I – Introdução
A nova Lei de Licitações e Contratos foi editada com fundamento na competência contida no art. 22, inc. XXVII da CF, informando logo em seu art. 1º que contém “normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”1 Contudo, no mundo dos fatos, o dispositivo tem exigido de intérpretes e operadores muito mais do que seu enunciado supõe.
Uma relevante discussão tem sido revisitada, encorajada pela envergadura do novo texto legal e pela indiscutível importância das contratações públicas para incentivar a inovação e buscar o desenvolvimento nacional sustentável: trata-se de investigar, nas diversas situações concretas vivenciadas no cotidiano da Administração Pública, qual seria o espaço para a atuação legislativa subsidiária de Estados e Municípios, assim como para o exercício de sua função regulamentadora. A questão se torna ainda mais complexa diante de uma lei que se pretende nacional, mas que contém regras extraídas de regulamentos e instruções normativas federais e de decisões do Tribunal de Contas da União.
Nesse contexto, duas questões principais têm sido objeto de atenção atual: a) quais normas, dentre os atuais 194 artigos da Lei nº 14.133/21, devem ser seguidas irrestritamente por todos os entes federativos por terem natureza geral, e quais normas poderiam não ser seguidas, em razão de sua natureza especial? e b) no espaço para regulamentação infralegal criado pela nova lei, expressa ou implicitamente, quais seriam os campos próprios para a atuação normativa de Estados e Municípios diante de um texto casuístico, meticuloso e pormenorizado?
O dilema da distinção entre normas gerais e especiais é – na prática – complexo e antigo. A flacidez propositada dos conceitos envolvidos impossibilita a fixação de padrões definitivos, o que torna a tarefa da classificação suscetível a pontos de vista distintos, dependentes de variáveis pessoa-espaço-tempo.2 No tocante à nova Lei de Licitações e Contratos, nem mesmo no que se refere a matérias já apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal envolvendo a aplicabilidade da Lei nº 8.666/93 parece ser seguro antecipar diagnósticos.3
A preocupação se justifica diante da evidente necessidade de uma Lei Geral que não somente alcance, mas atenda a todos os entes federativos, mudando o status quo vigente em relação a dificuldades de implementação de normas dissociadas de certas realidades e permitindo a possibilidade de tratamentos distintos, quando for o caso. Nesta esteira, o caráter minudente da Lei 14.133/21 – que, ao par de compilar disposições contidas em leis esparsas, incorporou decretos e instruções normativas federais, práticas adotadas pela Administração Pública Federal e entendimentos do Tribunal de Contas da União – não somente pode alterar a percepção primária dos comandos gerais nela contidos, como aparentemente eliminou alguns espaços antes ocupados, ou passíveis de sê-lo, pelos regulamentos executivos, causando confusão quanto às matérias que comportam regulamentação pelos entes federativos.
A lógica da nova Lei no tocante à questão central tratada neste estudo é clara: induzir comportamentos considerados modelos ou práticas consideradas evolutivas, pautadas na experiência da Administração Pública Federal, expandindo as consequências positivas para a eficiência e a eficácia das contratações dos demais entes, e a construção de um ambiente de contratações públicas uniforme, em diversos aspectos, diante dos potenciais benefícios econômicos que isso pode acarretar. De fato, não há certeza quanto ao real espaço para a “criatividade útil” em sede de competência suplementar, não sendo equivocado pensar que as normas da Lei 14.133/21 podem, afinal, espelhar boas ou ideais soluções. Contudo, para evitar os efeitos perversos das regras materialmente inaplicáveis, do formalismo burocrático, da insegurança jurídica e do controle centrado em meios, é fundamental que se busque clarear o espectro da atuação legislativa e regulamentar compatível com os limites da autonomia federativa.
II – A competência legislativa e a competência normativa
O propósito deste trabalho não contempla aprofundar a discussão acadêmica dos conceitos de norma geral e norma especial, sobre os quais a doutrina já se dedicou longamente. Tradicionalmente, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, costuma-se caracterizar a norma geral como aquela em que:
“em princípio, o nível de abstração é maior, a disciplina estabelecida é menos pormenorizada, prevalecendo a estatuição de coordenadas, de rumos reguladores básicos e sem fechar espaço para ulteriores especificações, detalhamentos e acréscimos a serem feitos por leis que se revestem da ‘generalidade comum’ ou quando menos nelas é reconhecível uma peculiaridade singularizadora em contraste com as demais”4.
