios buscando a ponderação de suas cargas axiológicas.

O princípio interpretativo da concordância prática ou da harmonização não auxilia apenas no caso da existência de contradições normativas, mas também nos casos de concorrências e colisões de princípios publicistas no sentido de uma sobreposição parcial dos seus espectros normativos de aplicação, devendo-se evitar a exclusão (sacrifício) total de um ou de alguns deles.[14]

Pois bem, enquanto a segurança jurídica se presta para tutelar o particular em face de inovações promovidas pelo Estado, de modo não diferente o princípio da retroatividade benigna se presta para tutelar o particular a fim de conceder sempre a melhor resposta do Estado para determinada infração; e ambos devem ser sopesados (ponderados).

A utilização do princípio da retroatividade benigna jamais ofenderá o princípio da segurança jurídica enquanto princípio que impera num Estado Democrático de Direito, pois ambos buscam tutelar o particular em face do ius puniendi estatal e devem ser sopesados, ponderados, buscando uma harmonização de suas eficácias normativas sem que um esvazie completamente o outro.

3         Direito administrativo sancionador e sua integração pelo direito (processual) penal

Além do manejo do direito (processual) penal, o dever-poder punitivo estatal (ius puniendi) impõe ou permite a aplicação de sanções pela própria Administração – as chamadas sanções administrativas – e, para tanto, é impossível afastar-se dos princípios, dos direitos e das garantias trazidos pela Constituição brasileira de 1988, inclusive, para permitir o controle da atuação estatal sancionadora e eventual inobservância das normas constitucionais.

Os princípios, os direitos e as garantias constitucionais em razão da sua enorme amplitude ético-jurídica orientam toda e qualquer expressão do ius puniendi estatal seja ele decorrente do Estado Juiz ou do Estado Administração[15], fazendo com que o direito administrativo sancionador seja interpretado à luz das normas constitucionais que são o epicentro de qualquer sistema normativo em um Estado Constitucional Democrático de Direito, é dizer: ao acusado em processo administrativo sancionador deve ser assegurado princípios, direitos e garantias constitucionais.

O ius puniendi estatal, embora seja dividido em ramos epistemológicos que objetivam tutelar bens jurídicos específicos e setorizados, possui uma base ontológica unitária[16] formada por princípios jurídicos únicos.

Bandeira de Mello afirma que não há superfície para se cogitar em qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais, sendo o que as distingue, única e exclusivamente, a autoridade competente para impor a sanção.[17],[18]

Anota Oliveira que “não há diferença de conteúdo entre crime, contravenção e infração administrativa”, inexistindo “diferença de substância entre pena e sanção administrativa”.[19]

Nessa toada, não observamos distinção ontológica entre as espécies de infrações, estejam elas previstas no direito penal ou no direito administrativo (licitações e contratos, v.g.), afinal, qualquer uma dessas infrações compreenderá a desobediência a uma norma prevista no ordenamento jurídico elaborado pelo Estado não havendo superfície para se discutir uma distinção substancial entre as diversas previsões normativas no ordenamento jurídico[20],[21], até porque os elementos decisivos para cada efeito na respectiva órbita sancionadora são os fatos constitutivos da infração, ou seja, apenas os elementos factuais contemplados no tipo penal ou administrativo cuja prática é punível.[22]

O direito público sancionador possui suas normas no berço único do ordenamento jurídico brasileiro, a saber: a Constituição brasileira de 1988, estando aí fincadas igualmente a base do direito penal e do direito administrativo sancionador, sendo que este se desdobra ainda no direito sancionador ambiental, regulatório, disciplinar, fiscal e, para o que nos interessa, licitações e contratos administrativos.

A partir dessa origem no mesmo manancial constitucional, não se questiona sobre a eficácia integradora do direito (processual) penal, em razão, notadamente, da tese do poder punitivo único e por ser mais bem desenvolvido, criando uma “sinergia dogmática” com o direito administrativo sancionador.[23]

Por fim, não se pode afirmar que há uma autonomia entre o direito (processual) penal e o direito administrativo sancionador já que a autonomia é relativa, pois as normas do Direito Penal se constituem num direito subsidiário relativamente ao direito das contraordenações, uma vez que este direito, se não é Direito Penal é, em todo caso, um Direito sancionatório de caráter punitivo”[24], notadamente por ser o direito administrativo sancionador uma das manifestações do ius puniendi estatal e que exige um diálogo (cuidadoso) de fontes com o direito (processual) penal.

