A Lei nº 14.133/2021, conhecida popularmente como a nova lei de licitações e contratos, no seu artigo 5º aponta uma lista com mais de 20 princípios que precisam ser observados quando de sua aplicação. No caso, interessa-nos especificamente o princípio da segregação de funções.
O Grande Dicionário Houaiss[1] define segregação como o “ato ou efeito de segregar(-se); afastamento, separação”. Sendo assim, no cenário do procedimento para contratação pública, pode ser compreendida como a divisão de atos que serão praticados, desde a fase de planejamento, passando pela seleção do fornecedor, assinatura do contrato, fiscalização e pagamento.
Nesse contexto, costumeiramente ouvimos, entre tantas outras, as seguintes indagações: seria possível o fiscal do contrato atuar na fase de planejamento? seria possível o demandante atuar na fase de seleção do fornecedor? seria possível o pregoeiro elaborar o termo de referência? Pois bem, antes de enfrentar tais questionamentos, é preciso analisar alguns elementos que são importantes para demonstrar a nossa compreensão sobre a segregação de funções no procedimento licitatório.
Segundo o Manual de Orientações Técnicas da Atividade de Auditoria Interna Governamental do Poder Executivo Federal[2], a segregação de funções consiste na “separação de funções de tal forma que estejam segregadas entre pessoas diferentes, a fim de reduzir o risco de erros ou de ações inadequadas ou fraudulentas”.
O Tribunal de Contas da União[3] entende que a segregação de funções significa “repartir funções entre os agentes públicos cuidando para que um mesmo indivíduo não exerça funções incompatíveis entre si, de modo a reduzir o risco de erro ou fraude”.
Assim, é possível perceber que há uma relação essencial entre o sistema de controle da Administração Pública e o princípio da segregação de funções, uma vez que há, nessa vinculação, um plano de fundo comum, qual seja, a ideia de que é possível a ocorrência de conflito de interesses na realização de certos atos administrativos e, por consequência, existe a possibilidade da ocorrência de desvio de finalidade.
Desse modo, a segregação de funções pretende evitar a ocorrência desses desvios e, em sendo esses concretizados, que o agente não esteja em posição que lhe permita a prática de atos para ocultá-los.
Não obstante isso, é importante perceber que a divisão de atribuições entre os agentes que participam do procedimento de contratação pública implica também o delineamento do campo de eventual responsabilização pelos atos praticados.
Dito de outro modo, segregar funções significa atribuir responsabilidades, delimitar o âmbito de atuação e de eventual responsabilização do agente em virtude dos atos praticados. Portanto, pressupõe a não acumulação de atribuições durante a prática de atos no procedimento de contratação pública. Mas como seria essa não cumulatividade de funções?
O §1º, do artigo 7º, da Lei nº 14.133/2021 ajuda-nos a construir a resposta para essa pergunta. Ao tratar sobre a segregação de funções, a norma citada prescreve que é “vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação.”
Desse modo, não há dúvidas sobre a diretriz adotada pela lei no que diz respeito à operacionalização da divisão de atribuições no procedimento de contratação pública, isto é, veda a atuação de um mesmo agente em funções suscetíveis a riscos em uma mesma contratação. É o que se extrai da parte final do dispositivo: “na respectiva contratação”.
Assim, entende-se que a segregação de funções precisa ser observada tendo em as fases do procedimento licitatório, uma vez que cada uma delas têm os riscos que lhes são próprios. Não se desconhece que é necessária a realização de estudos para identificação de tais riscos e dos efeitos de sua ocorrência sobre os objetivos pretendidos com a contratação.
No entanto, defende-se que não há incompatibilidade da interpretação ora proposta com o princípio da segregação de funções, uma vez que a designação de agentes será realizada para atuar especificamente em cada uma das fases do procedimento licitatório, mitigando a possibilidade de ocultação de erros e de fraudes.
Nesse cenário, é preciso esclarecer que há quatro grandes fases do procedimento de contratação pública, quais sejam: (i) planejamento, (ii) seleção do fornecedor, (iii) gestão e fiscalização do contrato administrativo e (iv) pagamento.
Em vista disso, os valores decorrentes da segregação de funções (evitar conflito de interesses e desvio de finalidade) seriam efetivados com a designação de agentes para atuar, em cada contratação, tão-somente em cada uma dessas fases.
Dessarte, em uma licitação para aquisição de equipamentos para desenvolvimento de pesquisa científica, a segregação seria observada com designação de A, B e C para compor a equipe de planejamento, de D para atuar como pregoeiro ou agente de contratação, de E para ser gestor ou fiscal do contrato, sendo F o responsável pela autorização de pagamento. Perceba que na mesma linha de contratação não há acúmulo de atribuições.
Na nossa compreensão é possível adotar as grandes fases do procedimento licitatório como referencial para a segregação de funções, evitando a atuação do mesmo agente em mais de uma etapa no fluxo procedimental de modo a possibilitar, por exemplo, a ocultação de decisões que possam implicar o estabelecimento de alguma exigência potencialmente restritiva com eventual objetivo de direcionamento da contratação.
Por consequência disso, os questionamentos antes apresentados estão respondidos, uma vez que na mesma contratação não seria possível atuação em mais de uma fase do procedimento licitatório, assim, o fiscal não pode atuar como membro da equipe de planejamento, o demandante não pode ser o responsável pela seleção do fornecedor, o pregoeiro não poderia elaborar o termo de referência.