Importante encarar a distinção entre normas gerais e especiais tendo presente sua utilização enquanto técnica de repartição de competências no Estado Federal. Desta forma, normas gerais serão aquelas que devem ser uniformes em razão de sua importância para a unidade do Estado Federal, não se restringindo ao âmbito específico de determinada pessoa política, mas sendo aplicáveis igualmente a todas – União, Estados, distrito Federal e Municípios5. Desta forma, no dizer de Alice Gonzalez Borges, “são normas gerais aquelas que, por alguma razão, convém ao interesse público sejam tratadas por igual, entre todas as ordens da Federação, para que sejam devidamente instrumentalizados e viabilizados os princípios constitucionais com que têm pertinência. A bem da ordem harmônica que deve manter coesos os entes federados, evitam-se, desse modo, atritos, colidências, discriminações, de possível e fácil ocorrência”6.
A correta compreensão do espaço normativo constitucionalmente delineado para as normas gerais é essencial para identificar, de igual forma, o espaço para o exercício da competência suplementar por parte dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Diogo de Figueiredo Moreira Neto conclui:
“Chegamos, assim, em síntese, a que normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estados-membros na feitura das suas respectivas legislações através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos.” 7
Em se tratando de técnica de repartição de competências no Estado Federal, devem ser consideradas como gerais as normas cujo tratamento jurídico uniforme seja essencial para manter o pacto federativo, o equânime tratamento entre os cidadãos nacionais e o alcance dos objetivos da República. A competência legislativa para edição de normas específicas, é possível perceber, é identificada a partir da delimitação do quadro ocupado pelas normas gerais. Trata-se de competência legislativa suplementar, com fundamento na repartição constitucional de competências entre os entes da Federação.
A competência normativa, geralmente tratada como competência regulamentar, possui características e regime jurídico diferentes. O constitucionalismo contemporâneo não somente admite como exige, por razões diversas, que o Executivo dite normas infralegais – o fundamento da competência normativa é a Constituição, que deve discipliná-lo em todos seus aspectos. A justificativa atual para o reconhecimento de competência normativa ao Executivo não se limita à reconhecida necessidade de assegurar a correta e equânime execução das leis, mediante procedimentos e determinações dirigidas aos agentes que irão executá-la: com efeito, se reconhece também a necessidade ativa do Estado de agir, utilizando-se de diversos mecanismos além das leis, para atender às exigências contempladas na Constituição8.
Importante perceber que a competência normativa não se limita ao regulamento editado pelo Chefe do Executivo, com fundamento explícito no artigo 84, VI da Constituição da República. Nesse sentido, ainda quando a competência normativa não esteja expressamente determinada na norma, é possível deduzi-la recorrendo a uma interpretação finalística ou sistemática da mesma. O reconhecimento de competências normativas implícitas possui ligação com o princípio da segurança jurídica: por meio do exercício dessa competência é possível antecipar a interpretação da Administração para determinados dispositivos e, desta forma, prevenir efeitos de atos ou condutas eventualmente contrárias ao entendimento adotado. É possível também reconhecer a importância do exercício da competência normativa para balizamento da discricionariedade, sobretudo diante da importância de expedir comandos e orientações para o equânime cumprimento das disposições legais.
Fieis aos propósitos do presente estudo, podemos destacar três competências normativas implícitas que não se identificam com a competência regulamentar: precisão do conteúdo de princípios; operacionalização de direitos fundamentais e estabelecimento de normas de organização e procedimento. A última das hipóteses possui maior correlação com as diversas atividades da Administração no ciclo da contratação pública: trata-se de reconhecer a possibilidade de editar atos normativos de organização de entidades, órgãos e agentes (respeitando o campo constitucionalmente delineado pela reserva legal) e de procedimentos para o exercício de competências (sem com isso criar obrigações ou gerar direitos).