3.1       Direito administrativo sancionador e as normas constitucionais aplicáveis

Para além das normas-regras e das normas-princípios específicas que contém cada sub-ramo do direito público sancionador (direito penal e direito administrativo sancionador), tem-se as normas-princípios fundamentais que são comuns ao todo sistêmico do direito público sancionador.

Em decorrência da função sistêmica e central da Constituição brasileira de 1988, tem-se que os princípios, os direitos e as garantias fundamentais, por reconhecerem a condição especial à pessoa e naquilo que se relaciona com o jus persequendi e o jus puniendi estatal devem ser aplicadosa todos os sub-ramos do direito público sancionador, sem a ressalva de pertencerem a este ou aquele ramo específico do direito público sancionador[25]penal ou administrativo sancionador.

A unidade do ius puniendi estatal obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador.[26]

Não há espaço para a não utilização dos preceitos constitucionais, notadamente das garantias fundamentais, em sede do direito administrativo sancionador, até porque “deve-se sempre preferir a inteligência dos textos que tornem viável seu objetivo, ao invés da que reduz à inutilidade” (commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur magis valeat quam pereat).[27]

Adverte Ferreira que o “Direito administrativo sancionador precisa adiantar o passo, sob pena de mal ter nascido e já figurar caduco” e sua efetivação deve ocorrer “calcada em tudo quanto se extrai da Carta da República de 1988 e do sistema jurídico em vigor”.[28]

Conforme já afirmado, a doutrina nacional recorre à “identidade de fundo entre as sanções administrativas e criminais (o ius puniendi único)” para, com base nela e tendo por referência o marco da Constituição brasileira de 1988, notadamente as garantias fundamentais elencadas no seu art. 5º, “delinear os princípios e regras aplicáveis ao direito administrativo sancionador”.[29]

Tem-se então que os princípios, os direitos e as garantias fundamentais são aplicáveis, em geral, ao direito público sancionador – direito penal ou direito administrativo sancionador, pois tem como finalidade preservar a legalidade, o devido processo legal, a legitimidade das decisões estatais e, por consectário lógico, tutelar a legítima relação entre o particular e o Estado; e “onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito” (“ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio”).

Não diferente o STF já se posicionou no sentido de que a unidade do ius puniendi do Estado impõe o deslocamento das garantias tidas como penais para o direito administrativo sancionador.[30]

Todas essas ponderações levam à conclusão de que o direito (processual) penal e o direito administrativo sancionador se correlacionam já que ambos exteriorizarem o ius puniendi do Estado, que tem o poder de subtrair do particular (pessoa física ou jurídica) direitos que lhe são caros.

Tem-se assim que os direitos, os princípios e as garantias fundamentais trazidas pelo art. 5º da CRFB, tais como: do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da legalidade, da segurança jurídica, da motivação, da proporcionalidade (razoabilidade), da responsabilidade subjetiva (culpabilidade), da pessoalidade da pena, da individualização da sanção, do juiz natural (mesmo sem a mesma exigência de ser um juiz togado) da tipicidade (mesmo com uma roupagem mais branda daquela prevista para o direito penal) e, finalmente, o da retroatividade da lei mais benigna; têm sua eficácia também em sede do direito administrativo sancionador.

Em sede de primeira conclusão parcial, entendemos que deve ser admitida a integração e a aplicabilidade dos princípios, dos direitos e das garantias fundamentais do direito (processual) penal ao direito administrativo sancionador, mas tal admissão não pode ser compreendida como uma aplicação automática, apriorística, irrestrita e acrítica de todas as normas[31] extraíveis dos enunciados constitucionais tal qual é feito para o direito penal também para o direito administrativo sancionador já que não guardam perfeita e absoluta similitude, devendo o intérprete-operador do direito realizar a necessária calibração interpretativa para a devida aplicação das normas próprias daquele ramo especializado considerando, notadamente, para o que se prestam as garantias fundamentais – tutelar o particular do ius puniendi estatal.[32]

3.2       Retroatividade benigna como princípio-garantia fundamental

Como já delineado anteriormente, a defesa da aplicação dos princípios do direito (processual) penal também ao direito administrativo sancionador lastreia-se na proximidade desses sub-ramos sancionadores na medida em que eles, enquanto espécies do gênero direito público sancionador, afloram de um mesmo manancial – a Constituição brasileira de 1988.

 O princípio da retroatividade benigna (lei sancionadora mais favorável (lex mitior)), assim como os demais princípios constitucionais e garantias fundamentais objetivam limitar os poderes estatais punitivos tutelando o particular em face de potencial abuso estatal, inclusive no exercício da função legislativa.

