A Nova Lei de Licitações e Contratos, Lei nº 14.133/21, reconheceu a importância dos denominados programas de integridade, como instrumento a favor de ambiente hígido, ético, íntegro e confiável.
Apesar de não serem considerados necessários como condição de habilitação, a nova lei os exige do vencedor da licitação relativa a obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, assim entendidos os casos que superam R$ 228.833.309,04 (duzentos e vinte e oito milhões oitocentos e trinta e três mil trezentos e nove reais e quatro centavos).[1] [2]
Nestes casos, se na fase preparatória da licitação o valor estimado se encaixar no que se considera grande vulto, o vencedor terá que implementar em até seis meses, contados da celebração do contrato, o referido programa.
Os programas de integridade são ainda considerados indispensáveis para fins de reabilitação de empresas punidas.[3] Trata-se, assim, de pressuposto objetivo para que as pessoas jurídicas sancionadas possam ser reabilitadas, no intuito de privilegiar e de exigir a adoção de boas práticas daqueles que pretendem contratar com a Administração Pública.
Para além de determinar, nos casos acima apontados, quando os programas de integridade são imperativos, a Lei nº 14.133/21 os valoriza para fins de desempate entre propostas comerciais, conforme previsão do Art. 60, inc. IV.[4]
Além disso, a Lei nº 14.133/21, no Art. 156, §1º, inc. V[5], prevê que o programa de integridade deve ser considerado quando da aplicação das sanções administrativas. Logo, a adoção do compliance representa, também, a possibilidade de penalidades mais brandas em caso de punição. Incentiva-se, assim, a cultura da integridade na iniciativa privada.
1) O QUE SÃO PROGRAMAS DE INTEGRIDADE?
A integridade passou a ser um dos pilares da boa gestão ao longo dos anos, tanto para estruturas públicas quanto privadas.
Quanto mais íntegra for a empresa e a cultura de retidão corporativa, maior a chance de evitar focos de fraude, corrupção, desvio de finalidade, cooptação e captura. Para além disso, empresas íntegras passam a ter um espaço privilegiado no mercado e nos negócios, já que somente a essas alguns nichos são reservados.
Por isso, seja por razões profiláticas ou propedêuticas, a integridade passa a ser um requisito das empresas conformes, contemporâneas e competitivas. E é exatamente no sentido dessa conformidade que está a expressão compliance, advinda do verbo, em inglês, to comply.
No Brasil, existe a Lei nº 12.846/13, conhecida como Lei Anticorrupção, que prevê a responsabilidade objetiva (independente de dolo ou culpa) das pessoas jurídicas.
O art. 5º da supradita lei arrola os atos de corrupção que ultrapassam em muito a hipótese do oferecimento ou oferecer vantagem indevida a agentes públicos.
Havendo condenação pela prática de corrupção, em princípio haverá
- condenação no pagamento da multa, que pode atingir o valor de 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo punitivo ou, se não possível esse critério, até R$ 60 milhões, conforme Art. 6º, inc. I e §4º dessa lei);
- publicação da decisão da decisão condenatória em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração ou de circulação nacional, além da divulgação no próprio estabelecimento e no sítio eletrônico da entidade, de modo visível ao público, conforme Art. 6º, inc. II e §6º dessa lei).
Neste sentido, é importante que as entidades em geral (não só as empresas) diligenciem no sentido de implantarem as melhores técnicas anticorrupção e de prestígio à integridade, inclusive na seleção e vigília de seus subcontratados e fornecedores.
Esses instrumentos são, então, conhecidos como programas de integridade.[6]
Vale destacar, de toda sorte, que os programas adotados pelos diversos entes não devem destoar do que já estabelecido pelo art. 56 do Decreto nº 11.129/22, que assim prevê:
Art. 56. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de:
I – prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e
II – fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.
Parágrafo único. O programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual, por sua vez, deve garantir o constante aprimoramento e a adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.
O referido decreto ainda apresenta os parâmetros que poderão ser medidos para avaliação da suficiência e pertinência dos programas existentes, para os fins descritos na Lei Anticorrupção, e que não serão desconsiderados (espera-se) na regulamentação que se fará em decorrência da NLLC.
São eles:
I – comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa;
II – padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente de cargo ou função exercidos;
III – padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;
IV – treinamentos periódicos sobre o programa de integridade;
V – análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao programa de integridade;
VI – registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica;
VII – controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiros da pessoa jurídica;
VIII – procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões;
IX – independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e fiscalização de seu cumprimento;
X – canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, e de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé;
XI – medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade;
XII – procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;
XIII – diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;
XIV – verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas;
XV – monitoramento contínuo do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção, detecção e combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013; e
XVI – transparência da pessoa jurídica quanto a doações para candidatos e partidos políticos.