Sob essa visão, importante ressaltar que a competência normativa está estritamente ligada ao alcance de objetivos constitucionais, possuindo natureza instrumental. Para evitar que a adoção da técnica das competências implícitas signifique adesão à máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”, é também sumamente importante assegurar seu exercício rigidamente subordinado aos princípios e valores constitucionais. Também não custa ressaltar que tais competências devem profundo respeito aos princípios da reserva legal e da preferência da lei9.
Desta forma, é possível reconhecer a possibilidade de editar atos normativos infralegais independente de previsão legal expressa quando o desempenho da competência administrativa envolver organização e procedimento. Os respectivos atos normativos serão colocados em diversos graus hierárquicos, de acordo com o posicionamento da entidade ou órgão emissor, suas competências e também da densidade do ato editado. Exemplificativamente, é possível reconhecer não somente a possibilidade da edição de decreto administrativo por parte do Prefeito, orientando o cumprimento da Lei para toda a Administração Municipal, como também de outros atos normativos setoriais editados por secretarias e entidades da administração indireta, cujos efeitos ficarão restritos ao respectivo âmbito de competência.
IV – Em busca de uma racionalidade objetiva para a distinção entre normas gerais e especiais no âmbito da Lei 14.133/21
Conforme tradicionalmente se compreende, a norma geral é aquela com maior nível de abstração e menor detalhamento. Tal característica, a rigor, é o que garante sua aplicabilidade a todo e qualquer destinatário, indistintamente, ao mesmo tempo em que são respeitados os limites da autonomia federativa. A norma geral traz uniformidade nacional acerca de determinado assunto, a ser observado na edição de normas específicas aplicáveis às diversas situações, nos diferentes âmbitos políticos, razão pela qual somente a União possui competência para editá-la.
A regra constante no art. 1º materializa a pretensão legislativa de que a Lei 14.133/21 é inteiramente composta por normas gerais, sendo sua aplicação integralmente cogente para todos os entes federativos. Contudo, análise atenta permite concluir que grande parte das disposições da nova lei não tem afinidade com qualquer concepção de norma geral. Não é demais advertir que o eventual fato de tais normas serem voluntariamente acolhidas sem reservas por destinatários dos entes subnacionais (Estados, Distrito Federal e Municípios) não as torna gerais.
Além das normas que se referem à abrangência, princípios e objetivos, são gerais as normas da Lei 14.133/21 que integram o núcleo essencial do novo regime jurídico das contratações públicas. Desta forma, são normas gerais por excelência os pilares estruturantes que dão a tônica do novo sistema e que, por isso mesmo, devem ser uniformes, não comportando variações ou adaptações para que sejam aplicadas em todos os entes da Federação. Integram esse rol, por exemplo: as normas que definem e caracterizam as modalidades de licitação, os critérios de julgamento, as regras para desclassificação de propostas, os documentos de habilitação, as hipóteses de contratação direta, normas que materializam o direito à ampla defesa e contraditório, direito a esclarecimentos, impugnações e recurso; que criam os procedimentos auxiliares da licitação e da contratação; que delimitam as restrições e vedações à participação na licitação ou contratação e as fases do processo de contratação; que regulam o orçamento sigiloso, o conteúdo mínimo do edital e a forma de sua divulgação; que fixam as prerrogativas contratuais, as hipóteses de extinção contratual, as espécies de sanções, as regras de controle da contratação; que dispõe sobre a formalização do contrato e o conteúdo mínimo do termo de contrato, sobre o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, as garantias, a vigência, os deveres e as responsabilidades legais das partes contratantes e a possibilidade de alteração. São normas gerais, igualmente, aquelas voltadas para o alcance dos objetivos do art. 11, tal como a obrigatoriedade de as organizações em geral implementarem processos e estruturas de governança e programas de integridade (ainda que a organização, os processos e estruturas desses programas possam ser disciplinadas em normas suplementares). Da mesma forma, a utilização do Portal Nacional de Contratações Públicas – PNCP será cogente para todos os entes federativos, porque vinculada aos objetivos de transparência e controle inerentes ao novo regime.10
As dificuldades se apresentam na medida em que, conforme já referido, a Lei passa a tratar de minúcias, criando regras detalhadas e específicas, forçando o intérprete a lançar mão de outros critérios distintivos. Essa problemática envolve, basicamente, duas questões: como devem ser classificadas as normas que nasceram de decretos federais ou instruções normativas federais e foram incorporadas pela nova Lei? Toda e qualquer norma que entre em detalhes no tratamento da matéria deve ser considerada especial?