A benignidade sancionatória administrativa de uma nova norma não se revela apenas quando esta promove, por exemplo, a abolição de um tipo administrativo ou a eliminação ou a redução de uma espécie sancionatória, mas também quando implanta qualquer espécie de benefício ao particular infrator, seja ele de índole material ou processual. 

A concepção da retroatividade benigna funda-se no ideal de Justiça (igualdade), afinal, se o Estado por meio de inovação legislativa entende não ser mais necessária a defesa da sociedade ou da Administração por meio de alvissareiro regramento material ou processual; não seria justo alguém ser sancionado ou continuar a responder processo na mesma modelagem da antiga legislação mais prejudicial, apenas por ter praticado o fato anteriormente.

Tem-se assim que no direito administrativo sancionador o princípio-garantia da retroatividade benigna justifica-se em face do superveniente desinteresse da sociedade, por meio do legislador, pela sanção mais grave ou mesmo no desinteresse pela própria conduta tida anteriormente como inadequada; de sorte que com essa nova valoração dos anseios sociais trazida pela novel legislação não mais justifica a ingerência na espera privada com a intensidade mais gravosa prevista na legislação revogada.

Soma-se a essa ideia de justiça que permeia a concepção da retroatividade benigna o fato de que seria injusto sancionar de maneira distinta aqueles que cometeram a mesma infração administrativa ofendendo, de certo modo, o princípio da igualdade.[33]

Deve-se partir de uma interpretação construtiva dos preceitos do art. 5º, inc. XL da CRFB (“lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) para denotar que a expressão “lei penal” contida no dispositivo constitucional refere-se a “lei sancionadora em geral”[34], devendo ser aplicada, com cautela, a todo e qualquer ramo do direito, inclusive nos processos de responsabilização por infrações administrativas relacionadas a licitações ou a contratos administrativos por se tratar de um sub-ramo do direito público sancionador, e as normas que emanam do inc. XL do art. 5º da CRFB devem irradiar sobre todos os processos de responsabilização a fim de garantir a aplicação de normas materiais e processuais de legislações supervenientes cujas consequências sejam mais benéficas ao particular.

O princípio da retroatividade benigna encontra-se positivado também no art. 9º do Pacto de São José da Costa Rica que prescreve que “se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se”, sendo que tal Pacto foi internalizado no ordenamento jurídico pátrio com status supralegal[35].

A Corte Interamericana de Direito Humanos já reconheceu a aplicação da retroatividade benigna prevista no art. 9º do Pacto de São José da Costa Rica também ao direito administrativo sancionador, como foi possível verificar no caso Maldonado Ordoñes v. Guatemala ao afirmar que ambas sanções (penal e administrativa) possuem natureza análoga por causarem prejuízo às pessoas e que num sistema democrático deve ser considerada com atenção.[36]

A função protetiva das garantias fundamentais não permite uma interpretação restritiva de seus enunciados normativos, sendo inadequada uma leitura textual limitadora da sua eficácia normativa[37] e, nessa perspectiva, consubstancia-se o princípio da retroatividade da norma mais benigna (“novatio legis in mellius”) como garantia fundamental cujo conteúdo normativo não se limita a albergar apenas o ilícito penal, mas também o ilícito administrativo.[38],[39],[40]

Almeida igualmente defende que “o princípio da retroatividade da norma mais benéfica é aplicável no Direito Administrativo Sancionador com configuração fundamentalmente idêntica à do Direito Penal.”[41]

A novatio legis in mellius é um princípio do direito administrativo sancionador fazendo com que normas mais benéficas devem retroagir para favorecer o sancionado.[42]

Não diferente, Rocha, ao tratar dos princípios aplicáveis à “sanção administrativa”, após destacar que as “sanções administrativas sujeitam-se à incidência de distintos princípios”, registra que “[a] sanção administrativa mais benéfica pode retroagir para alcançar fatos pretéritos”.[43]

Na mesma toada e com pena forte, leciona o ex-Ministro do STJ Nunes Maia:

A leitura do artigo 5º, XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, deve levar à inevitável conclusão de que o termo penal abrange todas as regras sancionadoras, seja qual for a sua natureza, e que o benefício que proporciona também pode ser de qualquer espécie, seja material ou processual. Representa uma acintosa fraude à Constituição dizer que lei penal, no contexto desse item normativo da Constituição, significaria somente a lei penal incriminadora.[44]

