1. Os regimes de contratação pública no Brasil
Da leitura do inciso XXVII do art. 22 em conjunto com o art. 173, §1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), extrai-se a previsão de dois grandes regimes de contratação pública no país:
a) o regime da Administração Pública direta, autárquica e fundacional;
b) o regime das empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista).
Em situações “híbridas”, como a das organizações paraestatais e privadas que venham a aplicar recursos públicos, ainda que não se enquadrem categoricamente em um dos dois grandes regimes alhures abordados, deverão ser observados os princípios da Administração Pública e seus corolários, constituindo, pois, um peculiar regime de contratação, mas com a necessária afetação de interesse público.
2. Competência normativa sobre licitações e contratos administrativos
Com base na técnica de repartição vertical de competência, o inciso XXVII do art. 22 da CRFB preconiza que caberá à União definir as normas gerais sobre licitação e contratos administrativos, permitindo, por outro lado, aos demais entes federativos legislar sobre normas específicas de acordo com as suas particularidades.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[…]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1o, III.
Compete à União, portanto, a edição de normas gerais tanto para o regime da Administração direta, autárquica e fundacional, quanto para o regime contratual das empresas estatais.
Há que se cotejar o art. 22, XXVII, com o art. 24, inciso XI e §§1º e 2º e o art. 30, II, da CRFB, concluindo-se, consoante entendimento já sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal, que a competência legiferante em matéria de contratação pública é do tipo concorrente.
É de se questionar, então: as normas gerais de licitação e contratação, editadas pela União, têm por contraponto, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, normas específicas ou normas suplementares? Resposta: a competência que assiste aos Estados e ao Distrito Federal, em matéria de licitação, é de natureza suplementar. Embora topograficamente inserida no art. 22 da Constituição Federal, a competência da União para legislar sobre licitação e contratação, em todas as modalidades, para as Administrações Públicas Diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios se limita à edição de “normas gerais” (inciso XXVII do art. 22 da CF), assim como a competência legislativa de todas as matérias referidas no art. 24 da Constituição (§ 1º do art. 24 da CF). Ademais, inexistindo lei federal sobre normas gerais de licitação, ficam os Estados autorizados a exercer a competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades (§ 3º do art. 24 da CF). A não ser assim, o que se tem é recusa aos Estados-membros quanto a sua própria autonomia administrativa, quebrantando o princípio federativo.[1]
Se, por um lado, compete à União definir as normas gerais sobre o tema, por outro, é permitido aos demais entes federativos legislar sobre normas específicas de acordo com as suas particularidades. Logo, apenas as normas gerais são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante.
Neste aspecto, cumpre anotar a importância de estabelecimento de um critério definidor do alcance da normatização da União no tocante à licitação e aos contratos administrativos. Tal critério funda-se na distinção entre “normas gerais” e “normas específicas”. Com efeito, quando a União estabelece uma “norma geral”, tal diploma ostenta a condição de “lei nacional”, aplicável em todo o território, devendo ser observada indistintamente por todos os entes federativos. Noutra via, ao criar “norma específica” sobre o assunto, tal lei terá âmbito federal, só atingindo a própria União. Quanto à distinção entre os conceitos de “lei nacional” e “lei federal”, vale transcrever ensinamento de Geraldo Ataliba: “a) lei nacional – veicula normas gerais, é produto legislativo do Estado federal, transcende à esfera de qualquer pessoa política; b) lei federal – vincula todo aparelho administrativo da União e todas as pessoas que a ela estejam subordinadas ou relacionadas” [2].
2.1. Compreensão doutrinária e jurisprudencial acerca das “normas gerais”
Há notória cizânia doutrinária[3] relativa à definição de quais regras, em matéria de contratação pública, são “normas gerais” e quais são “normas específicas”.
