E chegamos ao fim de um ano de muitas “novidades” e desafios para as contratações públicas no Brasil. Além de regimes excepcionais nas compras públicas em decorrência da pandemia da COVID-19, no dia 1º de abril de 2021 entrou em vigor a chamada “Nova Lei de Licitações” (NLL), a Lei nº 14.133/2021.
Em uma tentadora síntese, poderia considerar que a NLL não revoluciona as contratações públicas no Brasil! De plano, percebe-se ser exitoso o projeto do novel diploma de consolidação normativa, em especial das Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e nº 12.462/2011. Em semelhante perspectiva, da análise de diversos institutos, vislumbra-se que parte considerável das “novidades” veiculadas na Lei nº 14.133/2021 é inspirada no RDC (Regime Diferenciado de Contratações) e na Lei nº 13.303/2016, a “Lei das Estatais”, além da positivação de diversos entendimentos jurisprudenciais, sobretudo do TCU.
Ademais, sem maior dificuldade, é possível notar que a Lei nº 14.133/2021, como consagrado na Lei nº 8.666/1993, mantém a estruturação do processo de contratação em três macrofases: a preparatória, a seleção do fornecedor e a contratual. Ainda se comparada com a Lei nº 8.666/1993, a NLL promove poucas alterações substanciais no regime jurídico da fase contratual. Quando à fase de seleção do fornecedor, a despeito da continuidade da adoção de modalidades estáticas, evolui ao estabelecer elementos mais dinâmicos na composição do “desenho” do procedimento licitatório, a saber: opção por modos de disputa e exigências de compatibilidade das regras do jogo com o planejamento realizado na fase preparatória.
Certamente, o grande mérito da Lei nº 14.133/2021 me parece ser a ênfase acerca da fase preparatória, cuja normatização, há duas décadas, se reconhece como carente na Lei nº 8.666/1993. Sem dúvidas, foram impostos importantes desafios para a Administração Pública, notadamente a compreensão da relevância e cabimento dos Estudos Técnicos Preliminares (ETP).
Destaca-se a mudança de enfoque da NLL se comparada com a Lei nº 8.666/1993: em detrimento do foco exclusivo e limitado do processo de contratação propriamente dito privilegia uma visão “macro”, erigindo, como seu elemento central, a governança! Na mesma esteira, preocupa-se com o “elemento humano”, com aquele que, de fato, fará a gestão pública e, no exercício diário de atuação, será o intérprete por excelência da norma: os agentes públicos. Nessa toada, eu particularmente considero como a tríade elementar da Lei nº 14.133/2021: o parágrafo único do art. 11, o §1º do art. 7º e o §3º do art. 8º.
Logo, em minha opinião, a Lei nº 14.133/2021 representa não uma ruptura, mas sim uma “continuidade” em face do arcabouço normativo existente no Brasil para o regime contratual da Administração Pública direta, autárquica e fundacional.
Polêmica e controversa ainda em sua gênese no Congresso Nacional, a própria aplicabilidade da NLL foi objeto de acirrados e passionais debates ao longo de cinco meses… manifestações e entendimentos diversos da advocacia pública e dos órgãos de controle enfrentavam algumas “pedras no caminho” para a aplicação da Lei nº 14.133/2021, como uma suposta dependência de regulamentação (norma de eficácia limitada?) e a implementação efetiva do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
A celeuma foi, de certa forma, atenuada com a disponibilização da versão inicial do PNCP em 09/08/2021[1] e, posteriormente, com a regulamentação da composição e atribuições do Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas (CGRNCP) pelo Decreto Federal nº 10.764, de 09/08/2021, e a Portaria do Ministério da Economia nº 9.728, de 24/08/2021[2], que formalizou a designação dos membros do colegiado de composição interfederativa.
Ainda assim, por mais que seja prolixa e ostente elevado grau de detalhamento acerca de diversos institutos e instrumentos da contratação pública – em especial no que tange à fase preparatória e aos procedimentos auxiliares –, remanesce o desafio de verificar os pontos passíveis de regulamentação na Lei nº 14.133/2021 e, acima de tudo, identificar aqueles dispositivos que, necessariamente, demandariam regulamentação para assegurar a sua aplicabilidade.
Por tais razões e diante da necessária implementação e desenvolvimento de estruturas e processos de governança das contratações, buscando, acima de tudo, um ambiente decisório mais seguro para os agentes públicos envolvidos nos processos de contratações, desponta como o grande desafio de 2022 a construção planejada de um processo de transição para a aplicação da Lei nº 14.133/2021.
Afinal, ainda que permitida a opção pelo “antigo” e pelo “novo” regime na dicção do art. 191 da NLL, é preciso assegurar a aplicação da Lei nº 14.133/2021 da forma mais eficiente e segura possível… é preciso aproveitar o potencial positivo veiculado pela nova lei, seus instrumentos, os mecanismos de planejamento. Enfim, há que se evitar sobressaltos e experiências precipitadas na aplicação da norma que, passados oito meses de sua vigência, ao que parece, não terão a condescendência dos órgãos de controle. Aliado a isso, não se pode olvidar a necessidade de adoção de providências para integração ao PNCP[3] e ajustes dos sistemas tecnológicos próprios de cada órgão público[4]. Ou seja, já estando disponível o PNCP desde 09/08/2021, à luz dos artigos 54 e 94 e do §2º do art. 174 da Lei nº 14.133/2021, se mostra, no mínimo, temerária a realização de procedimentos de contratação sem a publicidade dos respectivos atos no PNCP.