Nobre Júnior, observa que sobre a retroação da norma mais benéfica em sede de direito administrativo sancionador “a Constituição em vigor não deixa dúvida a respeito” e que apenas não deve ocorrer quando a norma sancionadora for excepcional ou temporária, porque em tal caso, esta perderia “todo o seu atributo intimidativo caso o agente, de antemão, já tivesse conhecimento de que, cessada a situação anormal, ou o intervalo de sua vigência, ficaria impune em face da injunção de retroatividade da nova norma retora da competência punitiva”.[45]

Enterría e Fernández, noticiam que o Tribunal Constitucional espanhol, de longa data, posicionou-se no sentido que os princípios do direito penal são aplicáveis ao direito administrativo sancionador, visto que ambos são manifestações punitivas do Estado e que eventuais lacunas normativas acerca da aplicação de sanções administrativas encontram-se supridas por princípios constitucionais penais que são superiores a qualquer determinação legal em sentido contrário.[46]

O entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos é longevo e vai no mesmo sentido da prevalência do princípio da retroatividade da norma sancionadora mais benéfica aplicável também a processos ou procedimentos não criminais.[47]

A Corte Europeia de Direitos Humanos não destoa deste entendimento como se pode ver no famoso caso Öztürk vs. Alemanha, ao consagrar o direito administrativo sancionador como um subsistema penal, comungando de semelhantes princípios, como, v.g., o da retroatividade de normas mais benéficas e o do non bis in idem (Örtürk vs Germany, Application, caso 8544/1979, Strasbourg, 21 de fevereiro de 1984).[48]

Como o princípio da retroatividade da norma mais benigna tem berço no art. 5º da CRFB, trata-se de um princípio-garantia fundamental que pode ser reivindicado (administrativa ou judicialmente) por qualquer pessoa (física ou jurídica[49]) que responde a um processo de responsabilização ou até mesmo que já foi sancionada.

Em sede de segunda conclusão parcial, entendemos que o princípio da retroatividade benigna, por se consubstanciar em um princípiogarantia fundamental, também irradia sua eficácia normativa para o direito administrativo sancionador e para o microssistema normativo das contratações públicas.

3.2.1     O Texto Constitucional como um texto não jurídico

Apenas a título de argumento de reforço ao que já foi apresentado, tem-se que não é porque o inc. LX do art. 5º da CRFB traz em seu enunciado normativo que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, que se legitima a exegese de que o princípio da retroatividade benigna não seria aplicável ao direito administrativo sancionador, já que o texto constitucional traz as expressões “lei penal” e “réu”.

A literalidade do inc. XL do art. 5º não pode inviabilizar a extensão de sua norma para o direito administrativo sancionador em razão, inclusive, de que acordo com um dos brocardos jurídicos do Direito Romano as regras benévolas devem ser aplicadas de forma ampliativa (benevola amplianda, odiosa restringenda).[50]

Com a democratização do processo constituinte, a linguagem constitucional ganhou novel importância, afinal, as Constituições democráticas mais recentes foram geradas em meio a um amplo processo de discussão, participação e composição política, o que, por consectário lógico, dificulta a apresentação de uma linguagem jurídica uniforme e tecnicamente rigorosa[51], mostrando-se necessário considerar que as palavras (expressões) empregadas na Constituição brasileira de 1988 devem ser entendidas em seu sentido geral, comum e usual, e não num sentido técnico-jurídico.

A exegese do inc. XL do art. 5º da CRFB deve ser realizada de modo diverso do direito ordinário, vez que no direito constitucional a exceção é o emprego de termos técnicos. Caso haja dúvida num enunciado normativo constitucional sobre se uma palavra tem significado técnico ou comum o intérprete deve ficar com o comum, haja vista ser a Constituição um documento político mas com eficácia normativa e não um documento técnico-jurídico[52]

3.3       O princípio da continuidade normativo-típica e a revogação da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração

3.3.1     Princípio da continuidade normativo-típica

Pelo princípio da continuidade normativo-típica que possui berço no direito penal aplica-se uma lei, mesmo que revogada, quando a conduta criminosa nela disposta é mantida continuamente pelo ordenamento jurídico, mas em outro enunciado normativo, não ocorrendo a figura do abolitio criminis, já que a antijuridicidade da conduta não foi extinta.[53]

Em sede de Direito Administrativo Sancionador, o princípio da continuidade normativo-típica mantém o caráter proibido da conduta no ordenamento jurídico, mas com o deslocamento do conteúdo antijurídico para outro locus normativo, sendo que a vontade do legislador é de que a referida conduta permaneça como sendo antijurídica, não configurando, desse modo, a abolitio illicitus já que o que ocorreu, na essência, foi apenas o deslocamento formal do conteúdo antijurídico para outro tipo sancionador contido em uma lei posterior revogadora, tácita ou expressamente, da conduta típica anterior. Nessa hipótese, não se verifica um desinteresse pelo ius puniendi estatal nas situações em que os elementos de um ilícito administrativo migram para outro tipo administrativo criado por um novo diploma normativo, ou seja, o fato (conduta) permanece punível.