Para fins didáticos, cumpre mencionar o clássico artigo de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[4] que, ao promover um amplo levantamento da doutrina nacional e estrangeira sobre o tema, apresenta, de forma sintética, as características essenciais das normas gerais:
a) estabelecem princípios, linhas mestras e regras jurídicas gerais;
b) não podem entrar em pormenores ou detalhes nem, muito menos, esgotar o assunto legislado;
c) devem ser regras nacionais, uniformemente aplicáveis a todos os entes públicos;
d) devem ser regras uniformes para todas as situações homogêneas;
e) só cabem quando preencham lacunas constitucionais ou disponham sobre áreas de conflito;
f) devem referir-se a questões fundamentais;
g) são limitadas, no sentido de não poderem violar a autonomia dos Estados;
h) não são normas de aplicação direta.
Com esteio na análise de tais características, Moreira Neto conclui:
1º – A União está limitada à edição de diretrizes nacionais que se dirigem precipuamente aos legisladores estaduais, para os quais são cogentes, direta e imediatamente eficazes.
2º – As normas específicas baixadas pela União juntamente com as normas gerais ou os aspectos específicos por acaso nestas contidas, não têm aplicação aos Estados-Membros, considerando-se normas particularizantes federais, dirigidas ao Governo Federal.
3º – Inexistindo, e enquanto inexistir, legislação estadual específica, tanto as diretrizes nacionais contidas nas normas gerais quanto sua pormenorização federal se aplicam subsidiariamente, direta e imediatamente às relações concretas nelas previstas.
4º – Inexistindo normas gerais da União versativas sobre qualquer assunto ou aspecto que deva ser legislado pela modalidade de competência concorrente limitada, o Estado-Membro poderá legislar amplamente a respeito, prevalecendo sua legislação até que sobrevenham diretrizes nacionais que com ela sejam incompatíveis.
5º – A normas específica estadual que regular, direta e imediatamente, uma relação ou situação jurídica concretamente configurada afasta a aplicação de norma federal coincidente, salvo se contrariar, diretrizes principiológicas de norma geral, na 3ª hipótese acima.
6º – Em razão de sua inafastável característica nacional, não será norma geral a que dispuser sobre organização, servidores e bens dos Estados ou Municípios mas, em consequência, simples norma inconstitucional.[5]
No âmbito do Supremo Tribunal Federal inexiste definição do conceito de “normas gerais”, o que dificulta a identificação do espaço de atuação normativa dos entes federativos em tal assunto. Todavia, merece repercussão o entendimento sufragado pelo Pretório Excelso na apreciação da ADI nº 4.060/SC, em 25/02/2015:
[…] 1. O princípio federativo brasileiro reclama, na sua ótica contemporânea, o abandono de qualquer leitura excessivamente inflacionada das competências normativas da União (sejam privativas, sejam concorrentes), bem como a descoberta de novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Estados, Municípios e pelo Distrito Federal, tudo isso em conformidade com o pluralismo político, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CRFB, art. 1º, V)
2. A invasão da competência legislativa da União invocada no caso sub judice envolve, diretamente, a confrontação da lei atacada com a Constituição (CRFB, art. 24, IX e parágrafos), não havendo que se falar nessas hipóteses em ofensa reflexa à Lei Maior. Precedentes do STF: ADI nº 2.903, rel. Min. Celso de Mello, DJe-177 de 19-09-2008; ADI nº 4.423, rel. Min. Dias Toffoli, DJe-225 de 14-11-2014; ADI nº 3.645, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 01-09-2006.
3. A prospective overruling, antídoto ao engessamento do pensamento jurídico, revela oportuno ao Supremo Tribunal Federal rever sua postura prima facie em casos de litígios constitucionais em matéria de competência legislativa, para que passe a prestigiar, como regra geral, as iniciativas regionais e locais, a menos que ofendam norma expressa e inequívoca da Constituição de 1988.[6]
[grifou-se]
Restou consagrada a analogia feita pelo Ministro Carlos Velloso em seu voto na Medida Cautelar na ADI nº 927/RS[7], segundo o qual, a norma geral traz uma moldura do quadro a ser pintado pelos Estados, DF e Municípios. Tal analogia é bem desenvolvida por Raul Machado Horta:
[…] a lei de normas gerais deve ser uma lei quadro, uma moldura legislativa. A lei estadual suplementar introduzirá a lei de normas gerais no ordenamento do Estado, mediante o preenchimento dos claros deixados pela lei de normas gerais, de forma a aperfeiçoá-la às peculiaridades locais. É manifesta a importância desse tipo de legislação em federação continental, como a brasileira, marcada pela diferenciação entre grandes e pequenos Estados, entre Estados industriais em fase de alto desenvolvimento e Estados agrários e de incipiente desenvolvimento industrial, entre Estados exportadores e Estados consumidores[8].