Rigorosamente, normas criadas por meio de decreto ou instrução normativa não deveriam conter as características necessárias às normas gerais, pois o objetivo de tais atos normativos é dar execução às leis e operacionalizar procedimentos. Ainda que no campo das especulações se possa imaginar que eventual instrução normativa ou decreto anterior à lei tenha tratado de assunto que originalmente se enquadraria como norma geral (e que, portanto, poderia estar no texto da lei nacional), a observação dos atos normativos federais anteriores cujos conteúdos, em linhas gerais, foram contemplados na nova lei, não permite tal conclusão. Desta forma, é natural interpretar que quando a Lei 14.133/21 absorveu algumas dessas normas, o fez na forma de norma federal, não nacional.
O mesmo pode ser dito com relação a outros dispositivos que tratam de forma minudente de determinada matéria, preenchendo possíveis espaços de regulamentação e assumindo a aparência de normas especiais. Contudo, na prática, tais normas podem ser gerais ou especiais, a depender do seu conteúdo. Será geral a norma cujo detalhamento se referir a elementos inerentes ao núcleo essencial de dado instituto11 regulado na mesma norma. Assim, por exemplo, quando o §5º do art. 82 da Lei 14.133/21 estabelece que o sistema de registro de preços poderá ser usado para a contratação de bens e serviços, inclusive de obras e serviços de engenharia, desde que observadas algumas condições, o detalhamento se presta a desenhar as situações em que o referido procedimento auxiliar tem cabimento, tal e qual o faz em relação às modalidades de licitação. Isso já não se passa com o art. 84, que estabelece que o prazo de vigência da ata será de um ano, podendo ser prorrogado por igual período. Tal especificidade não é essencial à fixação das características elementares do instituto do sistema de registro de preços.
De outro lado, normas cujo detalhamento se refiram a prazos internos, ao desenho de procedimentos que dependem de dadas estruturas administrativas e recursos humanos específicos ou que, sem prejuízo dos objetivos a serem alcançados, comportam variação, assim como normas que especifiquem competências para a prática de atos no processo de contratação ou relativos a ele, tendem a ser especiais. São conteúdos atrelados à autonomia organizacional, típicos de atos normativos próprios. Assim se passa, por exemplo, com o art. 18, que trata do processamento da etapa preparatória da licitação, cujos objetivos podem ser alcançados sem, necessariamente, impor-se a construção dos artefatos tal e qual descrito na Lei; com o §1º do art. 7º, que trata da aplicação do princípio da segregação de funções na designação de agentes do processo de contratação, diretamente relacionados a uma avaliação de riscos condizente com a realidade da organização12, mediante estudo das diversas competências para identificar, concretamente, as atividades que não podem ser desempenhadas por um mesmo agente13; com o art. 8º, que restringe a designação, como agente de contratação ou pregoeiro, de servidor efetivo ou empregado do quadro permanente, a despeito das diferentes realidades e da análise de eficácia da outra solução em cada caso concreto; com, novamente, o art. 8º, que fixa as competências do agente de contratação, as quais devem ser entendidas como máximas, cabendo ao estado ou município o cuidado de não as extravasarem, mas sendo-lhe possível fixar restrições, de acordo com a realidade que melhor possibilite o alcance dos objetivos.14
V – A presunção relativa da classificação como norma geral e a possibilidade de reclassificação como norma especial
A Lei 14.133/21 foi editada com a pretensão de conter normas gerais. Portanto, a presunção relativa é a de que todas as normas são gerais, permitindo-se, como regra, a Estados e Municípios apenas a edição de normas suplementares não colidentes. Contudo, conforme já mencionado, não há como ignorar a existência, no seu texto, de normas específicas e minudentes cujo detalhamento não se coaduna com as características da generalidade, por adentrar em aspectos materialmente incompatíveis.
