Coautoria: Tamara Cukiert
O diálogo competitivo chega ao direito brasileiro com franca inspiração nas diretivas de Contratações Públicas da União Europeia que desde 2004 preveem a figura do diálogo concorrencial.
O diagnóstico (de lá e de cá) é que uma possível solução para reduzir a assimetria de informações entre o Poder Público e os particulares passa por reduzir a inflexibilidade do rito licitatório, fornecendo maior abertura para que os particulares pudessem oferecer soluções para as contratações complexas da Administração Pública.
É o reconhecimento de que a consensualidade é forma legítima de melhorar a qualidade das contratações públicas. Como essa consensualidade será mediada – com mais ou menos discricionariedade aos gestores públicos – parece ser o x da questão.
O Projeto de Lei n° 4.253/2020 define o diálogo competitivo como sendo uma modalidade de licitação voltada à contratação de obras, serviços e compras e que compreende duas fases distintas: a primeira, em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades e a segunda, na qual os licitantes apresentam proposta final, a chamada “fase competitiva”.
Para começar nossa conversa sobre esse intrigante tema – e refletir sobre as escolhas feitas pelo legislador brasileiro – selecionamos sete pontos importantes para reflexão sobre o diálogo competitivo.
- Quando a modalidade pode ser adotada?
O artigo 32 do PL prevê três grupos de hipóteses em que a modalidade do diálogo poderá ser adotada, sendo estas as ocasiões em que:
- o objeto a ser contratado envolva: inovações tecnológicas ou técnicas; necessidades do contratante que não possam ser satisfeitas sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; especificações técnicas que não possam ser definidas com precisão suficiente pela Administração;
- a Administração verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com destaque para a solução técnica mais adequada, requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida e a estrutura jurídica ou financeira do contrato;
- a Administração considere que os modos de disputa aberto e fechado não permitem apreciação adequada das variações entre propostas.
Uma primeira dúvida envolve saber se as hipóteses de utilização do diálogo são cumulativas. A redação do artigo 32 do PL não deixa claro, de modo que nos remetemos à redação da atual Diretiva da União Europeia (Diretiva 2014/24/UE) – cuja redação é muita parecida com a do artigo do PL, mas, ao contrário, deixa claro que as hipóteses de utilização do diálogo não são cumulativas. Basta que o objeto a ser contratado se encaixe em um dos grupos de hipóteses para que a modalidade possa ser utilizada.
Ainda sobre as hipóteses previstas no PL, Egon Bockmann Moreira e Flávio Amaral Garcia (2020, p. 53) registraram que a previsão de cabimento do diálogo nos casos de inadequação dos modos de disputa aberto e fechado fogem à racionalidade própria da modalidade. Os autores afirmam que “o PL parece ter confundido diálogo competitivo com o procedimento por negociação, que igualmente, tem previsão na Diretiva 2014/24/EU e que se caracteriza, também, por ser modalidade mais dialógica e flexível (…) A flexibilidade é comum ao diálogo competitivo e ao procedimento por negociação, mas se manifesta em distintos momentos: no primeiro, para definir soluções para as necessidades públicas; no segundo, concentrada na avaliação comparativa entre as propostas”.
Concordamos com Cristiana Fortini e Gabriel Fajardo (2018) quando destacam que o que viabiliza o diálogo competitivo é justamente a “necessidade da construção dialógica da solução”.
E, de fato, na Diretiva da União Europeia, essa hipótese de cabimento está em artigo que elenca as possibilidades de utilização tanto do diálogo concorrencial quanto do procedimento por negociação (artigo 26).
Como se vê, as polêmicas envolvendo o diálogo competitivo brasileiro começam desde as suas hipóteses de cabimento.
2. O rito do diálogo competitivo
Um dos pontos cruciais do diálogo competitivo é a seleção de quem estaria habilitado para o diálogo. A solução da legislação brasileira não nos parece a mais adequada, na medida em que indica que o edital deverá estipular critérios objetivos para a pré-seleção de quem vai participar da fase do diálogo.