[grifou-se]
Na oportunidade do julgamento da Medida Cautelar na ADI nº 927/RS, vislumbrou-se a tentativa de definição do conceito de “norma geral”, não havendo, contudo, consenso. Em seu voto, assentou o relator, Ministro Carlos Velloso:
[…] Penso que essas ‘normas gerais’ devem apresentar generalidade maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que ‘norma geral’, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências […] Não são normas gerais as que se ocupem de detalhamentos, pormenores, minúcias, de modo que nada deixam à criação própria do legislador a quem se destinam, exaurindo o assunto de que tratam […] São normas gerais as que se contenham no mínimo indispensável ao cumprimento dos preceitos fundamentais, abrindo espaço para que o legislador possa abordar aspectos diferentes, diversificados, sem desrespeito a seus comandos genéricos, básicos.
Outrossim, a despeito da inexistência de um critério preciso para a caracterização de “norma geral” e “norma específica”, é possível depreender, a partir da análise jurisprudencial, que a Suprema Corte reputa enquadrar-se como “normas gerais” os princípios, os fundamentos e as diretrizes conformadoras do regime licitatório no Brasil.
2.2. As normas gerais editadas pela União sobre licitações e contratos
Com vistas a cumprir o papel de definir as normas gerais sobre licitações e contratos administrativos, a União editou, para o regime da Administração direta, autárquica e fundacional, a Lei nº 14.133/2021 (em substituição à Lei nº 8.666/1993), e, para o regime das empresas estatais, a Lei nº 13.303/2016.
Contudo, com esteio na diferenciação entre “lei nacional” e “lei federal”, vale frisar que ambas as normas (Lei nº 14.133/2021 e Lei nº 13.303/2016), apresentam não apenas “normas gerais” – que ostentam âmbito nacional –, mas, também, normas de cunho “específico”.
Resta claro que não foi intenção do legislador federal esgotar nas Lei nº 14.133/2021 e nº 13.303/2016 toda a matéria atinente às contratações públicas, suprindo dos demais entes a necessidade de especificar a disciplina no tema de acordo com as suas particularidades. No caso, o que desbordar das referidas leis em caráter de “norma geral”, será de aplicação específica para a Administração Pública Federal (no caso da Lei nº 14.133/2021) e para as empresas estatais federais (no caso da Lei nº 13.303/2016). Caso contrário, se tais normas limitassem a estabelecer apenas os princípios, as diretrizes e os fundamentos das licitações e contratos, não haveria disciplinamento específico para os procedimentos licitatórios realizados pelos órgãos e empresas públicas federais.
É oportuno salientar que a edição das Leis nº 14.133/2021 e nº 13.303/2016 não exauriu a competência legislativa da União para editar normas gerais sobre os regimes de contratação pública. Não há qualquer óbice para que a União discipline o assunto em outros diplomas normativos, como foi feito, v.g., no caso da Lei nº 8.987/1995 (concessão de serviços públicos); da Lei nº 11.079/2004 (parcerias público-privadas); da Lei Complementar nº 123/2006 (estabelece nos artigos 42 a 49 regras gerais para tratamento diferenciado para microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas); e da Lei nº 12.232/2010 (contratação de serviços de publicidade).
NORMAS GERAIS EDITADAS PELA UNIÃO SOBRE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) Lei nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações) Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão) Lei nº 12.462/2011 (RDC) Lei nº 8.987/1995 (Concessão e Permissão de Serviços Públicos)Lei nº 11.079/2004 (Parcerias Público-Privadas)Lei Complementar nº 123/2006 (estabelece, em seus artigos 42 a 49, normas para tratamento diferenciado para as microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas)Lei nº 12.232/2010 (contratação de serviços de publicidade)Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais) |
Vale salientar que, dada a sua especificidade e especialidade, os procedimentos previstos nas Leis nos 8.987, 11.079/2004 e 12.232/2010 não serão objeto de análise na presente obra, que tem o propósito de apresentar a teoria geral de licitações e dos contratos administrativos.