Uma alteração no tipo infracional pelo legislador, nesta circunstância, não tem por objetivo excluir a tipificação do ordenamento jurídico, mas adequá-la a uma nova necessidade, ampliando ou diminuindo o seu alcance, mas mantendo a sua natureza proibitória e sem desnaturá-la, permanecendo coibida a conduta anterior ainda que em novel dispositivo normativo, sendo que essa transmutação não se confunde com a abolição do ilícito, pois esta excluiria por completo a antijuridicidade do tipo anterior revogado.

O STF já encampou o princípio da continuidade normativo-típica ao consignar que a “revogação da lei penal não implica, necessariamente, descriminalização de condutas. Necessária se faz a observância ao princípio da continuidade normativo-típica, a impor a manutenção de condenações dos que infringiram tipos penais da lei revogada quando há, como in casu, correspondência na lei revogadora.”[54]

3.3.2     Revogação da espécie sancionatória de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração

Antes de verificar as normas mais benéficas trazidas pela Lei nº 14.133/2021, deve-se analisar se o princípio-garantia da retroatividade benigna tem o condão de retirar a possibilidade de a Administração sancionar o particular com a pena de “suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a Administração” em face de uma infração média-grave; por ter sido revogado o art. 87, inc. III da Lei nº 8.666/1993.

Pois bem, quando se analisa o § 4º do art. 156 da NLLCA observa-se que o legislador atual não pretendeu deixar uma infração média-grave sem qualquer tipo de consequência (sanção), ao contrário, trouxe uma sanção (“impedimento de licitar e contratar”) que tem um prazo máximo de 3 (três) anos, enquanto a “suspensão temporária” da Lei nº 8.666/1993 tinha um prazo máximo de 2 (dois) anos, além do que, o alcance da sanção “impedimento” é maior do que a da “suspensão”.

Como se nota, in casu, não se verifica um desinteresse pelos ius puniendi já que as mesmas infrações (tipos) gerais contidas na Lei nº 8.666/1993 para a sanção de “suspensão” estão agora especificadas na NLLCA só que com consequência mais gravosa numa novel espécie sancionadora (“impedimento”) – o que ocorreu foi uma migração de uma infração (tipo administrativo) para outra espécie sancionatória (pena).

Teria ocorrido a abolitio illicitus de uma eventual “inexecução total ou parcial do contrato” prevista no caput do art. 87 da Lei nº 8.666/1993, tendo em vista o que prescreve o art. 155 da NLLCA?[55] A resposta é não; trata-se da hipótese de aplicação do princípio da continuidade normativo-típica, aplicando-se a norma mais benéfica, no caso, a norma revogada.

Mutatis mutandi, pode-se utilizar como comparativo para capturar a racionalidade da argumentação as normas administrativas de vigência temporária em que o tempo (tempus delicti) é fator determinante do ilícito pois autoriza a punibilidade das infrações praticadas durante determinado lapso temporal, mesmo que a norma não tenha mais vigência, mas por permanecer a sua eficácia.

Soma-se a tudo isso o fato de o art. 190 da NLLCA, ao prescrever a ultratividade normativa, disciplinar que “[o] contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada”, ou seja, aplicam-se as normas sancionatórias, materiais e processuais, do antigo regime, desde que observado o princípio da retroatividade benigna daquilo que está prescrito pelo novo regime conforme será demonstrado a seguir.

4         Retroatividade benigna no direito administrativo sancionador

Como já dito, compreende-se a eficácia da garantia fundamental da retroatividade benigna também no âmbito do direito administrativo sancionador para concluir que a lei administrativa sancionadora mais benéfica retroage, afinal, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, não se questiona a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

Em decisões mais recentes o STJ vem consignando que “princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador”.[56],[57],[58]

Essa questão recentemente foi debatida pelo STF no bojo da discussão sobre a (ir)retroatividade das alterações na Lei de Improbidade Administrativa promovida pela Lei nº 14.230/2021 em sede de processo judicial (ação civil pública), restando cristalizada no Tema nº 1.199 que apresenta o seguinte texto:

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei. [59],[60]

Com o devido respeito, observamos algumas leituras equivocadas do Tema nº 1.199 a partir da solução intermediária decidida pelo STF, notadamente em razão de o Tribunal ter se posicionado sobre a irretroatividade da norma mais benéfica afastando o princípio da retroatividade benigna quando se estiver diante de coisa julgada judicial (item 2 do Tema); e, de outro giro, admitindo a retroatividade benigna (ou a “não ultra-atividade”[61] da norma revogada) quando se estiver diante de processos judiciais em desenvolvimento, mesmo com decisões judiciais, “porém sem condenação transitada em julgado”, ou de fatos ainda não apurados (item 3 do Tema).