Considerando que o foco da Administração é selecionar participantes aptos a indicar soluções que ela mesmo desconhece, como tal escolha poderia ocorrer com critérios objetivos? Parece-nos que o receio de que a discricionariedade abra espaço para corrupção acabou por impedir um desenho ótimo da modalidade logo em seu começo.
Além da seleção dos licitantes, outras duas grandes fases são previstas pela lei: a fase de diálogo e a fase competitiva.
A fase de diálogo serve para aferir possíveis soluções para as necessidades da Administração, com estímulo à criação de inteligência coletiva que deveria surgir das rodadas de diálogo.
Durante o diálogo, a Administração não poderá revelar a outros licitantes as soluções propostas ou as informações sigilosas comunicadas por um licitante sem o seu consentimento. Como forma de contrapor aproximações pouco republicanas, contudo, o projeto de lei previu que as reuniões com os licitantes pré-selecionados serão registradas em ata e gravadas mediante utilização de recursos tecnológicos de áudio e vídeo.
As rodadas de conversas podem ser mantidas até que a Administração esteja confortável em emitir decisão fundamentada na qual identifica a solução ou as soluções que atendam às suas necessidades.
A fase competitiva inicia-se após o fim do diálogo, com a publicação de novo edital que conterá a especificação da solução que atenda às necessidades da Administração e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa. Haverá prazo mínimo de 60 (sessenta) dias úteis, para todos os licitantes pré-selecionados apresentarem suas propostas, as quais deverão conter os elementos necessários para a realização do projeto.
3. Assessoria
A colegialidade é uma regra no diálogo competitivo e sua condução ocorrerá por comissão de contratação composta por pelo menos 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração.
Mesmo com tal configuração, em muitas situações a Administração não possuirá em seu corpo técnico servidores que possam avaliar as propostas realizadas durante o procedimento de diálogo. Diante disso, o PL prevê que a comissão de contratação poderá ser assessorada por profissionais contratados com formação técnica compatível. Esses profissionais assinarão termo de confidencialidade e abster-se-ão de atividades que possam configurar conflito de interesses.
Assim, caso o diálogo prospere, novas oportunidades poderão surgir no mercado de consultoria.
4. Diálogo nas Concessões e PPPs
O PL prevê a alteração da Lei nº 8.987/1995 para prever a utilização do diálogo competitivo para a contratação de concessão de serviço público, assim como a Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004).
Assim, o diálogo surge como mais uma forma de se pensar a modelagem desses contratos, somando às estruturas tradicionais, como a contratação de consultores externos por bancos de fomento e a utilização do Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI. Isso porque a modelagem final do contrato de concessão ou PPP será construída ao longo das rodadas de diálogo.
5. Possibilidade de controle prévio pelos Tribunais de Contas
Apesar das boas novidades, já deu para perceber que nem tudo são flores quando o assunto é diálogo competitivo, certo?
Uma das disposições mais criticadas é justamente a previsão do art. 32, §1º. XII, a qual indica que o órgão de controle externo poderá acompanhar e monitorar os diálogos competitivos, opinando, no prazo máximo de 40 (quarenta) dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do contrato.
O controle prévio das contratações públicas já foi alvo de diversas críticas doutrinárias, inclusive sob o aspecto de sua inconstitucionalidade. Isadora Cohen e Ana Carolina Sette escreveram recentemente sobre o tema neste artigo.
6. Cherry-picking e outros pontos polêmicos do diálogo competitivo
Um dos pontos importantes do diálogo competitivo – e já muito discutido nos países onde o diálogo é utilizado – diz respeito à construção da solução final que será licitada pela Administração Pública.
Como vimos, ao final da fase de diálogo, a Administração elaborará edital que conterá a especificação da solução que atenda às suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa.
Para selecionar a solução mais adequada para satisfazer suas necessidades, a Administração tem duas opções, que são: selecionar integralmente (ou quase) a solução proposta por um dos participantes do diálogo, ou construir uma solução nova juntando as ideias e estudos apresentados pelos diferentes participantes.
