*Artigo de opinião
Emergência em Saúde Pública reconhecida pelo Ministério da Saúde no dia 20 de janeiro de 2023, em decorrência de desassistência à população Yanomami: qual a importância da efetiva transversalidade em políticas públicas e o papel inafastável de uma governança pública ética, responsável, amplamente sustentável e vivificadora dos direitos e garantias humanos?
O presente artigo objetiva analisar e trazer algumas reflexões acerca do necessário fortalecimento no Brasil de uma governança pública sustentável, que articule efetivamente políticas públicas, princípios e valores constitucionais e a legislação nacional em uma perspectiva transversal e sistêmica, destacando as contratações públicas como ferramentas fundamentais neste processo.
Afinal, não é de hoje a necessidade de a gestão pública, com seus sistemas, normas infralegais organizadoras, fluxos procedimentais e de trabalho, não ter mais destaque do que a concepção de governança e sustentabilidade – princípios que devem ser conjugados nas contratações públicas sustentáveis.
O primeiro ponto a se destacar é que licitar não é um fim em si mesmo. É por intermédio das contratações públicas, convênios, acordos de cooperação, etc que o Estado implementa políticas públicas. Assim restringir as contratações públicas, em capacitações, publicações e na prática cotidiana nos órgãos públicos, a um mero ferramental operacional é limitar a capacidade de o Estado impactar positivamente, pelo uso de seu poder de compra, na realidade nacional e na efetivação do desenvolvimento nacional sustentável.
É mais do que passado o momento de mudanças culturais e organizacionais para que a contratação pública possa ser contributiva para um país ecologicamente correto, economicamente viável, socialmente justo e culturalmente diverso. Por outro lado, não são poucas as barreiras para a maior efetividade das contratações sustentáveis no Brasil e referem-se à cultura organizacional, motivação, incerteza econômica, falta de coordenação intergovernamental, mercado incipiente, alto custo dos produtos sustentáveis, necessidade de capacitação. Soma-se a isso os vieses comportamentais dos tomadores de decisão que muitas vezes impedem a inclusão de critérios de sustentabilidade nas contratações públicas[1].
Leis não faltam para o avanço prático das contratações sustentáveis. Tanto a lei 8.666/93 (desde 2010), como a lei 14.133/21 apresentam mandamentos acerca da promoção do desenvolvimento sustentável via contratações públicas. São também vastos os entendimentos do Tribunal de Contas da União sobre a obrigatoriedade das licitações sustentáveis, assim como orientações da Advocacia-Geral da União e até manifestação da Supremo Tribunal Federal (ADI 2946-DF[2]).
O cenário, contudo, não é de desalento, pelo contrário, o caminho é a institucionalização de diretrizes consistentes de um modelo de governança pública que esteja intrinsicamente conectado com a sustentabilidade, seja nacionalmente obrigatório para órgãos públicos e objeto de monitoramento. Não se resolvem questões estruturais, nacionais e complexas sem o estabelecimento de políticas públicas que sejam transversais e lastreadas em sólida governança.
O grande desafio é fazer com que os problemas socioambientais e seus equacionamentos conduzam a ações que contribuam para o desenvolvimento econômico com o comprometimento socioambiental. Para tanto, é importante ter a compreensão de que a sustentabilidade não é apenas econômica ou ambiental, ela também é social e política. Isso demonstra que as políticas públicas e as contratações sustentáveis devem ser implementadas com a perspectiva da transversalidade, em um processo dialético entre os diversos setores.
Sob essa ótica, pôde-se verificar claramente que a transversalidade em políticas públicas nas ações articuladas do Ministério da Gestão e Inovação, com o Ministério do Desenvolvimento Social, com o Ministério da Saúde, com a AGU e o Ministério da Defesa (Força Aérea Brasileira), que em pouco tempo agiram e de forma fundamentada viabilizaram os propósitos humanitários da Declaração de Emergência Pública em Saúde Pública de importância Nacional em decorrência de dessasistência à população Yanomami.
Reconhecida pelo Ministério da Saúde (Portaria GM/Ms n. 28, de 20 de janeiro de 2023), a emergência tem por fundamento o artigo 3°, inciso III, do Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011, houve expressa previsão de articulação com outros órgãos públicos, com gestores municipais e estaduais, o estabelecimento de uma gestão coordenada, transparência social e as necessárias contratações para o enfrentamento da emergência:
PORTARIA GM/MS Nº 28, DE 20 DE JANEIRO DE 2023
Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência de desassistência à população Yanomami.
A MINISTRA DE ESTADO DA SAÚDE, no uso das atribuições que lhe conferem os incisos I e II do parágrafo único do art. 87 da Constituição, resolve:
Art. 1º Declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional conforme artigo 3°, inciso III, do Decreto nº 7.616, de 17 de novembro de 2011;
Art. 2º Estabelecer e mobilizar o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE – Yanomami) como mecanismo nacional da gestão coordenada da resposta à emergência no âmbito nacional.
§ 1º A gestão do COE estará sob responsabilidade da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), considerando a tipologia de emergência.
§ 2º A Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), por meio do Departamento de Emergências em Saúde Pública, realizará o apoio técnico aos trabalhos do COE.