2.3. A nova Lei “Geral” de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021)[9]
Após quase oito anos de tramitação no Congresso Nacional, enfim, em 1º de abril de 2021, foi sancionada, promulgada e publicada a chamada “nova” Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLL), a Lei nº 14.133/2021, que corresponde ao marco normativo do regime de contratação da Administração direta, autárquica e fundacional.
Quanto às licitações propriamente ditas, a maior novidade foi a instituição de uma modalidade denominada diálogo competitivo, com a extinção das modalidades tomada de preços e convite. Foram mantidas, como padrão, as modalidades concorrência e pregão, com a introdução de uma modelagem de disputa mais dinâmica e menos estática se comparada com a Lei nº 8.666/1993, baseada nos modos aberto, fechado e combinação de ambos. É prevista como regra a sequência de fases tradicional do pregão: primeiro o julgamento de propostas, com fase de lances (inclusive para a concorrência) e, somente depois, a análise de habilitação apenas do licitante vencedor.
A nova norma prevê a possibilidade, a critério da Administração, de inversão de fases, ou seja, primeiro a habilitação e, depois, o julgamento das propostas. Tal instrumento é fundamental para, diante da particularidade e sensibilidade de alguns objetos, atenuar os riscos de participações aventureiras e conferir maior segurança para a Administração quanto à avaliação de propostas apenas em relação aos fornecedores que tenham demonstrado previamente sua aptidão e capacidade de contratar com o Poder Público. Nesse mesmo intento, precisamos lembrar de importantes instrumentos auxiliares que poderão ser acoplados aos procedimentos licitatórios como a pré-qualificação (de licitantes e de produtos), afastando, assim, as atuais distorções e críticas quanto ao rito atual da modalidade pregão e do RDC (regime diferenciado de contratação), notadamente (1) em relação a uma pressuposta baixa qualidade de disputa decorrente da verificação das condições de contratar com a Administração somente após o fim da disputa e, também, (2) por um fetiche dos agentes públicos – fomentado, em grande parte, pelos órgãos de controle – na busca de menor preço, desatrelado de uma preocupação com a qualidade e performance da solução a ser contratada.
Em nossa opinião, ainda que não tenham sido adotados os mecanismos mais modernos desenvolvidos pelos estudos econômicos da teoria dos leilões – como a sinalização (signaling) e a reputação (rating) dos potenciais fornecedores – a dinamicidade empreendida pelos modos de disputa e a sequência procedimental “propostas-habilitação” (com possibilidade de inversão) tendem a imprimir maior celeridade e eficácia aos certames.
Ainda que mantido o regime jurídico-contratual fundado na ideia da supremacia e indisponibilidade do interesse público, o novo texto introduz importante e necessária lógica de consensualidade nas contratações a partir da previsão de meios alternativos de resolução de controvérsias, como a conciliação, mediação e arbitragem.
Por sua vez, o foco nos procedimentos de planejamento das contratações e na capacitação, pré-requisitos de investidura e matriz de competências dos agentes públicos parece conduzir a um ambiente negocial mais transparente e menos nebuloso, a partir de maior eficácia e da redução das intercorrências, incompletudes e vícios nos mecanismos de seleção e na própria gestão dos contratos administrativos. Mas essa visão tem um grande risco: a enorme disparidade entre as realidades dos serviços da União e, em especial, dos Municípios. As detalhadas exigências de planejamento possivelmente levarão a uma ampliação do tempo necessário à etapa preliminar da licitação, particularmente no nível municipal, onde a estrutura de trabalho para planejamento e o nível de formação e atualização dos agentes públicos tende a ser menor.
