A Portaria nº 1.214/2020, da Controladoria-Geral da União, disciplina os requisitos e o procedimento de reabilitação previsto no inciso IV e no § 3º do artigo 87 da Lei nº 8.666/1993. Vale lembrar que a declaração de inidoneidade pode ser aplicada em decorrência do inadimplemento contratual – o que não pressupõe a ocorrência de um ato de corrupção[1]. A normativa prevê que, após o transcurso de dois anos da aplicação da sanção de declaração de inidoneidade e desde que ressarcidos integralmente eventuais prejuízos ao erário, a empresa que tenha sido penalizada pela Controladoria-Geral da União com a declaração de inidoneidade possa requerer a sua reabilitação.
O inciso III do artigo 2º da Portaria nº 1.214/2020 condiciona a concessão da reabilitação à “adoção de medidas que demonstrem a superação dos motivos determinantes da punição, o que inclui a implementação e a aplicação de programa de integridade, instituído de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo art. 42 do Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015”.
O condicionamento aparece como uma forma de penalizar a empresa contratada e proteger a Administração Pública da celebração de negócios com empresas que não possuam mecanismos de integridade. Ou seja, a Portaria nº 1.214/2020 não aparece propriamente como uma alternativa à pessoa jurídica, o que poderia ocorrer caso houvesse a possibilidade de redução da proibição de contratar a partir do aprimoramento dos controles internos.
Nesse ponto, o preceito normativo se distancia de diplomas internacionais que autorizam o afastamento da proibição de contratar com o Poder Público antes do termo previsto em lei, mediante a adoção de medidas de auto saneamento (self cleaning), como a implementação do programa de compliance. Cita-se, por ilustração, a legislação norte americana, que autoriza a redução do período de impedimento ou a extensão desse mesmo impedimento, em função da eliminação das causas que ensejaram a aplicação da penalidade, dentre outras[2]. Seguindo a mesma toada, as diretrizes do Banco Mundial preveem a possibilidade de que a empresa penalizada continue elegível, desde que atenda certas condições, no prazo estabelecido pela instituição (Conditional Non-Debarment). Se não forem cumpridos os requisitos, a empresa fica excluída da lista de potenciais parceiros do Banco Mundial.[3]
A interpretação literal do inciso IV do artigo 87 da Lei nº 8.666/1993 conduz à conclusão de que a declaração de inidoneidade pode ser afastada antes do lapso temporal de dois anos, desde que a empresa adote medidas de autossaneamento[4]. O dispositivo estabelece que a sanção permanece vigente enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação – esta, sim, condicionada ao transcurso do prazo de dois anos. A possibilidade de extinção da declaração de inidoneidade antes do lapso temporal previsto no artigo 2º da Portaria nº 1.214/2020, permanece, desde que a empresa comprove que os motivos que culminaram na aplicação da sanção foram sanados internamente.
O texto base do Projeto de Lei nº 1.292/1995, que visa substituir a Lei nº 8.666/1993, propõe um cenário que engessa as possibilidades de reabilitação das empresas penalizadas. É que o artigo 162 admite a reabilitação do contratado penalizado desde que preenchidos os requisitos cumulativos descritos nos incisos, que incluem o transcurso do prazo mínimo de 1 (um) ano no caso de impedimento de licitar ou de 3 (três) anos no caso de declaração de inidoneidade. O parágrafo único do mesmo dispositivo condiciona a reabilitação decorrente da apresentação de documentação falsa ou da prática de algum dos atos ilícitos previstos na Lei nº 12.846/2013, à implantação ou aperfeiçoamento do programa de integridade. Ou seja, é possível que a pessoa jurídica detentora de programa de compliance já estruturado venha a ser declarada inidônea em função da apresentação de documento falso por algum de seus funcionários. Nesse caso, ainda que a ocorrência do desvio tenha decorrido de uma pequena falha nos controles internos, passível de rápida solução, é possível que a empresa seja obrigada a aguardar o transcurso de 3 (três) anos para pleitear a sua reabilitação perante a Administração Pública[5].
Não há dúvida de que a Portaria nº 1.214/2020 e o Projeto de Lei nº 1.292/1995 reforçam a importância dos programas de compliance, em especial para as empresas que contratam com a Administração Pública. Acontece que as propostas normativas seguem um padrão punitivista acrítico e caem no lugar comum ao desconsiderar que a adoção de medidas de compliance pode ser mais benéfica do que o afastamento de determinadas empresas dos processos licitatórios, tanto sob a perspectiva da Administração Pública, diante do aumento do número de potenciais licitantes, quanto do contexto sócio-econômico que pode ser impactado pela inatividade da empresa.
[1] Não obstante, a doutrina especializada sustenta a necessidade de identificação do “elemento subjetivo reprovável” na conduta da empresa contratada para a configuração do ilícito capaz de atrair a penalidade prevista no inciso IV do artigo 87 da Lei nº 8.666/1993. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, Ed. 2019.
[2] Nos termos do Federal Acquisition Regulation – FAR (9.406-4).
[3] O Banco Mundial celebrou acordo de conciliação condicionada com a Odebrecht em função de desvios verificados no projeto de recuperação do Rio Bogotá, na Colômbia. Uma das condições para que a empresa volte a ser considerada elegível é justamente o compromisso de desenvolver um programa de compliance compatível com as Diretrizes de Cumprimento da Integridade do Grupo Banco Mundial. Disponível em: <https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2019/01/29/world-bank-group-announces-settlement-with-brazilian-subsidiary-of-odebrecht>.
[4] Nesse sentido, Cesar Pereira Guimarães e Rafael Wallbach Schwind esclarecem que “o único sentido possível da expressão contida no inc. IV é o de possibilitar a extinção da medida tão logo o fornecer tenha condições de provar que a ilicitude praticada não tem a possibilidade de se repetir. Caso a regra se voltasse apenas para o passado, a expressão não teria sentido: os motivos que justificaram a inidoneidade (a conduta irregular) nunca deixarão de existir. O que poderá desaparecer é o risco que a contratação do referido fornecedor pode oferecer à Administração. As medidas de autossaneamento são precisamente o modo pelo qual se demonstra a inexistência desse risco”. PEREIRA, Cesar A. Guimarães; SCHWIND, Rafael Wallbach. Autossaneamento (self-cleaning) e reabilitação de empresas no direito brasileiro anticorrupção. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, nº 102, agosto de 2015.
[5] Diz-se que é “possível” porque, nos termos do § 1º do artigo 155 do Projeto de Lei nº 1.292/1995, a aplicação da penalidade deve levar em consideração as peculiaridades do caso concreto e, ainda, a implantação ou aperfeiçoamento dos programas de compliance o que, trazendo para situação hipotética, dificilmente autorizaria a aplicação da penalidade de declaração de inidoneidade.