Não se pode perder de vista que o que restou apreciado pelo STF no ARE nº 843.989/PR envolvia a Lei nº 14.230/2021 que a alterou a Lei de Improbidade Administrativa, sendo que o texto da lei reformadora prescreve que “[a]plicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador” (art. 1º, § 4º)[62] – não sendo adequada uma aplicação automática, linear e absoluta do que restou decidido no ARE nº 843.989/PR no microssistema normativo das contratação públicas, notadamente nesse momento de transição e de conjugação dos regimes sancionatórios trazidos pela Lei nº 8.666/1993, Lei nº 10.520/2002 e a Lei nº 14.133/2021.

Soma-se ainda o fato de que o STF, em outras oportunidades[63], ao apreciar a retroatividade de lei sancionadora mais benéfica ao acusado em sede de processo administrativo assentou que o princípio da presunção da inocência (art. 5º, inc. LVII[64] da CRFB), de aparente berço no Direito Penal, aplica-se igualmente aos processos administrativos sancionadores, apesar de o dispositivo aludir à “sentença penal condenatória”.

Diante dessa translúcida expansão garantística do STF, não há razão jurídica consistente para cravar-se que o entendimento da Suprema Corte, a partir do ARE nº 843.989/PR, conduziria automaticamente à irretroatividade das normas da Lei nº 14.133/2021 aos fatos relacionados a contratos celebrados sob a égide da Lei nº 8.666/1993.

Em ementa recente, após a edição do Tema nº 1.199 pelo STF, o Tribunal da Cidadania novamente firmou que “a norma sancionadora, inclusive de natureza administrativa, pode retroagir para beneficiar o infrator”[65], indo na mesma toada do item 2 do Tema nº 1.199.

Nessa mesma linha de entendimento o STJ também ementou que “[o] art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa”.[66]

Em sentido divergente do aqui exposto tem-se a Orientação Normativa da AGU nº 78/2023 que enuncia: “O regime jurídico das sanções previstas na Lei nº 14.133, de 2021 não é aplicável aos contratos firmados com base na legislação anterior, nem alterará as sanções já aplicadas ou a serem aplicadas com fundamento na legislação anterior, em respeito à proteção do ato jurídico perfeito.”[67]. Como se nota, a ON nº 78/2023 não está em harmonia com a doutrina majoritária nem com a jurisprudência do STF e do STJ no que concerne a aplicação da retroatividade benigna em sede de direito administrativo sancionador

Pela minha leitura do Parecer nº 00002/2023/CNLCA/CGU/AGU que fundamentou a ON nº 78/2023, a questão controversa que aparentemente inspirou a confecção do Parecer teria sido a (in)eficácia da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração (art. 87, inc. III da Lei nº 8.666/1993) considerando que esta espécie de sanção não mais subsiste no microssistema normativo das contratações públicas trazido pela Lei nº 14.133/2021.

O mencionado Parecer deveria ser interpretado no sentido de que as sanções de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração já aplicadas devem ter efetivamente executadas, seja em homenagem à segurança jurídica, a ultratividade normativa ou ao princípio da continuidade normativo-típica, mas devendo-se considerar, igualmente, o princípio da retroatividade benigna. Contudo, o texto normativo da Orientação Normativa permite amplo espectro de utilização em sede de direito administrativo sancionador relacionado às infrações contratuais.

5         Eficácia imediata das normas processuais

Além da garantia fundamental da retroatividade benigna, as normas processuais envolvendo o procedimento de responsabilização, por se tratar de norma de direito processual administrativo, deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso e aos que vierem a ser instaurados, de forma cogente, respeitando somente os atos processuais já praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (arts. 14 e 15 do CPC e art. 6º da LINDB), mesmo que os contratos tenham sido celebrados sob a égide da Lei nº 8.666/1993.[68]

Afirma-se o efeito imediato da “nova lei processual sobre todos os efeitos pendentes, com ressalva, única, do respeito à sentença irrecorrível”[69], além do que, existe a “tradição de que normas processuais têm aplicação imediata”[70] conforme se verifica no art. 14 e no art. 1.046, ambos do CPC/2015 que prescrevem que a nova norma processual “será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

