Nos arts. 82 a 86, a Lei nº 14.133, de 2021, trata do Sistema de Registro de Preços. O já centenário procedimento criado no antigo Código de Contabilidade da União, o Decreto nº 4.536, de 28 de janeiro de 1922, ganhou novos contornos, inclusive com a expressa permissão para sua utilização em obras e serviços de engenharia, desde que atendidos os requisitos estabelecidos legalmente.
Parece não haver mais dúvida em relação à vantajosidade que o SRP pode trazer para a administração pública, sendo um sistema criado de forma inteligente, para possibilitar o ganho de tempo na fase do processo de contratação em que isso é mais crítico, a fase preparatória. Antecipando-se o processo para um momento em que ainda não existe a efetiva necessidade, pode-se trabalhar mais adequadamente os artefatos dessa fase, o estudo técnico preliminar, o termo de referência e o projeto básico, este no caso de obras, com discussões internas que devem levar aos melhores resultados, se a pressão pela imediata conclusão do processo, como ocorre rotineiramente.
A administração federal já publicou o Decreto nº 11.462, de 31 de março de 2023, regulamentando, em sua esfera, o SRP. Se considerarmos o prazo de 2 anos, decorrido entre a sanção da nova Lei de Licitações e o Decreto, parece-nos que o regulamento poderia ter sido elaborado de uma forma mais cuidadosa, que efetivamente possibilitasse a aplicação do sistema sem maiores debates, esclarecendo todos os pontos em relação aos quais a Lei não tivesse fixado uma posição definitiva, o que, afinal, é o papel que cabe a um regulamento. No entanto, o que vemos é um regulamento que, em muitos pontos, limita-se a copiar as disposições legais, apresentando-se omisso em relação ao esclarecimento de situações duvidosas, não chegando, assim, a cumprir o seu efetivo papel.
Interessa-nos aqui discutir especificamente as disposições legais a respeito do prazo de vigência da Ata de Registro de Preços, assunto no qual a nova Lei inovou em relação às disposições legais anteriores, inovação essa que acaba por fomentar o debate na medida em que não há uma expressa definição legal e tampouco no regulamento federal.
Começamos lembrando as disposições da Lei nº 8.666, de 1993:
Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:
(…)
II – ser processadas através de sistema de registro de preços;
(…)
§ 3o O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:
I – seleção feita mediante concorrência;
II – estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;
III – validade do registro não superior a um ano.
Ainda que alguns doutrinadores tivessem procurado debater o assunto, sempre entendemos que a Lei anterior deixava claro que a vigência da Ata não poderia superar 12 meses. Disposição contrária chegou a constar de regulamento federal[1], sendo, posteriormente, derrubada definitivamente, pelo Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, em seu art. 12.
A Lei nº 14.133/2021 inovou no tema, ao dispor assim:
Art. 84. O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso.
Parágrafo único. O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas.
Parece-nos muito clara a disposição legal: o prazo de vigência inicialmente estabelecido deve ser, necessariamente, de 1 ano. Observa-se que, ao contrário da legislação anterior, a nova Lei não estabeleceu apenas um prazo máximo. Estabeleceu um prazo fixo, a ser cumprido necessariamente. O prazo é de 1 ano, e não de até 1 ano.
Outra novidade é a, agora, expressa possibilidade legal de prorrogação desse prazo. Em se comprovando manter-se o preço registrado como vantajoso, a vigência da Ata poderá ser prorrogada “por igual período”. Mais uma vez, registre-se: a prorrogação não pode ser feita pelo prazo de ATÉ 1 ano. Se o período inicial é de 12 meses e a Lei permite a prorrogação POR IGUAL PERÍODO, a extensão se fará, também, por 12 meses.
Até aqui, entendemos que a Lei foi clara, dispensando, até, qualquer necessidade de regulamentação, embora o Decreto federal já citado traga a mesma disposição, como se houvesse necessidade de referendar a Lei.
A discussão que se estabeleceu na doutrina foi sobre a possibilidade ou não de, em havendo a prorrogação da vigência da Ata, haver renovação do quantitativo inicialmente registrado. Seria um registro do mesmo quantitativo inicial, restabelecido para um novo período, ou seria simplesmente uma prorrogação para, na hipótese de a administração não haver utilizado integralmente o quantitativo registrado, poder esgotá-lo mesmo após os 12 meses iniciais? Desde já, nos posicionamos no sentido da possibilidade de restabelecimento do quantitativo inicial, respeitando a doutrina que entenda em sentido contrário. Procuramos, a seguir, fundamentar nossa posição.
Em primeiro lugar, parece-nos evidente que a prorrogação da validade da Ata por mais 1 ano só poderá acontecer se estiver expressamente prevista inicialmente. Assim entendemos das disposições do art. 82, em seu § 5º:
Art. 82. O edital de licitação para registro de preços observará as regras gerais desta Lei e deverá dispor sobre:
(…)
§ 5º O sistema de registro de preços poderá ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive de obras e serviços de engenharia, observadas as seguintes condições:
(…)
V – definição do período de validade do registro de preços;
Ora, se a Lei estabelece o prazo inicial de 1 ano e a POSSIBILIDADE de sua prorrogação por igual período, e, ao mesmo tempo, exige expressa disposição editalícia sobre a definição do período de validade do registro, está se referindo exatamente à possibilidade de extensão da vigência, que é discricionária, mas, só valerá se estabelecida no edital.