Um outro alerta ainda é crucial, posto que dentro de uma mesma fase do procedimento de contratação pode ser necessário observar a segregação, como por exemplo na fase de execução do contrato, uma vez constatada, pelo fiscal, a necessidade de abertura de processo sancionador. Nessa hipótese, o gestor ou fiscal do contrato não podem atuar no processo administrativo para aplicação de penalidades, posto que já estão com juízo de valor formado a respeito da conduta da contratada, não havendo dúvidas quanto a sua parcialidade para sugestão de eventual penalidade que possa ser aplicada pela autoridade competente.
Não obstante isso, é preciso destacar que o princípio da segregação de funções não veda o diálogo entre os envolvidos no processo de contratação. Ao contrário, parece-nos recomendável o compartilhamento de experiências, contribuindo para o aprimoramento das contratações pretendidas.
Portanto, segregar utilizando as grandes fases como referencial permite o controle interno dos atos praticados pelos agentes envolvidos em cada uma das etapas do fluxo processual. Pretende-se, pois, a instituição de um critério objetivo para a realização da segregação de funções, qual seja, a observância das grandes fases do procedimento como seu referencial. Porém tem um porém, vejamos.
Não se desconhece que a norma é, por natureza, geral e abstrata. Mais do que isso, prevê um “mundo ideal” que frequentemente não encontra adequação ou compatibilidade com o “mundo do ser”, onde a Administração efetivamente se concretiza.
Além disso, o fato é que os entes federativos têm realidades estruturais as mais diversas e variadas entre si. Muitas vezes observa-se estruturas dissonantes no âmbito do mesmo ente federativo. Essa é uma realidade comum na Administração Pública federal, por exemplo.
Disso resulta uma conclusão inafastável: a realidade se impõe. Não há como fugir dela, razão pela qual é possível que, por exemplo, os pequenos municípios tenham maiores dificuldades em observar o princípio da segregação de funções. A razão é simples: não há, em muitos deles, no quadro de pessoal, quantitativo de servidores necessários para observar, como proposto, a divisão de atribuições.
Um dilema se evidencia e precisa ser enfrentado, afinal, a segregação de funções foi alçada à posição de princípio, logo, trata-se de vetor que orienta a atividade administrativa. Qual seria então o caminho?
O artigo 5º, da Lei nº 14.133/2022, determina que devem ser observadas as disposições do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB). Para nós, temos aqui uma valiosa ferramenta para dar concretude ao princípio da segregação de funções, observando a estrutura organizacional de cada órgão ou entidade.
A LINDB prevê que na “interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor” – artigo 20. Não há dúvidas que, dentre tais obstáculos e dificuldades de gestão, estão compreendidas as questões estruturais, como a carência de servidores para desempenhar as atribuições inerentes às grandes fases da contratação, trata-se, pois, de uma dificuldade material.
Antes de avançar, é preciso definir uma premissa básica, isto é, a segregação de funções tenciona evitar conflito de interesses na prática de atos administrativos, pretendendo evitar ou minimizar a ocorrência de fraudes ou erros.
Os obstáculos e as dificuldades reais de gestão justificam e motivam a estruturação de um modelo próprio para designação de agentes para atuação no procedimento de contratação, no entanto, é imprescindível que, em algum momento, o controle seja efetivamente realizado sobre os atos praticados.
Disso resulta, pois, que é possível se pensar em modelo específico e compatível com a realidade de cada órgão ou entidade para efetivação da segregação de funções, como por exemplo, admitindo a possibilidade de que o demandante realize o planejamento para contratação do objeto para satisfação de sua necessidade, incluindo aí a elaboração do estudo técnico preliminar e do termo de referência, segregando quando da realização da licitação (fase de seleção) e, posteriormente, sendo designado para fazer a gestão e fiscalização do contrato (fase de execução) com segregação no momento de ateste, liquidação e pagamento da despesa (fase de pagamento).
Portanto, entende-se que as fases do procedimento licitatório podem ser utilizadas como referencial para realização do princípio da segregação de funções, vedando a atuação de agentes em mais de uma fase na mesma contratação. No entanto, não se desconhece que cada órgão ou entidade, nos diversos níveis federativos, têm uma realidade estrutural específica e, muitas vezes, enfrentam obstáculos e dificuldades reais de gestão que impactam sobre a utilização do modelo aqui proposto, como regra.
Entretanto, a partir das normas previstas na
LINDB, seria possível justificar a construção de um modelo próprio para
realização do princípio da segregação de funções, admitindo o acúmulo de
atribuições em mais de uma fase, sem, no entanto, deixar de estabelecer
mecanismo para realização do controle para os fins de evitar ou reduzir a
ocorrência de erros ou fraudes no processo de processo de contratação.
[1] Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-0/html/index.php#1. Acesso em: 20.7.2022, 23:35.
[2] Disponível em: Manual de Orientações Técnicas da Atividade de Auditoria Interna Governamental do Poder Executivo Federal. Acesso em: 20.7.2022, 23:49.
[3] Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/vce-vocabulario-de-controle-externo-do-tribunal-de-contas-da-uniao.htm. Acesso em: 21.7.2022, 00:28.
Muito bom!