Trata-se da adoção do sistema do isolamento dos atos processuais em que a lei nova ao encontrar um processo em desenvolvimento disciplina-o a partir da sua vigência, ou seja, a lei nova respeita os atos processuais realizados e se aplica aos que houverem de se realizar.[71]

Na lição de Theodoro Jr., “as leis processuais são de efeito imediato perante os feitos pendentes, mas não são retroativas, pois só os atos posteriores à sua entrada em vigor é que se regularão por seus preceitos” – tempus regit actum.[72]

Soma-se ainda o fato de que toda e qualquer reflexão processual não pode deixar de considerar que o processo administrativo é regido pelos princípios da verdade material e do formalismo moderado.

A título exemplificativo, nos autos do Mandado de Segurança nº 5022219-84.2021.4.04.700 0, a Justiça Federal de piso do Estado do Paraná, em decisão liminar[73], concedeu efeito suspensivo ao recurso administrativo entendendo que o art. 168 da NLLCA “configura norma de processo administrativo, de ordem pública e aplicação cogente, não podendo ser afastada para os prazos recursais que ainda não se iniciaram sob a vigência da lei anterior (Lei nº 8.666/1993)” e que “não depende de regulamentação, na medida em que se refere a simples atribuição de efeitos suspensivo a recurso administrativo, estando plenamente em vigor”.

6                O alcance da coisa julgada administrativa

Conforme já aqui delineado, aplica-se o princípio da retroatividade benigna em sede de direito administrativo sancionador, portanto, essa aplicação da norma mais benéfica alcançaria também os casos já julgados administrativamente, inclusive, os já alcançados pela preclusão administrativa[74], desde que a relação jurídica não tenha sido totalmente esgotada ou exaurida durante a vigência da norma anterior.

Para exercitar a garantia fundamental da retroatividade benigna, poderá o interessado valer-se de todo e qualquer meio processual disponível para tanto, incluindo-se aí o direito de petição[75], para que os efeitos jurídicos mais benéficos possam alcançar os processos de responsabilização pendentes de decisão administrativa ou já com sanções impostas, mesmo que não caiba mais recursos previstos legalmente.

Como se sabe, o direito de petição presta-se como uma “regra de reserva” (ou “soldado de reserva”) para que toda e qualquer situação em que não se tenha um prazo ou uma peça processual/recursal disponível possa ser revisitada por intermédio dessa importante garantia fundamental contida no art. 5º, XXXIV, al. “a” da CRFB que prescreve que “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.[76]

Sob o prisma constitucional, tem-se que no “conceito de petição há de se compreender a reclamação dirigida à autoridade competente para que reveja ou eventualmente corrija determinada medida”,[77] seja qual for o instrumento utilizado. A abrangência do direito de petição compreende “todos os pedidos e recursos administrativos relativos ao exercício do poder público”.[78]

Somente não será aplicável o princípio da retroatividade benigna no direito administrativo sancionador quando estiverem presentes situações excepcionais que correspondam àquelas encontradas no direito penal[79], como se verifica nos casos de eventuais sanções administrativas totalmente exauridas durante a vigência das normas anteriores, não sendo viável a restituição de sanções cumpridas como o pagamento de multas, parcial (em caso de parcelamento) ou totalmente quitada.

7         Novas normas trazidas pela Lei nº 14.133/2021 e aplicáveis às infrações relacionadas ao antigo regime

Sem a intenção de esgotar as possíveis normas mais benéficas que podem ser extraídas da NLLCA e de aprofundar nas nuances de cada uma dessas normas processuais ou materiais, elencar-se-ão aqui algumas dessas normas que deverão ser aplicadas a eventuais infrações ou processos de responsabilização mesmo que instaurados a partir de contratos administrativos celebrados sob a égide da Lei nº 8.666/1993.

Normas processuais[80]: prazo alargado para apresentação de defesa (arts. 157 e 158, caput); prazo alargado para a apresentação de recurso (art. 166); efeito suspensivo do recurso (art. 168); prescrição quinquenal (art. 158, § 4º); possibilidade de soluções consensuais (arts. 151 e 153); apresentação de alegações finais (art. 158, § 2º); apuração e julgamentos conjuntos com a Lei Anticorrupção (art. 159, caput); declaração de inidoneidade com prévia análise pela assessoria jurídica (art. 156, § 6º); garantias processuais para a desconsideração da personalidade jurídica (art. 160); fixação de parâmetros para a dosimetria da sanção (art. 156, § 1º); possibilidade de reabilitação de empresa sancionada (art. 163); e rito processual (arts. 157, 158, 166 a 168).