Art. 3º Compete ao COE – Yanomami:
I – planejar, organizar, coordenar e controlar as medidas a serem empregadas durante a ESPIN, nos termos das diretrizes fixadas pela Ministra de Estado da Saúde;
II – articular-se com os gestores estaduais e municipais do SUS;
III – articular-se com órgãos e entidades do Poder Público;
IV – encaminhar à Ministra de Estado da Saúde relatórios técnicos sobre a ESPIN e as ações administrativas em curso;
V – divulgar à população informações relativas à ESPIN; e
VI – propor, de forma justificada, à Ministra de Estado da Saúde:
a) o acionamento de equipes de saúde, incluindo a contratação temporária de profissionais, nos termos do disposto no inciso II do caput do art. 2º da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993;
b) o encerramento da ESPIN.
VII – propor, de forma justificada, ao Secretário de Saúde Indígena:
a) a aquisição de bens e a contratação de serviços necessários para a atuação na ESPIN; e
b) a requisição de bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, nos termos do inciso XIII do caput do art. 15 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.
Parágrafo único. Fica delegada ao Secretário de Saúde Indígena a competência para determinar a requisição de bens e serviços de que trata este artigo.
Art. 4º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
NÍSIA TRINDADE LIMA
O ponto a se destacar é a eficiência, a eficácia e a efetividade da ação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos que, por sua Central de Compras, efetuou a primeira compra emergencial em ação humanitária. Segundo informes do site daquele Ministério em 24horas, foram pesquisados preços com 15 fornecedores locais e contratada empresa que apresentou o menor preço com entrega imediata. A que estamos nos referindo? Alimentação, direito humano universal, que foi traduzido em 1 mil cestas básicas no total de 63 toneladas de alimento. E a origem dos recursos? Provenientes do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para atender à situação de calamidade.
E mais. A contratação foi de fornecedor local, da cidade de Boa Vista, uma microempresa e o transporte até as localidades indígenas efetuado por aeronaves da FAB, a partir da Base Aérea daquela cidade. Conclui-se que a contratação emergencial fomentou, ainda, o comércio local e o desenvolvimento econômico regional, além da redução na emissão de gases de efeito estufa que poderia advir das logísticas de transporte rodoviário caso os alimentos fossem provenientes de localidades mais distantes.
Observa-se, na prática, a realização de uma contratação sustentável com a tão falada transversalidade de atuação governamental em políticas públicas, em prazo exíguo e de acordo com a legislação licitatória, mediante contratação emergencial.
A atuação estatal em face da Emergência em Saúde Pública Yanomani é uma prova eficaz de que é viável e necessária a tão disseminada transversalidade em políticas públicas. A contratação efetivada com segurança jurídica é reflexo desta atuação sinérgica e colaborativa.
Essa é a perspectiva que as políticas públicas e a gestão governamental devem perseguir, com o foco na promoção da infraestrutura para o desenvolvimento sustentável e na transversalidade, com diálogo com as diversas políticas setoriais, como desenvolvimento social, direitos humanos, segurança alimentar, justiça, gestão e inovação. É o momento de caminharmos rumo a uma economia sustentável e inclusiva e construirmos um país de fato economicamente próspero, socialmente justo, politicamente democrático, culturalmente diverso e ambientalmente equilibrado.
Referências:
- CADER, Renato & VILLAC, Teresa. Governança e Sustentabilidade: um Elo necessário no Brasil. E. Fórum. Belo Horizonte, 2022.
- https://www.gov.br/economia/pt-br/gestao/noticias/2023/janeiro/central-de-compras-do-ministerio-da-gestao-faz-primeira-acao-humanitaria
[1] CADER, Renato & VILLAC, Teresa. Governança e Sustentabilidade: um Elo necessário no Brasil. E. Fórum. Belo Horizonte, 2022.
[2] “Quer-se dizer, com isso, que as licitações, além de buscarem a melhor proposta para a Administração, resguardando a isonomia e a impessoalidade e prevenindo eventuais condutas de imorais por parte do administrador, podem e devem ser utilizadas com fins regulatórios, visando à concretização de outros valores constitucionais igualmente relevantes, como a preservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico sustentável. Nas palavras de Lena Barcessat, “a utilização do poder de compra do Estado, através das licitações sustentáveis com a finalidade de regulação social, desde que respeitadas as normas e princípios constitucionais, está longe de ferir o princípio da igualdade, nem tampouco prejudica a competitividade (…). Se escolhas de produtos, por razões de conveniência e oportunidade são aceitas, com muito mais razões há de se aceitar as escolhas motivadas na necessidade de conservação e de preservação do meio ambiente (regulação social), que constitui um dever do Estado, não apenas uma mera faculdade” (Papel do Estado brasileiro na ordem econômica e na defesa do meio ambiente: necessidade de opção por contratações sustentáveis. In SANTOS, Murillo Giordan; BARKI, Teresa Villac Pinheiro (Coord.). Licitações e contratações públicas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011). Por tais razões, mesmo antes da alteração introduzida pela Lei nº 12.349/10, as licitações sustentáveis já eram constitucionais e legais, o que dispensa maiores comentários. Observa-se, assim, que a licitação possui finalidades bem específicas, não constituindo ela própria um fim em si mesma. Trata-se de uma espécie de garantia institucional (…)” (Voto Min. Dias Toffoli, julgamento em 08/03/2022).
Claro e objetivo esse artigo, excelente.
Excelentes pontuações.