A primeira opção traz críticas já conhecidas por nós por conta do PMI, acerca do suposto favorecimento de um participante (que apresentou a solução adotada) em detrimento dos demais. Contudo, para o diálogo competitivo, essa crítica ainda suscita uma pergunta adicional: já que, ao final do diálogo, o participante pode ser chamado a apresentar proposta para uma solução que não seja aquela que ele apresentou, por que não abrir essa fase competitiva para outros potenciais licitantes?
Já a segunda opção, relativa à construção de uma solução “conjunta”, cria preocupações relacionadas à confidencialidade e ao que chamamos de cherry-picking. O cherry-picking é justamente o risco de seleção arbitrária de aspectos apresentados pelos participantes durante a fase de diálogo para a construção da solução adequada. E associado a esse risco está a preocupação dos participantes de que soluções inovadoras ou informações sensíveis que tenham apresentado à Administração Pública em caráter de confidencialidade sejam divulgadas aos demais participantes.
Esse risco, caso não seja bem equacionado pela nossa legislação, pode impedir os participantes de apresentarem essas soluções e informações na fase de diálogo. Trata-se de um possível efeito deletério da falta de clareza da lei a impedir que o diálogo competitivo cumpra seu principal papel, qual seja, obtenção da expertise dos privados.
7. Possíveis pontos de melhoria: o que podemos aprender com a experiência europeia
Por fim, há muito o que aprender com os países que já utilizam o diálogo competitivo. Uma experiência interessante é aquela de Portugal, país que utiliza muito pouco essa modalidade licitatória. Isso porque Portugal transpôs a Diretiva da União Europeia de maneira muito particular, adaptando o rito do diálogo para aquele das licitações tradicionais. Este, muito mais rígido e burocrático, acabou por inutilizar o diálogo competitivo, que exige maior flexibilidade nos diálogos e nas negociações com os particulares.
A transposição foi feita dessa forma justamente para tentar retirar, o máximo possível, a discricionariedade do gestor público. Ao tentar tornar o processo mais objetivo, retiraram todas as suas vantagens.
Aqui no Brasil o medo da discricionariedade (e, do lado dos gestores, o medo dos órgãos de controle) é parecido. Aliás, o segundo ponto que levantamos envolve justamente a necessidade de estabelecer critérios objetivos para a seleção dos participantes no diálogo, por exemplo.
Fica, então, a reflexão, para que os nossos medos não inviabilizem, logo de cara, o diálogo competitivo.
Referências
COHEN. Isadora. Diálogo Competitivo já nasce com a efetividade questionada. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/dialogo-competitivo-ja-nasce-com-a-efetividade-questionada-26032021. Acesso em 30 mar 2021.
CUKIERT, Tamara. Consensualidade nas contratações públicas: uma análise do diálogo competitivo. Tese de Láurea. São Paulo: USP, 2018.
GARCIA, Flávio Amaral. MOREIRA, Egon Bockmann. A futura nova lei de licitações brasileira: seus principais desafios, analisados individualmente. Revista de Direito Público da Economia [recurso eletrônico]. Belo Horizonte, v.18, n.69, jan./mar. 202
FORTINI, Cristiana. FAJARDO, Gabriel. O avanço do diálogo competitivo no substitutivo apresentado ao PL 6.814/17. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-24/interesse-publico-oavanco-dialogo-competitivo-substitutivo-pl681417 Consulta em 30 mar 2021
Profissional de Compras/Suprimentos a mais de 20 anos, me parece haver um pequeno equívoco na fase competitiva.
Se serão considerados apenas as empresas pré-selecionadas na fase de diálogo, há o risco de ter o direcionamento para uma empresa específica, se considerarmos que nem todos os participantes possuem ou comercializam o mesmo tipo de produto, tecnologia, etc
Posso estar enganado na interpretação do texto, mas restringir a lista dos licitantes não parece razoável.
Muito esclarecedor e enriquecedor seu artigo, parabéns às autoras, que com simplicidade e objetividade conseguem transmitir os aspectos importantes dessa nova modalidade de licitação e contratação administrativa. Muito grato pelas informações!