Assim, as normas que trazem consigo tais características comportam interpretação como normas federais, cabendo aos Estados, ao Distrito Federal aos Municípios a competência legislativa suplementar para regular as matérias nelas versadas – por meio de lei própria ou de regulamento, conforme o caso – ainda que se resguarde ao ente a opção de, voluntariamente, aderir à aplicação das normas federais.
Nesse sentido, o art. 187 da nova lei estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para a sua execução. A norma, rigorosamente, não era necessária, mas pode eliminar possíveis dúvidas jurídicas – caberá aos referidos entes analisarem a conveniência e a oportunidade desta opção. A expressão “aplicar os regulamentos” parece dispensar, inclusive, a edição de norma estadual, distrital ou municipal ipsis litteris ao regulamento federal, possibilitando, simplesmente, que o regulamento federal seja formalmente “recebido”, numa espécie de “adesão” pelos demais entes federativos, caso não haja necessidade de modificação de seus termos para adequações. A decisão de seguir as mesmas regras editadas pela União deve ser tomada, em nossos ver, mediante prévia análise jurídica, acolhida de forma motivada pelo Chefe do Poder Executivo, que editará, então, norma nesse sentido ou, a seu critério, regulamento contendo o mesmo conteúdo do regulamento federal.
Em suma, em interpretação conforme a Constituição de 1988, a norma editada pela União que induz ou obriga, indistintamente, a todos os entes federativos é, necessariamente, aquela que não interfere nas questões relativas à sua autonomia. Assim, a reclassificação de uma norma geral em especial poderá ocorrer quando, na avaliação fundada do ente federativo, a norma, pela especificidade do tratamento dispensado à matéria, estiver interferindo no seu poder de auto-organização e adentrando em seara que lhe afete a aplicabilidade concreta, com prejuízo ao alcance de objetivos legítimos às contratações públicas ou por meio delas.15
IV – Conclusões
A discussão sobre normas gerais e especiais em matéria de licitações e contratos, na prática, é de suma importância. Por mais que saibamos que a maioria dos entes não editará leis suplementares por razões outras que não as indefinições de competência e que sejamos tentados ao pragmatismo – colocando na conta do Poder Judiciário as análises concretas – parece-nos fundamental manter aceso o debate, contribuindo não apenas para a saúde do regime federativo, como também para a evolução das normas sobre compras públicas para além do ponto de vista da União.
É constitucionalmente garantido aos entes federativos a realização de suas próprias análises fundadas sobre a natureza das normas contidas na Lei nº 14.133/21 e, caso pretenderem dispor diversamente, editarem as respectivas leis, sujeitas ao controle concentrado por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs. No intuito de auxiliar nesta complexa tarefa, alguns critérios distintivos foram sugeridos ao longo deste trabalho, assim como a indicação das normas que, em nossa avaliação, são gerais e especiais.
Em relação à edição dos regulamentos para a plena eficácia da Lei nº 14.133/21, nada impede que Estados, Distrito Federal e Municípios permaneçam, voluntariamente, abrigados nas regras editadas pela União. Porém, é fundamental compreender que, elaboradas com vistas à realidade federal por equipes altamente qualificadas, podem conter normas incompatíveis com a simplicidade das pequenas estruturas e com as necessidades locais, gerando impasses práticos insolúveis. A decisão, portanto, deve resultar de cuidadoso crivo e, preferencialmente, estar amparada por uma análise jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ATALIBA, Geraldo. Normas Gerais na Constituição – Leis Nacionais, Leis Federais e seu Regime Jurídico. Estudos e Pareceres de Direito Tributário, vol. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 13, nº 66, mar/abr 2011.
BORGES, Alice Gonzalez. Normas gerais no estatuto de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.
CASTELLO, Melissa. Nova Lei de Licitações é mesmo toda composta por normas gerais? Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/tribuna-da-advocacia-publica/nova-lei-de-licitacoes-e-mesmo-toda-composta-por-normas-gerais-17042021. Acesso em 04.5.2021.