De outra banda, parece-nos, igualmente, indiscutível que, no Decreto federal nº 11.462, de 2023, está peremptoriamente vedada acrescer o quantitativo inicialmente registrado, como vemos a seguir:
Art. 23. Fica vedado efetuar acréscimos nos quantitativos estabelecidos na ata de registro de preços.
Muitos se apegam a essa disposição do regulamento para afirmar sobre a impossibilidade de manter-se o quantitativo inicial no caso de prorrogação da vigência. Entendemos como uma interpretação equivocada.
Que sentido haveria em o legislador permitir a prorrogação da vigência da Ata POR IGUAL PERÍODO, isto é, por 1 ano, se objetivasse exclusivamente permitir que a administração utilizasse o saldo porventura existente no quantitativo inicialmente registrado. Ora, se esse quantitativo fosse de X unidades para consumo em 1 ano, ao final desse período eventual a sobra seria de uma quantidade inferior a X. E, consequentemente, jamais a administração precisaria de mais 1 ano para consumir a sobra. Nesse caso, claramente, a permissão legal para prorrogação deveria ser por ATÉ 1 ano, e nunca por igual período. Só há sentido na possibilidade de prorrogação por IGUAL PERÍODO se for possível renovar o quantitativo inicial.
Mas, alega-se, o Decreto é claro ao vedar acréscimos nos quantitativos da Ata. Precisamos entender que RENOVAR O QUANTITATIVO é diferente de ACRESCER O QUANTITATIVO. Efetivamente, este último é vedado, sendo permitido acréscimo apenas nos quantitativos dos contratos decorrentes da Ata. Mas, ao prorrogarmos por IGUAL PERÍODO, a lógica é que se RENOVE (e não se ACRESÇA) o quantitativo registrado, para um novo IGUAL período. A administração necessita de X unidades para 1 ano; se prorrogar a vigência por mais 1 ano, necessitará do mesmo quantitativo X.
Alega-se que o Decreto não deixou isso claro, como deveria ter feito, quer no sentido da possibilidade de renovação do quantitativo, quer na sua impossibilidade. Verdade. Não houve esse cuidado na redação do regulamento, o que acaba por fomentar o debate. Mais uma vez, vemos no ordenamento jurídico brasileiro um regulamento que se limita a repetir o que já consta da norma legal a ser regulamentada. Mas, há outras considerações a serem feitas.
Voltemos às disposições da Lei nº 14.133/2021. Ao tratar da fase preparatória, assim dispõe a Lei:
Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:
(…) (destaque nosso)
Ao tratar do planejamento, a Lei faz a ligação direta com o Plano de Contratações ANUAL. O processo licitatório DEVE compatibilizar-se com a PCA, é o comando legal. Não é mera discricionariedade, novamente. É um dever-poder da administração pública planejar suas contratações, levando em consideração o horizonte de 1 ano. Tal fato não pode ser esquecido quando tratamos do SRP. O prazo de vigência da Ata é de 1 ano, perfeitamente compatível com o Plano de Contratações ANUAL. A administração, para cumprir adequadamente a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, deve planejar suas contratações obedecendo o horizonte de 1 ano.
Para cumprir tal disposição, a administração deve estabelecer o quantitativo a ser registrado para o mesmo período de 1 ano. E, isso está muito claro quando a Lei estabelece a vigência inicial da Ata exatamente para esse período, e não, lembramos, até esse período. Ora, renovar a vigência por igual período sem renovar (e não acrescer) o quantitativo, seria desvincular-se do PCA, contrariando a Lei. Que sentido teria prorrogar a vigência da Ata simplesmente para complementar um quantitativo eventualmente não utilizado referente a um plano anual já extinto?
Desse modo, entendemos que a interpretação mais adequada é a seguinte: a administração registra o quantitativo correspondente àquele estabelecido no PCA, para ser consumido em 1 ano. Se, ao final desse período houver alguma sobra, essa é desprezada, podendo a administração prorrogar a vigência por mais 1 ano, com o mesmo quantitativo inicial, sem acréscimos, portanto. Respeitando posicionamentos em sentido contrário, esse é o nosso entendimento. De outro lado, já vimos entes federativos, ao regulamentarem o SRP, estabelecerem a possibilidade dele ser feito por prazo diverso do estabelecido legalmente. Já vimos, até, regulamento municipal estabelecendo o SRP permanente. Não há dúvida de que a permanência do registro por um prazo indefinido é uma boa ideia, a ser bem trabalhada. Aliás, quando criado, em 1922, o SRP não tinha um prazo máximo definido. Mas, não me parece haver qualquer dúvida de que, hoje, com a Lei nº 14.133/2021, não há liberdade para estabelecer outro prazo que não seja 1 ano, com possibilidade de prorrogação por igual período, e ponto final. Considerar que prazo de vigência não é norma geral, parece-nos indefensável. A Lei foi clara e não deixou margem a situações diferentes. Qualquer regulamento que disponha de forma diferente, está criando inovação no ordenamento jurídico, papel que não cabe a normas regulamentadoras estaduais e municipais, tendo em vista a competência privativa da União para legislar sobre norma geral, como determina a Constituição Federal.
[1] O ora revogado Decreto federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, em seu art. 4º, § 2º, admitia a prorrogação da vigência da Ata por mais 12 meses. O tema chegou a ser apreciado pelo Tribunal de Contas da União, que entendeu, no Acórdão nº 991/2019-Plenário, ser ilegal essa prorrogação.
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