Apesar desse aspecto, a primazia conferida à estruturação dos instrumentos de planejamento – em especial, os estudos preliminares e a estimativa de despesa – induzirão maior aproximação e diálogo com o mercado, o que poderá implicar a mudança de perspectiva quanto às licitações, menos jurídico-formal e mais econômica, passando as contratações públicas a serem compreendidas como meio de negócio e o mercado como parceiro.
Em termos gerais, a novel norma atinge dois intentos claros: consolidar em uma única lei os normativos esparsos sobre contratações, buscando uma sistematicidade orgânica dos procedimentos, e positivar diversos entendimentos do TCU sobre a temática de licitações e contratos administrativos.
Em tal perspectiva (de certa forma, restringindo autonomia normativa e de gestão dos demais entes federativos), busca-se uniformização e a redução da litigiosidade – administrativa e judicial – em torno de disposições controversas, que, em geral, versam sobre requisitos de proposta e habilitação e alterações supervenientes nos contratos administrativos.
2.3.1. Tentativa de indicação não exaustiva de normas gerais e normas específicas na Lei nº 14.133/2021
Com esteio na jurisprudência do STF e na manifestação contida em estudos especializados ainda sob a égide da Lei nº 8.666/1993, dúvida não há de que a despeito da redação do caput do seu art. 1º, a Lei nº 14.133/2021 dispõe não só sobre “normas gerais”, em atendimento ao art. 22, XXVII, da CF, mas, também, sobre “normas específicas”, sendo estas aplicáveis apenas no âmbito da Administração Pública federal.
Em sendo claro tal ponto, há que se aprofundar na análise dos dispositivos da NLL no intento de apresentar um esboço de mapeamento que delimite com a maior clareza possível as normas de caráter específico para, desse modo, evidenciar o espaço de criação normativa a ser ocupada pelos Estados e pelos Municípios quando do disciplinamento dos procedimentos normativos realizados pelas suas respectivas entidades administrativas.
O QUE SERIA “NORMA GERAL” NA LEI Nº 14.133/2021? princípios e as diretrizes gerais estabelecidas nos arts. 1º a 5º e 11; definição das modalidades de licitação, tendo em vista expressa previsão no inciso XXVII do art. 22 da CF; estabelecimento dos tipos de licitação (critérios de julgamento) no art. 33; critérios de preferência e de tratamento diferenciado prevista no art. 60[10]; requisitos máximos de habilitação fixadas nos arts. 66 a 69[11]; garantia de qualquer cidadão em impugnar o ato convocatório e solicitar esclarecimentos (art. 164); previsão dos atos decisórios passíveis de interposição de recurso administrativo contida no inciso I do art. 165; prazos mínimos para a interposição dos recursos[12]; taxatividade dos casos de dispensa de licitação (art. 75). |
A seu turno, os pormenores atinentes à regulamentação dos procedimentos licitatórios, desde que preservem os princípios, as diretrizes, a estrutura substancial do procedimento e o núcleo essencial dos requisitos de participação e direitos dos licitantes estabelecidos na Lei nº 14.133/2021 poderão ser normatizados de maneira específica pelos Estados, Distrito Federal e Municípios naquilo que lhes for peculiar:
- definição de prazos e requisitos adicionais de publicidade dos editais e contratos;
- iter procedimental relativo à ordem de realização das etapas da licitação;
- forma e prazos de interposição dos recursos administrativos, desde que respeitados os limites mínimos traçados pelo art. 165 da NLL;
- procedimento e condições para alienação dos bens pertencentes à Administração dos Estados, DF e Municípios (arts. 76 e 77);
- regulamentação sobre registros cadastrais e catálogos de padronização;
- regulamentação acerca dos procedimentos auxiliares.
2.3.1.1. Requisitos do art. 7º e 8º da Lei nº 14.133/2021: norma geral ou específica?
A NLL dedica um capítulo próprio aos agentes públicos (Capítulo IV do Título I), estabelecendo, no art. 7º, requisitos gerais a serem observados na designação dos “agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei“.
Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:
I – sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública;
II – tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público; e
III – não sejam cônjuge ou companheiro de licitantes ou contratados habituais da Administração nem tenham com eles vínculo de parentesco, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, ou de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista e civil.