GUIMARÃES, Edgar. Nova Lei de Licitações e Contratação Pública, a hora e a vez de estados e municípios. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/342603/nova-lei-de-licitacao-e-contratacao-publica-a-hora-e-a-vez-de-estados. Acesso em 04.5.2021.
MOREIRA, Egon Bockmann. Por uma nova compreensão das “normas gerais de licitação”. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/por-uma-nova-compreensao-das-normas-gerais-de-licitacao-04052021. Acesso em 04.5.2021.
MOTTA, Fabrício. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Normas gerais no estatuto de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
1Abrange os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa, e os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública. A nova Lei não se destina a regular as contratações de empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias. As entidades do Sistema S, que possuem legislação própria e subordinam-se aos princípios que regem as contratações públicas, deverão atentar para os novos princípios incluídos no art. 5º. As entidades de apoio, OSs e OSCIPs, deverão continuar observando regras específicas quando utilizarem recursos públicos, as quais, provavelmente, serão readequadas à nova lei.
2 Por ocasião das discussões suscitadas em face da Lei 14.133/21, Egon Bockmann Moreira sustenta não fazer sentido, em tempos atuais, bloquear a competência legislativa da União, cabendo inverter a lógica pretérita para que todos os dispositivos da Lei 14.133/21 sejam considerados, a priori, normas gerais, numa simplificação do critério classificatório. Seriam normas gerais, portanto, todas aquelas destinadas à observância dos entes federativos, indistintamente. (MOREIRA, Egon Bockmann. Por uma nova compreensão das normas gerais. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/por-uma-nova-compreensao-das-normas-gerais-de-licitacao-04052021).
3 Como bem pontuado por Melissa Castelo, “uma maior integração sistêmica entre os entes da Federação, estimulada pelo uso intenso de tecnologia da informação, levou naturalmente a uma maior uniformidade de procedimentos” e as últimas decisões do STF podem indicar uma tendência “à ampliação da competência da União”, já que, após a paradigmática decisão da Medida Cautelar na ADI 927, em 1993, decidiu-se, por duas vezes, favoravelmente à classificação como norma geral em situações que comportavam outra interpretação. (CASTELLO, Melissa Guimarães. Nova Lei de Licitações é mesmo toda composta por normas gerais? Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/tribuna-da-advocacia-publica/nova-lei-de-licitacoes-e-mesmo-toda-composta-por-normas-gerais-17042021).
4BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 13, n. 66, mar./abr. 2011.
5ATALIBA, Geraldo. Normas Gerais na Constituição – Leis Nacionais, Leis Federais e seu Regime Jurídico. Estudos e Pareceres de Direito Tributário, vol. 3, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
6BORGES, Alice Gonzalez. Normas gerais no estatuto de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.
7NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Normas gerais no estatuto de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
8 MOTTA, Fabrício. Função normativa na Constituição de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
9 O princípio da reserva legal determina ser a lei a única via normativa competente para regular dado assunto. Quanto à preferência da lei, é possível reconhecer, sinteticamente, “as seguintes dimensões do princípio: a) a lei é o ato estatal juridicamente mais forte e hierarquicamente melhor posicionado, prevalecendo, em princípio, sobre todos os outros atos do Estado, à exceção das normas constitucionais; b) os atos do Executivo, em regra, encontram-se sujeitos à lei, previamente e posteriormente; c) não existem, em princípio, limites materiais à lei – qualquer matéria pode ser objeto de sua regulação”. (MOTTA, 2007, op.cit).
10 Adverte-se que entender as normas sobre o PNCP como gerais não possui relação com a discussão sobre estar ou não a eficácia da nova lei condicionada à sua efetiva implementação.
11Foi essa a linha de raciocínio que embasou a decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso pela inconstitucionalidade da atualização, por estados e municípios, dos limites para a dispensa em razão do valor. A União teria exercido de forma plena a sua competência legislativa ao estabelecer os limites, nada restando à competência residual. Portanto, o limite de valor fixado para a dispensa de licitação é da própria essência da hipótese legal (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 460/2016, julgada em 24 de janeiro de 2019)
12“Dessa forma, não se trata simplesmente de verificar todas as competências incluídas na fase preparatória da contratação pública (artigo 18 da Lei 14.133/21) e atribuí-las a agentes distintos. É necessário verificar quais dessas competências não podem ser exercidas por um mesmo agente em razão dos riscos de ocultação de erros, conflito de interesses e ocorrência de fraudes — em não existindo tal risco, em razão das características das competências e da sequência de etapas do procedimento, nada obsta a possibilidade de que o mesmo agente atue em distintas atribuições.” (MOTTA, Fabrício. Segregação de funções nas licitações e contratos. Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2021.Disponível emhttps://www.conjur.com.br/2021-mai-06/interesse-publico-segregacao-funcoes-licitacoes-contratos).
