Afinal, temos ou não Compliance nas contratações públicas brasileiras?
Dia 1º de agosto de 2023, comemoramos os dez anos da Lei Anticorrupção. Após tanto tempo o que temos de fato combatido? Em que pese as discussões, as inovações nas legislações e a postura do mundo sobre o tema, ainda temos muito a fazer. O Compliance presente na literatura traz a origem no verbo, “to comply” com significado de cumprimento: “cumprir, executar, realizar algo imposto”, entretanto, essa diretriz vai muito além do cumprimento de normas e sua conformidade, aliás, o Compliance traz o princípio primordial da integridade. A doutrina tem trazido os registros da sua origem, com a criação de algumas instituições em vários países, e em especial com a publicação da Foreign Corrupt Practicies Act, lei americana, que traz sanções específicas para pessoas que realizam negócios envolvidos em atos de corrupção, como o pagamento de propinas, subornos ou qualquer outro meio de obtenção de vantagem ilícita junto aos funcionários estrangeiros. Deste modo, a Lei se aplica a todos os americanos, assim como as empresas e pessoas estrangeiras nos EUA.
Pois, bem, no Brasil, temos a Lei nº 12.846/2013 que inaugura o sistema de combate a corrupção, juntamente com outras legislações esparsas e programas de integridade que se somam nesse sentido. No entanto, a sua prática no setor público, em especial nos contratos públicos tem sido incipiente, e por que não dizer de rara eficácia, considerando que muito se ouve falar no combate à corrupção, mediante as operações investigatórias quando já detectadas, ou em andamento, mas, em termos de prevenção, ainda temos muito o que avançar.
Esta ideia se fortalece quando se verifica o nível atual de gestão de riscos que está sendo praticado nos contratos públicos. Isto porque a legislação anterior, a Lei nº 8.666/93 não trazia em seu escopo nenhum instrumento de mapeamento de riscos que estabelecesse critérios de avaliação desses, sendo uma inovação importante as regras trazidas pela IN/MPDG/nº 05/2017 à época.
No que diz respeito a Lei nº 12.846/2013, inédita e inovadora, esta trouxe consigo a implantação de programas de integridade e a possibilidade de sua utilização pelos entes federativos, o que foi feito em diversos Estados e Municípios, instituindo tais programas para as pessoas jurídicas que se relacionam com os governos, nos processos licitatórios. Assim, várias legislações de vários entes federativos, exigem dos licitantes que apresentem seus programas de integridade ao participar das licitações públicas.
Essa possibilidade de implantação de programas de integridade foi inserida na Lei nº 14.133/2021, porém, ficou muito restrita, conforme disposto no § 4º do artigo 25, pois não é obrigatória para todas as contratações, visto que se exige tal obrigatoriedade de para obras, serviços e fornecimentos de grande vulto.
Art. 25
(…)
§ 4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
Também, foi inserido na Lei nº 14.133/2021, a possibilidade da aplicabilidade dos programas de integridade para fins de desempate nas licitações, inclusive como última hipótese (…) “ Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem”, conforme inciso IV: (…) o “desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle”, e ainda poderá ser atenuante de sanções, conforme art. 156, § 1º (…) “Na aplicação das sanções serão considerados: (…) V – a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle”.
Não sendo necessária sua previsibilidade de implantação pós-contratação, nas licitações, como foi exigido nas legislações estaduais e municipais, a exemplo das Leis abaixo citadas, entre outras:
Rio de Janeiro | Lei 7.753/17 | Exige a implantação de Programa de Integridade às empresas que celebrarem contrato ou convênio com a administração pública |
Rio de Janeiro | Decreto 46.366/18 | Lei Anticorrupção |
Rio Grande do Norte | Decreto 25.177/15 | Lei Anticorrupção |
Rio Grande do Sul | Lei 15.228/18 | Lei Anticorrupção e Programa de Integridade em contratos com Administração Pública |
Santa Catarina | Decreto 1.106/17 | Lei Anticorrupção |
São Paulo | Decreto 60.106/14 | Lei Anticorrupção |
A Lei nº 12.846/2012, traz sanções administrativas e civil (art. 6º), com a isenção de sua aplicação mediante acordo de leniência (§2ºdo art.16), sem afastamento da possibilidade de responsabilização na esfera judicial (art.18). No entanto, as regras dispostas se efetivam mediante a instauração de um PAR- Processo Administrativo de Responsabilização. (art. 8º).
