Já tivemos a oportunidade de consignar que a Nova Lei de Licitações[1] carrega em seu bojo regras que objetivam garantir a segurança jurídica aos particulares, de modo a abrir o mercado dos certames públicos para empresários que atravessam para o outro lado da rua quando se avizinham de algum órgão público, em razão de tudo que ouvem falar das contratações públicas.
No contexto da segurança jurídica, busca-se não apenas proteger os direitos dos licitantes, mas também as prerrogativas do contratado, em especial, garantir que o conteúdo econômico da proposta comercial vencedora do certame seja efetivamente auferido, afastando, na medida do possível, em qualquer fase da despesa pública, circunstância ou adversidade que venha, de alguma forma, prejudicar a recomposição do caixa do contratado, que tem por dever executar aquilo que se obrigou contratualmente, de sorte a obter a lucratividade que lhe é de direito.
Ilustrando, verifica-se a fixação de prazo para manifestação estatal (art. 123, parágrafo único, da NLLC), quando instada a se pronunciar sobre requerimentos que possam discutir, dentre outros, a cláusula econômico-financeira do contrato administrativo, garantindo que o particular não fique sem resposta. Disso decorre que há o estabelecimento de apenas um marco inicial para a contagem do prazo de resposta, quando o contratado exigir a aplicação do reajuste anual, nos termos do art. 28, caput, da Lei do Plano Real (Lei nº 10.192/01), até porque há necessidade de que todos os contratos estabeleçam cláusula de reajuste contratual (art. 25, § 7º, da NLLC).
Nessa toada, observa-se, ainda, a teor do disposto no art. 143 da NLLC, que, na ocasião da liquidação da despesa pública, caso se verifique incongruência ou negligência em relação à execução do objeto contratado, ou ainda inexistência de preenchimento de condicionante para a liberação do pagamento, a parcela considerada incontroversa deve ser alvo da respectiva contraprestação pecuniária.
Em outras palavras, existindo, nos autos do processo administrativo, informação no sentido de apontar que parte do objeto constante da nota fiscal foi executada corretamente, em seu aspecto quantitativo e qualitativo, deverá a Administração Pública realizar a devida liberação do pagamento.
Deste modo, é de se concluir que o legislador, ao contemplar norma de pagamento da parcela incontroversa, teve por objetivo determinar que a atuação estatal deve ser calcada nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, pelo que podemos afirmar que a retenção infundada da contraprestação pecuniária devida ao contratado se constitui, ainda que temporariamente, em enriquecimento ilícito por parte da Administração, o que é vedado pelo art. 884 do Código Civil.
Segundo Caldas Aulete, por incontroverso, devemos entender como aquilo “(…) que não admite controvérsia; que não pode ser objeto de discussão ou dúvida;”.
Assim sendo, inexistindo qualquer laivo de dúvida acerca da execução do pactuado, observa-se que não há facultatividade ou espaço discricionário para que a autoridade competente retenha o pagamento – inclusive existindo processo administrativo sancionatório em curso -, sendo, portanto, dever imediato da Administração contratante liberar, bem como tomar todas as providências, para efetivamente transferir para a conta apontada pelo particular contratado o correspondente valor.
Releva dizer que o art. 143 da NLLC encontra-se em plena vigência, podendo os particulares, desde logo, exigir o cumprimento da determinação legal, que deverá ser alvo de decisão da autoridade competente.
Outrossim, o ato administrativo que liberar a parcela incontroversa do pagamento deverá contemplar, de forma cristalina, a fática ocorrência impeditiva, de modo que o contratado possa, observados os princípios arrolados no art. 5º da Lei nº 14.133/21, tomar as providências necessárias, de maneira a permitir a liberação da outra parcela tida como controversa.
Importa dizer, ainda, que a delimitação daquilo que for considerado controverso, em razão de execução contratual em desconformidade com as disposições constantes do ajuste público, deverá ser refeita para se conformar aos termos do projeto básico ou termo de referência.
A exemplo, sendo executado pelo particular obras de reparos em via pública e sendo a calçada e pavimentação refeitas, verificando-se o recapeamento realizado em desconformidade com os projetos, mas estando a reconstrução da referida calçada em conformidade com os planos, entende-se que o pagamento relativo ao item calçada deverá ser liberado, ainda que o logradouro público não se encontre liberado para tráfego, por conta do pavimento executado ter sido recusado.
Em outro exemplo, para que não reste qualquer dúvida, imaginemos que é encargo do contratado a execução de edificação de paredes, bem como a realização de acabamento do tipo chapisco e reboco. Entretanto, por ocasião da medição, verifica-se que o revestimento aplicado na parede construída está em desconformidade com o constante do projeto básico. Ainda assim deverá ser liberado o pagamento daquilo que representa o assentamento dos tijolos, devendo o reboco e chapisco, se for o caso, ser refeitos.
Obviamente, não deverá ser objeto de liberação para pagamento o valor referente à parcela da execução do objeto pendente de liquidação, na forma do art. 60 da Lei nº 4.320/64.
Sendo assim, de modo a garantir efetivamente a justiça administrativa e a segurança jurídica, observa-se mais um instrumento à disposição dos particulares para proteção de seus interesses, em razão de autorização clara que vem a amparar as decisões administrativas, e observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
[1] Cf. in Comentários à Nova Lei de Licitações Públicas e Contratos Administrativos Lei nº 14.133, de 1º de Abril de 2021, São Paulo, Almedina, p. 973