Portanto, está o art. 7º a tratar, de forma genérica, dos agentes públicos que irão atuar nos procedimentos administrativos de contratação, em todas as suas fases: preparatória, externa e contratual. E, consoante expressa previsão do §2º do mesmo art. 7º, tais requisitos gerais de designação dos agentes públicos também se aplicam aos servidores integrantes dos “órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração”.
Especificamente quanto ao inciso I do art. 7º, salienta-se que a Lei nº 14.133/2021 mantém a atecnia observada no caput do art. 51 da Lei nº 8.666/1993, porquanto o atributo da “efetividade” está relacionado à forma de provimento do cargo público[13] e não ao servidor propriamente dito. Todo cargo público (seja de provimento efetivo, seja de provimento comissionado) compõe o quadro funcional dos órgãos e entidades, conforme a lei que os institui. Por ser criado por lei (ato normativo primário), em realidade, o cargo em si – e não o servidor – integra o quadro permanente do órgão ou da entidade. Com efeito, a redação mais aderente à estrutura constitucional dos cargos e empregos públicos, tanto para o inciso I do art. 7º quanto para o caput do art. 8º, seria: “servidor ocupante de cargo de provimento efetivo”.
Além dos requisitos gerais fixados nos incisos I a III do art. 7º, o caput do art. 8º estabelece uma exigência adicional para a designação do “agente de contratação”: ser servidor efetivo[14].
Apresentados os requisitos “subjetivos” condicionantes à designação dos agentes públicos, é preciso questionar: o caput do art. 7º e o caput do art. 8º da NLL possuem envergadura de norma geral ou de norma específica?
Por versar sobre matéria correlata à organização interna de pessoal e gestão administrativa dos entes federados, além de não integrar, substancialmente, a compreensão do “processo de licitação pública” propriamente dito – conforme dicção do art. 37, XXI, da CRFB -, em nossa opinião, tais requisitos, em especial quanto ao caráter efetivo do provimento do servidor, tratar-se-iam de norma específica, sendo aplicável, de antemão, apenas no âmbito da União, admitindo-se, por conseguinte, previsão distinta na legislação de Estados e Municípios[15].
Nesse sentido, vale transcrever contundente opinião do mestre Adilson Abreu Dallari ao tecer comentários sobre alguns dispositivos da Lei nº 14.133/2021:
Os Arts. 7º a 10 dispõem sobre agentes públicos, que não é, exatamente, matéria de licitação, mas, sim, de organização administrativa, descendo a detalhes, tais como o agente de contratação, a comissão de contratação e a gestão por competências, que, certamente, serão de difícil aplicação em alguns Estados e na maioria dos Municípios. De resto, podem configurar inconstitucionalidade, na medida em que, ao estabelecer impedimentos e obrigações para agentes públicos, afetam a autonomia administrativa das unidades da federação.[16]
[grifou-se]
Talvez o que se pode extrair do caput do art. 8º da NLL como “norma geral” seja a regra da condução unipessoal dos processos licitatórios, consagrando o modelo de sucesso adotado no pregão (art. 3º, IV, da Lei nº 10.520/2002). Fora isso, os requisitos subjetivos que o próprio servidor deveria ostentar não estão compreendidos na substância procedimental das contratações públicas.
De acordo com a expressão utilizada no art. 22, XVII, da CRFB, a União possui competência para editar “normas gerais de licitação e contratação”, o que não pode abarcar, necessariamente, todos os aspectos acessórios e indiretos envolvendo a dinâmica do processo de contratação, chegando, inclusive, a afetar questões internas de organização administrativa de todos os órgãos e entidades.
Logo, sob a ótica constitucional, não se pode
compreender os requisitos do art. 7º e do art. 8º da NLL como de caráter
“geral”, sob pena de sufocamento legislativo dos Estados e Municípios e,
consequentemente, da mitigação da autonomia administrativa de tais entes
federados.
[1] Voto do Ministro Ayres Britto na ADI nº 3.059/RS. Tribunal Pleno. Rel. p/ acórdão: Min. Luiz Fux. Julgado em 09/04/2015. Publicado em DJe 08/05/2015.
[2] apud CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 56.