No que concerne à prevenção de atos de corrupção, a Lei, como sabemos, trouxe os programas de Compliance, ou programas de integridade, como previsto no art.7º, VIII, o qual estabelece que “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica” podem ser considerados para aplicação das sanções.
Assim, tais programas e processo administrativo de responsabilização, foi regulamentado pelo Decreto 11.129/2022 que instituiu os requisitos do programa de integridade (art.56), o qual, o define como sendo, o:
(…)
conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de: I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.
Neste compasso, o decreto traz que tais programas devem ser “estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica”, o que implica em dizer, que a característica da pessoa jurídica, seu negócio e relacionamentos são definidores da complexidade do seu programa.
O artigo 57 define tais parâmetros, os quais envolvem de forma essencial a participação da alta direção, como condicionante da sua eficácia, pois, sem esse compromisso, não se obterá os resultados pretendidos, assim, os incisos desse artigo pormenorizam tudo o que deve conter nos tais programas. dentre esses, destaca-se o inciso VIII, o qual estabelece:
(…)
procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões;
Aqui se chama atenção para a instituição de tais procedimentos preventivos para evitar fraudes e ilícitos nos processos de licitação e contratação, o que denota a necessidade de gestão de ricos e mapeamento do processo, como elemento primordial de governança. Assim também, deve ser instituídas “diligências apropriadas, baseadas em risco”, nos termos do inciso XIII, envolvendo o gerenciamento das contratações com a participação de terceiros (fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários, despachantes, consultores, representantes comerciais e associados), e eventualmente, o envolvimento nos processos de outras pessoas com as quais se relacionem, como familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas, etc.
Observa-se que as questões trazidas no decreto a serem observadas nos programas de Compliance, trazem de forma especial vertentes referentes às contratações públicas, como disposto acima, observando ainda que tais interações entre público e privado, se dão em diferentes graus, sejam relativos ao formato da contratação, seja em razão do volume recursos.
Portanto, percebe-se que a Lei nº 14.133/2021 não avançou o quanto poderia ter avançado, e muito menos instituiu um modelo de gestão de riscos que se direcionasse aos procedimentos prévios sensíveis à corrupção. Deixando, de lado questões importantes que envolvem os programas de Compliance, para todos os tipos de contratações que não sejam de grande vulto, considerando estas como aquelas contratações que se enquadrem em valores superiores a 200 milhões de reais (art. 6º, caput, inciso XXII da Lei nº 14.133/2021), o que não representa grande parte dos valores contratuais praticados na Administração Pública brasileira.
Afinal, temos ou não programas de Compliance nas contratações públicas brasileiras? Temos regras, temos conformidade em vários processos, em cumprimento às legislações que formam o arcabouço jurídico das contratações, mas, ainda de forma muito incipiente estão sendo formatados. Sabe-se que muitos desses programas de integridade são apenas “para inglês ver”, por vezes sem que haja de fato profundidade, sem processo, sem regulamentação, sem transparência, sem canais de denúncia, ou por vezes não implantado corretamente, constando apenas aparente mecanismo de conformidade, sem mesmo o primordial comprometimento da alta administração, além da ausência de mecanismos de Due Diligence, Códigos de conduta, avaliação de riscos, e estrutura de Compliance, entre outros, sendo mero formalismo na instituição.
Referências
LEI Anticorrupção. Lei nº 12.846/2013. [Em linha]. [Consult. 02 agostos 2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm
FCPA – Foreign Corrupt Practices Act (EUA – 1977) e United Kingdom Bribery Act (Reino Unido – 2010). [Consult. 02 agostos 2022]. [Consult. 02 agostos 2022]. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf
LEI 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. [Em linha]. [Consult. 02 agostos 2022]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm