Coautoria: James Batista Vieira
O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) está no centro das inovações trazidas pela nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC). Para muitos, o PNCP é somente uma ferramenta criada para dar cumprimento ao princípio da publicidade, sequer elevando-o ao princípio da transparência, ambos dispostos de forma expressa no art. 5º da NLLC. Porém, o PNCP pode e deve ser muito mais do que isso. É uma das principais iniciativas para superar a antiga visão legalista, procedimental e economicamente ineficiente, por uma nova visão gerencial, orientada para resultados, que promove os princípios da transparência (openness), integridade (integrity) e responsividade (accountability) típicos de uma boa governança pública.
Ao divulgar os planos, catálogos, editais, avisos, atas, contratos e demais atos administrativos relevantes, inclusive relatórios de desempenho, o PNCP cumpre um papel indiscutível de promoção da transparência pública, que é mais amplo inclusive que o dever de publicidade dos atos administrativos. Isso por que o princípio da publicidade exige que ato administrativo esteja visível ao público, enquanto que a transparência é responsável por disponibilizar informações de forma acessível (em qualquer lugar ou tempo), completa (na íntegra), ativa (sem necessidade de requerimento, processo ou autorização), útil (em formato de dados abertos) e eficiente (ao menor custo). Portanto, tal ferramenta é necessária para assegurar que as partes interessadas (stakeholders) tenham confiança no processo decisório governamental, na gestão das atividades das organizações públicas e nos agentes que operam dentro delas.
Com efeito, o PNCP contribui ainda para a promoção dos princípios da responsividade e da integridade na Administração Pública, pois o favorece o processo por meio do qual os agentes públicos podem ser responsabilizados por suas ações e omissões e cria uma estrutura que gera incentivos à honestidade e a observância de elevados padrões de probidade na gestão dos recursos públicos. Estes benefícios podem ser alcançados pelo PNCP porque a NLLC promove uma alteração na lógica jurídica, gerencial e econômica subjacente ao sistema de contratações públicas.
Sob a perspectiva legal, a NLLC está alinhada aos compromissos internacionais que o Brasil assumiu junto à Organização das Nações Unidas (por meio da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e outros tratados), a Iniciativa pelo Governo Aberto (Open Government Partnership – OGP) e as orientações da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (Organisation for Economic Co-operation and Development – OECD) que o país pleiteia o ingresso.
A NLLC integra o conjunto de reformas que visam melhorar o referencial normativo da governança pública que abarca a nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a Lei das Estatais, a Lei de Acesso à Informação, a Lei Anticorrupção, o Decreto da Governança Pública e outros. Todas essas normas apontam para uma nova interpretação do Direito Público brasileiro, centrado nas consequências das decisões judiciais, controladoras e administrativas. Ou seja, visam assegurar o alcance dos princípios e dos objetivos do Governo e da Administração Pública, livrando-os dos controles procedimentais desprovidos de valor público, aproximando-a da tão almejada eficiência.
Os processos de contratações públicas, que estão no centro do processo de implementação das políticas públicas, não poderiam passar incólumes a essa transformação promovida pela NLLC. A criação do PNCP, autorizada conforme o art. 174 da NLLC, dispõe, segundo os parágrafos § 2º e § 3º, de um rol não taxativo de informações e funcionalidades que autoriza os gestores públicos a inovar em busca de melhor desempenho nas contratações públicas. Aliás, a eficiência e eficácia são princípios expressos no art. 5 da NLLC que aí também menciona as disposições da LINDB.
Sob a perspectiva gerencial, o PNCP contribui para dar cumprimento às orientações do Tribunal de Contas da União que visam incorporar as boas práticas de governança corporativa nas organizações públicas brasileiras. Essas orientações estão inseridas no contexto internacional de promoção de uma nova gestão orientada para a governança pública, fundada na parceria entre os diversos setores do Estado (público, privado e social) para a geração de valor público. Nesse contexto, as práticas de gestão baseadas no controle procedimental são substituídas por uma gestão baseada no desempenho, além disso, são adotadas novas medidas que fortalecem a confiança e a parceria entre as partes interessadas. Por isso, as práticas que permitem a geração de valor público, como a gestão de risco, e a preservação de valor público, como os programas de integridade, são deliberadamente incorporadas às estruturas e processos de governança das contratações.
O principal benefício do PNCP não está no cumprimento de uma obrigação legal, funcionando como um mero substituto eletrônico do atual Diário Oficial, mas na utilização gerencial da ferramenta, que permite promover os princípios da transparência, da responsividade e da integridade e implementar um mecanismo de coordenação eficiente entre a Administração Pública, seus fornecedores e a sociedade civil. O PNCP é uma ferramenta de gestão das compras públicas e sua adequada implementação permitirá administrar melhor as informações sobre os processos (monitorar e avaliar), ampliar a competição (fortalecer a relação preço-qualidade), fomentar a participação (aperfeiçoar o planejamento), fortalecer o controle social e, dessa forma, favorecer o aprendizado, incentivar a inovação e aprimorar o sistema nacional de compras públicas, buscando o que é tão caro à democracia brasileira: a confiança do cidadão ao processo de compras públicas
Sob a perspectiva econômica, o PNCP adota a lógica da economia da informação. O valor dos dados dispostos na plataforma digital não está em sua escassez, mas em seu uso e compartilhamento pelo maior número possível de usuários. Plataformas digitais, como o PNCP, promovem retornos crescentes para os usuários – assim como em redes sociais, como o facebook, não existe sentido econômico em restringir o uso para um único usuário (como a adoção de sistemas individualizados de compras públicas). O PNCP reconhece que existem incentivos econômicos para que os entes públicos adotem sistemas, padrões e processos compartilhados de compras públicas. Aliás, é exatamente por essa razão que se observa a criação de um número crescente de centrais e consórcios de compras públicas no país.
Ao concentrar e disponibilizar as informações, o PNCP contribui para reduzir a assimetria de informações de duas relações de agência essenciais para o bom funcionamento de um sistema de compras públicas: 1) entre cidadãos e Administração Pública; e 2) entre Administração Pública e fornecedores. A primeira relação promove um controle mais eficiente das decisões públicas para assegurar maior responsividade e integridade e a segunda contribui para dar maior eficiência econômica aos contratos firmados entre a Administração Pública e os seus fornecedores. Além disso, ao concentrar as normas legais, as orientações gerenciais e os processos de compras públicas per se, o PNCP se torna ainda um repositório de conhecimento e aprendizado que pode contribuir para mitigar os riscos inerentes à racionalidade limitada. Desta forma, o PNCP reduz significativamente os custos de transação relacionados às compras públicas, elevando assim, a eficiência econômica da Administração Pública.
A corrupção nos contratos públicos se beneficia do sigilo. Hoje, conforme a legislação vigente, o sigilo deveria ser a exceção, porém, na prática da Administração Pública brasileira não é isso que se observa. É comum os órgãos públicos não franquearem o acesso aos atos administrativos em meio eletrônico e mesmo quando requeridos administrativamente, negarem acesso aos contratos, aos documentos técnicos, etc. O PNCP muda o padrão vigente de transparência passiva, baseado nas práticas gerenciais de ocultação das informações e na imposição da maior quantidade possível de custos ao requerente (cadastro/identificação, tempo de espera, dados fechados, custos administrativos e legais, etc.), por um novo padrão de transparência ativa aplicável a todos os entes públicos. Sob essa perspectiva, os benefícios do PNCP para a promoção da integridade pública são inquestionáveis.
Além disso, ainda mais relevante é a (re)definição dos padrões adotados pelo PNCP que irão estabelecer, para todo o sistema de compras públicas brasileiro, as boas práticas de planejamento, seleção, implementação/monitoramento e avaliação. Essas decisões, embora estejam revestidas de uma forma legal, são gerenciais e devem estar sujeitas a avaliação e a revisão contínua típicas de um processo de gestão por desempenho. A aprovação da NLLC e a adoção do PNCP autorizam os gestores a institucionalizar novos padrões mais eficientes por meio de novas práticas e valores.