No sentido da busca por uma transição planejada, cumpre destacar a experiência empreendida por diversos órgãos públicos em todo o Brasil, destacando-se, no plano federal, a preocupação do TCU[5], Senado Federal[6] e Conselho Nacional de Justiça[7] com a constituição de equipes de estudo e acompanhamento da implementação da NLL. Além do foco na capacitação dos servidores, adaptação dos normativos e regulamentos internos, ajustes dos sistemas próprios, a consolidação das boas práticas compõe um importante benchmarking orientativo para outros órgãos e entidades.
Outro fator que deve ser considerado é a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios no que tange à normatização complementar e suplementar da Lei nº 14.133/2021, partindo do pressuposto de que a NLL, indubitavelmente, é composta não apenas por “normas gerais”, mas, também, por “normas específicas”[8].
Nesse horizonte, se mostra essencial um centro de referência e consulta no tocante à interpretação e aplicação da Lei nº 14.133/2021, contemplando as produções doutrinárias de vanguarda sobre temas polêmicos e ainda inexplorados na NLL, a compreensão jurisprudencial – em especial dos Tribunais de Contas – e, ainda, as iniciativas práticas da Administração Pública quanto à regulamentação e à aplicação efetiva da norma.
Vislumbro
que tal papel poderá ser, de forma plural e qualificada, desempenhado pelo Observatório
da Nova Lei de Licitações (ONLL), atuando como um verdadeiro “observatório”
do processo de sedimentação e construção prática da Lei nº 14.133/2021 por
parte da Administração Pública.
[1] A disponibilização se deu em webinar promovida pelo Ministério da Economia e com a participação dos indicados para compor o Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, nos termos do §1º do art. 174 da NLL. O webinar está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W25KItdhhw8>.
[2] Tal ato foi revogado pela Portaria nº 15.496, de 29/12/2021, que consolidou a designação formal dos membros titulares e suplentes do CGRNCP.
[3] Importante salientar que o PNCP é um portal que centraliza as informações sobre licitações e contratos a partir de sítios eletrônicos e plataformas que processam dados sobre contratações públicas, a exemplo dos Portais de Transparência dos órgãos e entidades e das plataformas de realização de certames eletrônicos. Portanto, a alimentação de informações no PNCP se dá a partir da integração, via API (Application Programming Interface), com os referidos sítios eletrônicos. Dessa forma, é recomendável que os órgãos adotem as providências necessárias para estruturar a integração, via API, de seus próprios sistemas de gestão processual e portais da transparência com o PNCP. Nesse sentido, sugere-se o acesso ao Manual de Integração ao PNCP [disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/pncp/documentos/manual-de-integracao-pncp-2013-versao-1-0-0.pdf/view] e das orientações transmitidas em webinar realizado no dia 19/08/2021 pela SEGES/ME [disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rFoWR1Bu24k].
[4] Para tanto, vide o inteiro teor do Acórdão TCU nº 2.458/2021-Plenário.
[5] Em 15/04/2021, por meio da Ordem de Serviço Conjunta SEGECEX-SEGEDAM-SEGEPRES nº 1, foi constituído no âmbito do TCU “grupo de trabalho com o objetivo de propor estratégia para tratamento do tema licitações e contratos da Administração Pública no Tribunal“.
[6] Por meio do Ato da Diretoria-Geral nº 9/2021 (BASF de 05/05/2021), foi criado o “Comitê de Acompanhamento de Implementação da Nova Lei de Licitações no Senado Federal”, com o objetivo de assegurar a estruturação de um ambiente adequado para a plena aplicação da Lei nº 14.133/2021 quanto aos processos de contratação desta Casa Legislativa. O referido Comitê, dentre outras competências, tem por atribuição a apresentação de relatórios mensais acerca: as ações necessárias à implementação do “Plano de Transição”, as providências para a implementação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), as medidas adotadas pelo Ministério da Economia para a atualização da plataforma Comprasnet.
[7] Por meio da Portaria nº 113, de 09/04/2021, o CNJ instituiu “Grupo de Trabalho com a finalidade de avaliar medidas e coordenar a implementação da Lei nº 14.133/2021 no âmbito do Conselho Nacional de Justiça“.
[8] Para tanto, vide: AMORIM, Victor. Competência normativa sobre contratações públicas: o que é norma geral e norma específica na Lei nº 14.133/2021. Observatório da Nova Lei de Licitações (ONLL), 17/09/2021. Disponível em: <https://www.novaleilicitacao.com.br/2021/09/17/competencia-normativa-sobre-contratacoes-publicas-o-que-e-norma-geral-e-norma-especifica-na-lei-no-14-133-2021/>.
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