[3] Nesse sentido, vide o tópico “Sistematização dos entendimentos doutrinários” na obra de CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 57-58.
[4] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, v. 25, n.100, p. 127-162, out./dez. 1988.
[5] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, v. 25, n.100, p. 127-162, out./dez. 1988.
[6] ADI 4.060/SC. Tribunal Pleno. Rel. Ministro Luiz Fux. Julgado em 25/02/2015. Publicado em DJe 04/05/2015.
[7] ADI 927 (MC)/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. J. em 03/11/1993, p. em DJ 11/11/1994, p. 30.635.
[8] apud CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli. Das normas gerais: alcance e extensão da competência legislativa concorrente. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
[9] O tópico foi desenvolvido a partir de artigo escrito em co-autoria com Luiz Fernando Bandeira de Mello: MELLO, Luiz Fernando Bandeira de; AMORIM, Victor. O que esperar da nova lei de licitações. Migalhas, mar. 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/342592/o-que-esperar-da-nova-lei-de-licitacoes>
[10] No que tange aos critérios de preferência e de tratamento diferenciado em sede de licitações e contratos, por envolverem uma perspectiva de ponderação do legislador federal face ao princípio da isonomia e o objetivo do desenvolvimento nacional sustentável, os Estados e Municípios deverão se ater às hipóteses previstas no art. 60 da NLL, sendo-lhes vedado instituir “novas” hipóteses de preferência que afetam diretamente o procedimento de julgamento e apreciação das propostas.
[11] Como a fixação das condições de habilitação estão necessariamente relacionadas com os contornos estabelecidos pelo legislador federal a respeito do princípio da ampla participação em sede de licitações públicas, entende-se que é vedado aos Estados e Municípios fixar requisitos abstratos que potencializem a dificuldade de participação nos certames, restringindo, assim, a competição. Será, todavia, admissível que a legislação estadual ou municipal apenas discrimine de maneira mais precisa do rol dos arts. 66 a 69 da NLL, instituindo detalhes quanto à forma de apresentação dos documentos ali relacionados, desde que não impliquem em ampliação indireta das restrições ora constantes do Estatuto Federal de Licitações.
[12] É clarividente que a fixação dos prazos não poderá ser de tal forma que desvirtue ou esvazie o núcleo essencial do direito de petição, de modo que as condições materiais de defesa do licitante sejam praticamente inviabilizadas pelo exíguo prazo recursal ora previsto. Com esteio de tais considerações, pode-se concluir que os Estados e Municípios poderão fixar prazos de recursos diferentes daqueles previstos no art. 165 da NLL, desde que, no mínimo, respeitem os prazos então fixados na referida norma.
[13] De acordo com o inciso II do art. 37 da Constituição da República, o provimento, em caráter efetivo, se dá mediante aprovação prévia em concurso público. Por sua vez, o provimento, em caráter comissionado, é precário e baseia-se em critério discricionário da autoridade competente, sendo de “livre nomeação e exoneração”.
[14] Nos termos do art. 176, I, da NLL, a observância dos requisitos do art. 7º e do caput do art. 8º, somente será exigida para os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitante após o transcurso do prazo de 6 (seis) anos da publicação da Lei nº 14.133/2021, ou seja, somente a partir de 1º de abril de 2027.
[15] Em igual sentido, é o entendimento de Ronny Charles Lopes de Torres: “ao ultrapassar a condição de diretriz, orientando pela preferência, o artigo 8º define uma regra cogente, que impõe submissão. Com essa característica, tal disciplinamento claramente se reveste da condição de norma materialmente específica, não vinculando Estados, Municípios e o Distrito Federal, mas apenas órgãos e entidades federais” (in Leis de Licitações Públicas comentadas. 12 ed. Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 105).
[16] DALLARI, Adilson Abreu. Análise crítica das licitações na Lei 14.133/21. Consultor Jurídico, abr. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-29/interesse-publico-analise-critica-licitacoes-lei-1413321>.
Excelente abordagem. Veremos como a jurisprudência, sobretudo os Tribunais de Contas, irá se posicionar a respeito dos artigos 7º e 8º da NLLC.