Por isso, a Administração Pública pode incorrer num grave erro ao deixar essas decisões gerenciais a cargo das assessorias jurídicas, a quem compete realizar somente o controle de legalidade dos atos administrativos. Se as decisões sobre os padrões da PNCP forem orientadas pela lógica tradicional de controle jurídico-procedimental (padrão anterior), sem levar em consideração as necessidades gerenciais de geração de valor público (novo padrão), seguramente a trajetória institucional passada será reforçada – por meio da aplicação de jurisprudência e interpretação antiga e inadequada – ao invés de transformada, garantindo assim a inefetividade e a ineficiência da ferramenta.
Por essa razão, neste momento de definição dos padrões do NLLC, é crucial que os órgãos gestores deliberem sobre os objetivos (produtos, resultados e impactos), as metas e os indicadores de desempenho esperados com a implementação do PNCP – assegurando a participação da sociedade no processo de deliberação, o acesso a essas decisões e as informações subsequentes de monitoramento. A regulamentação do PNCP está subordinada a essas decisões de caráter gerencial que irão institucionalizar normas e padrões que produzirão novas interpretações jurídicas. Submeter as decisões sobre o PNCP a hermenêutica jurídica de normas passadas, além de limitar o papel do gestor que dispõe da competência de decidir sobre o mérito, também contribui para replicar a lógica de implementação da Lei n⁰ 8.666 que se busca superar com a NLLC.
Uma gestão por desempenho do PNCP precisa estar orientada para o alcance de produtos, resultados e impacto, conforme descreve o quadro (1):
Quadro 1. Objetivos do PNCP
Objetivos | Descrição |
Produtos | – aumentar o número de processos eletrônicos de compras públicas;- elevar o número de organizações públicas integrantes;- promover o acesso de fornecedores qualificados;- garantir o acesso permanente e em tempo real dos processos de compras públicas;- assegurar a segurança e a integridade das informações;- publicar a integralidade das informações sobre as diversas fases da contratação (planejamento, seleção, contratação, monitoramento e avaliação);- disponibilizar bases de conhecimento legal e gerencial;- viabilizar ferramentas acessórias de participação e controle social; |
Resultados | – aumentar a competitividade;- aperfeiçoar os processos por meio da avaliação;- promover o controle social;- reduzir o tempo de tramitação (entre demanda e atendimento);- incentivar as compras compartilhadas;- reduzir a judicialização dos processos de contratação;- incentivar a adoção de critérios de seleção que observam a melhor relação entre custo e qualidade (Value for Money);- promover processos de compras sustentáveis e inteligentes; |
Impacto | – aumentar a conformidade e o desempenho dos processos de compras públicas no Brasil |
O PNCP não pode e não deve ser visto como uma mera ferramenta de publicidade. Se assim o fosse, os Diários Oficiais já seriam o bastante e continuariam cumprindo seu papel de publicizar certames licitatórios. Limitar a sua aplicação a um instrumento de publicidade dos atos licitatórios, na busca de promover a aplicação imediata da NLCC é relegar toda essa construção da nova governança pública que paulatinamente está sendo encampada no nosso ordenamento jurídico.
Desde que sejam estabelecidos objetivos, indicadores e metas, alinhados com a nova lógica jurídica, gerencial e econômica subjacente à NLLC, o potencial de contribuição do PNCP para uma nova governança dos contratos públicos é enorme. O ceticismo daqueles que veem na NLLC uma simples compilação do antigo marco normativo, esquecem que o desempenho da Administração Pública só é alcançado pela combinação sistêmica entre normas, práticas e valores. Já que perdemos a chance de realizar a reforma legal perfeita da Lei nº 8.666, estando ainda em tempo de institucionalizar as novas práticas e valores que irão efetivamente promover esse desempenho público tão almejado, sob o marco da NLLC.
Muito bom o artigo. Parabéns professora Monique. Linguagem clara e informações precisas. Realmente não podemos achar que o PNPC tenha por objetivo cumprir o papel desempenhado pelo Diário Oficial. Temos que fazer nossa parte e entender que o portal objetiva transparência e eficiência.