Normas materiais: limite do valor da multa em 30% (trinta por cento) do valor do contrato (art. 156, § 3º); limite do prazo para o impedimento de licitar e contratar (3 anos) (art. 156, § 4º); limite do prazo para a declaração de inidoneidade (6 anos) (art. 156, § 5º)

8                Considerações finais

A partir do exposto, apresentamos as seguintes considerações finais:

  1. a ultratividade normativa prevista no art. 190 da Lei nº 14.133/2021 deve ser observada em sede de processo de responsabilização, processual e materialmente, desde que observadas as considerações que se seguem;
  2. o direito (processual) penal e o direito administrativo sancionador se correlacionam já que ambos exteriorizarem o ius puniendi estatal;
  3. deve-se admitir a integração e a aplicabilidade dos princípios, dos direitos e das garantias fundamentais do direito (processual) penal ao direito administrativo sancionador,mas tal admissão não pode ser compreendida como uma aplicação automática, apriorística, irrestrita e acrítica de todas as normas extraíveis dos enunciados constitucionais já que não guardam perfeita e absoluta similitude, devendo o intérprete-operador do direito realizar a indispensável calibração interpretativa;
  4. há interlocução entre os regimes jurídicos sancionadores, novo e antigo, e as respostas não estão prontas e acabadas, devendo-se analisar, em cada caso concreto, o que é mais benéfico ao particular e sob a sua perspectiva, sendo que em algumas situações haverá dúvidas sobre qual norma é mais favorável, mas o fato que uma vez identificada a mais favorável é esta que deverá ser aplicada;
  5. o princípio da retroatividade benigna, por se consubstanciar em um princípiogarantia fundamental, também irradia sua eficácia normativa para o direito administrativo sancionador e para o microssistema normativo das contratações públicas;
  6. as normas processuais e materiais mais benéficas trazidas pela Lei nº 14.133/2021 devem ser aplicadas aos processos sancionadores mesmo que instaurados em decorrência de infrações previstas em contratos celebrados com fundamento no antigo regime sancionador;
  7. as normas processuais mais benéficas trazidas pela Lei nº 14.133/2021 são garantias mínimas, sendo possível que a regulamentação orgânica elasteça-as;
  8. em razão do princípio da continuidade normativo-típica e da ultratividade normativa prevista no art. 190 da NLLCA pode ser aplicada ou exigido o cumprimento da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração prevista no art. 87, inc. III da Lei nº 8.666/1993, já que não resta configurada abolitio illicitus, tendo a Administração o dever de prosseguir ou de inaugurar eventual processo de responsabilização decorrente de infração que mereça, em tese, a sanção de suspensão;
  9. a Orientação Normativa nº 78/2023 da AGU, no que concerne a aplicação do princípio da retroatividade benigna em sede de direito administrativo sancionador, não está em harmonia com a doutrina majoritária nem com a jurisprudência do STF e do STJ;
  10. a Orientação Normativa nº 78/2023 da AGU tem sua aplicabilidade restrita ao âmbito do Executivo Federal;
  11. o Parecer nº 00002/2023/CNLCA/CGU/AGU que fundamentou a ON nº 78/2023 deveria ser interpretado no sentido de que as sanções de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração já aplicadas devem ter efetivamente executadas, seja em homenagem à segurança jurídica, à ultratividade normativa ou ao princípio da continuidade normativo-típica, mas devendo-se considerar, igualmente, o princípio da retroatividade benigna.

Participe do 19º Fórum Brasileiro de Contratação e Gestão Pública – FBCGP

O mais tradicional evento de contratação e gestão pública do país chega a sua 19ª edição. Nos dias 21, 22 e 23 de agosto de 2024 os principais especialistas do tema se reunirão para debater as “Novas possibilidades e impactos na contratação pública: do planejamento ao controle”.

O tema desta edição abrange as novidades do setor e antecipa tendências sob a orientação e análise de renomados estudiosos, que possuem experiência nacional e internacional.

>> Conheça a programação completa

Participe, acesse o link e faça a sua inscrição no evento.

>> Faça sua inscrição

5 1 voto
Article Rating
Inscreva-se nos comentários
Notificar-me
1 Comentário
Mais novo
Mais antigo Mais votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários

Prof. Anderson, o tema é recente e não há muita coisa escrita. Parabéns!!

1
0
Gostaríamos de saber o que pensa, por favor comente.x