Em que pese o decreto seja meramente federal (e não nacional, ou seja, aplicável automaticamente a Estados, Distrito Federal e Municípios), há uma clara corrente de nacionalização dos instrumentos.
Os programas de integridade são, em resumo, instrumentos hábeis a promover: a) mitigação de risco de imagem; b) mitigação de fraudes e focos corruptivos e antiéticos; c) mitigação de prejuízos com a correção dos atos e perda de contratos; d) menor investimento na prevenção ao longo do tempo; e) maior competitividade; f) ganhos de eficiência e imagem no mercado.
Tudo isso importa, claro, para fins de destaque no mercado.
2) BREVES APONTAMENTOS: COMO FICAM AS REGRAS ESTADUAIS E MUNICIPAIS EDITADAS ANTES DA LEI Nº 14.133/21?
Por fim, sob um aspecto mais prático e pragmático, a pergunta que se destaca é a seguinte: as normas estaduais e municipais que tenham previsto a obrigação do programa de integridade para as contratações públicas prevalecem diante do que a Lei nº 14.133/21?
Primeiro ponto que deve ser destacado é que a exigibilidade de programa de integridade para as contratações de grande vulto tem a natureza de norma geral de licitações e contratos administrativos, cuja competência para a edição incumbe exclusivamente à União, nos termos do art. 22, inc. XXVII, da Constituição Federal.
Assim sendo, um primeiro pressuposto que deve ser firmado é que as normas estaduais e municipais anteriores à Nova Lei de Licitações e Contratos não podem subsistir se preverem expressamente a inexigibilidade do programa de integridade para as contratações de grande vulto.
Isso afrontaria a norma geral superveniente: não podem Estados-Membros e Municípios, assim, não exigirem programa de integridade para as contrações de grande vulto.
E, também, nos termos do Art. 163, parágrafo único, da Lei nº 14.133/21[7], não podem tais entes federativos deixar de exigir a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade como condição de reabilitação para os casos das duas seguintes infrações: (i) apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato (Art. 155, VIII, da NLLC); e (ii) praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846/13, a Lei Anticorrupção (Art. 155, XII, NLLC).
Trata-se de outra previsão de caráter geral que não pode ser ignorada pelos entes subnacionais.
Por conseguinte, temos: (a) subsistem
as normas estaduais e municipais específicas quanto ao tema que sejam
anteriores à Lei nº 14.133/21, desde que não tenham previsto que é inexigível o
programa de integridade para as contratações de grande vulto, e desde que não
afastem a exigência desses programas nas hipóteses de reabilitação acima
mencionadas; e (b) cada ente federativo tem autonomia para instituir, de acordo
com as suas realidades locais, outras hipóteses de obrigatoriedade de programas
de integridade, mas não deixar de exigi-los nas supracitadas ocasiões.
[1] Art. 25 (…) §4º. Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
Art. 6º. Para os fins desta Lei, consideram-se (…) XXII – obras, serviços e fornecimentos de grande vulto: aqueles cujo valor estimado supera R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).
[2] Por determinação do Art. 182 da NLLC, esse valor será atualizado anualmente, visando à manutenção de seu valor real. Hoje os valores são regidos pelo Decreto Federal 11.317/22.
[3] Art. 163. É admitida a reabilitação do licitante ou contratado perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, exigidos, cumulativamente (…)
Parágrafo único. A sanção pelas infrações previstas nos incisos VIII e XII do caput do art. 155 desta Lei exigirá, como condição de reabilitação do licitante ou contratado, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade pelo responsável.
Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações (…) VIII – apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato;(…) XII – praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
[4] Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem (…)
IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle.
[5] Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções (…)
§1º. Na aplicação das sanções serão considerados (…)
V – a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle.
[6] Na implantação desses programas de integridade também se encontram importantes normativos federais, se não obrigatórios, inspiradores à implantação privada. São as Portarias nº 909 e 910 da CGU (Controladoria-Geral da União), atinentes a como se avaliam os programas de integridade (especialmente os relatórios de perfil e de conformidade do programa) e como se realizam os procedimentos de apuração ou de solução (PAR – processo administrativo de responsabilização e, dentro nesse, os acordos de leniência).
Destaca-se, de mais a mais, a recente Portaria Normativa nº 54/2023, também da Controladoria-Geral da União. Segundo o ato normativo, a CGU passa a contar com uma Secretaria de Integridade Privada, a corroborar a importância do tema ora tratado.
[7] Art. 163. É admitida a reabilitação do licitante ou contratado perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, exigidos, cumulativamente (…)
Parágrafo único. A sanção pelas infrações previstas nos incisos VIII e XII do caput do art. 155 desta Lei exigirá, como condição de reabilitação do licitante ou contratado, a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade pelo responsável.