13“Essa identificação é especialmente importante para as pequenas estruturas administrativas, que contam com número reduzido de servidores. Ainda assim, segregar não significa isolar — é preciso conhecimento e comunicação entre os diversos setores para considerar a contratação pública como um ciclo voltado ao atendimento de necessidades públicas” (MOTTA, Fabrício. Segregação de funções nas licitações e contratos. Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2021.Disponível emhttps://www.conjur.com.br/2021-mai-06/interesse-publico-segregacao-funcoes-licitacoes-contratos).
14 A propósito do tema, o §3º deixa ao critério do respectivo regulamento as regras relativas à atuação desses agentes. É fundamental destacar que os impedimentos fixados no inc. III e §2º do art. 7º da Lei 14.133/21 são, em nosso, entender, normas gerais, assim como as vedações estabelecidas no seu art. 9º.
15Esta perspectiva de análise se aplica, inclusive, à identificação dos limites à regulamentação das disposições da Lei 14.133/21 que estão a conter a eficácia plena das respectivas disposições legais, tais como: atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos (art. 8º, §3º); elaboração de plano anual de contratações (art. 12, VII); centralização de compras, catálogo eletrônico de padronização, sistema informatizado de acompanhamento de obras, modelos de minutas (art. 19); enquadramento de bens de consumo em categorias comum e luxo (art. 20); implementação obrigatória de programa de integridade para os contratados de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto (art. 25, §4º); percentual de mão de obra na execução de contratos a ser constituído por mulheres vítimas de violência doméstica e oriundos ou egressos do sistema prisional; margem de preferência no processo de licitação (art. 26); procedimentos operacionais para o leilão (art. 31); custos indiretos e fatores vinculados ao ciclo de vida do objeto, para os fins de definição do menor dispêndio (art. 34, §1º); consideração do desempenho pretérito na execução de contratos com a Administração Pública para os fins de pontuação técnica (art. 36, §3º); contratações de soluções baseadas em software de uso disseminado (art. 43, §2º); desenvolvimento de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, para fins de desempate entre propostas (art. 60, III); negociação de preços na licitação (art. 62, § 2º); habilitação realizada por processo eletrônico de comunicação a distância (art. 65, §2º); provas alternativas para o fim de habilitação técnica (art. 67, §3º); recusa de atestados de responsabilidade técnica de profissionais que tenham dado causa à aplicação das sanções de impedimento e declaração de inidoneidade (art. 68, §12); dispensa de licitação para produtos para pesquisa e desenvolvimento para obras e serviços de engenharia (art. 75, §5º); concessão, por dispensa de licitação, de título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel a pessoa natural (art. 76, §3º, II); procedimentos auxiliares (art. 78, §1º); utilização do sistema de registro cadastral unificado disponível no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) (art. 87); realização de licitação restrita a fornecedores cadastrados (art. 87, §3º); cadastro de atesto de cumprimento de obrigações (art. 88, §4º); celebração de contratos e termos aditivos na forma eletrônica (art. 91, §3º); modelos de gestão de contratos (art. 92, XVIII); vedação, restrição ou condicionantes à subcontratação (art. 122, §2º); procedimentos e critérios para verificação das ocorrências que configuram motivos para a extinção do contrato (art. 137, §2º); prazos e métodos para a realização dos recebimentos provisório e definitivo (art. 140, §1º); remuneração variável (art.144, §1º); práticas de gestão de riscos e controle preventivo (art. 169, §1º); contratações realizadas por meio de sistema eletrônico privado, integrado ao PNCP (art. 175, §2º).
muito importante essa colocação para os entes federativos