Por meio da coersão, as sanções administrativas cumprem uma função social, servindo como instrumento para que o Poder Público garanta satisfatoriamente a implementação das políticas públicas, atendendo, assim, às necessidades da população.
Para uma sanção para ser reconhecida como válida perante a ordem jurídica, o que garante a sua legitimidade, não deve apenas observar a disciplina da lei, mas um conjunto de princípios que regulam todo o processo de edição de um ato administrativo sancionador denominado regime jurídico-administrativo.[1]
Melhor esclarecendo, temos a considerar que no âmbito das sanções impostas pelo Estado, observam-se as punições de natureza penal e administrativa, sendo ambas manifestações de um mesmo poder estatal, o ius puniendi. [2] Assim ocorre, uma vez que, “A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico […]. Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal.”[3]
Desta feita, inexistindo diferença entre os ilícitos penais e administrativos e tendo em vista que a consequente penalidade decorre do exercício do mesmo ius puniendi estatal, tem-se que as mesmas garantias daquele sujeito que pode ser apenado pelo Poder Judiciário devem ser oferecidas aos que podem sofrer uma sanção administrativa. Afigura-se necessário, portanto, que as mesmas garantias do Direito Penal sejam aplicadas no Direito Administrativo,[4] sendo tal exegese, aliás, já observada pelo eg. Superior Tribunal de Justiça.[5]
Da mesma forma, Juan Carlos Cassagne ressalta que, in verbis: “a unidade do direito repressivo e as garantias no Estado de Direito conduzem a aplicabilidade às sanções os princípios próprios do Direito Penal substantivo” (tradução nossa).[6]
Assim, “o Direito Administrativo Sancionador empresta os instrumentos que proporcionam ao Direito Penal simplesmente porque lhe são úteis em razão do seu amadurecimento e de sua superioridade teórica” (tradução nossa).[7]
Portanto, o regime jurídico punitivo a ser observado quando o Estado exerce função administrativa será aquele circunscrito por princípios elencados expressamente na Constituição da República de 1988, de forma a amoldar o exercício do ius puniendi às garantias constitucionais, assegurando o afastamento de qualquer tipo de excesso ou arbitrariedade estatal quando da imposição das sanções na seara administrativa.
Assim ocorre, uma vez que “os princípios não são meras declarações de sentimento ou de intenção, desprovidos de qualquer positividade.”[8] Com efeito, “o princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras [jurídicas], pois determina o sentido e o alcance destas, que não podem contrariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do sistema.”[9]
Sendo assim, o regime punitivo no âmbito das contratações públicas é circunscrito e alicerçado nos princípios que concretizam a garantia de direitos e garantias fundamentais, passa-se a estudar aqueles que efetivamente incidem sobre as sanções administrativas, quais sejam, o princípio da legalidade; o princípio da anterioridade; o princípio da irretroatividade da lei; o princípio da segurança jurídica; o princípio do non bis in idem; o princípio da razoabilidade; o princípio da proporcionalidade; o princípio do devido processo legal; o princípio da non reformatio in pejus; o princípio do juiz natural e o princípio da prescritibilidade, objeto do presente estudo.
Nesse passo, no âmbito do sistema punitivo administrativo, observa-se a incidência do princípio da prescritibilidade,pois a atividade punitiva tem tempo para se realizar, existe prazo, não é a qualquer momento que o Estado pode, após verificada uma infração, estabelecer a sanção.[10]
Sendo assim, durante o processamento da licitação ou execução do contrato administrativo, observando-se a prática de uma das condutas caracterizadas pela legislação licitatória como infração administrativa, é dever da Administração Pública instaurar competente processo sancionador com o escopo de aplicar a correspondente sanção, se for o caso.
Uma vez instaurado o processo administrativo pela Administração licitante ou contratante, a aplicação da competente sanção restará garantida, ainda que a conclusão desse processo administrativo seja mais demorada, em razão de fatos supervenientes à sua instauração.
Verifica-se, todavia, que o período para que o Poder Público conclua o processo sancionatório não pode se perpetuar no tempo, sob pena de prejuízo à estabilidade das relações jurídicas, fato que acarreta a violação ao princípio da segurança jurídica, sendo necessário, portanto, que a lei local estabeleça um limite temporal para regular a conclusão do expediente administrativo sancionatório.
Sobre a questão, ressalta de Rafael Munhoz de Mello, in verbis:
É assim em face do princípio da segurança jurídica, que não se coaduna com a instabilidade de ser imposta a sanção a qualquer tempo, mesmo após o decurso de longo período do momento em que praticada a infração. A sanção administrativa produz efeitos relevantes sobre a esfera jurídica do infrator, que podem atingir a validade das relações jurídicas por ele travadas com terceiros. Logo, convém que se estabeleça um prazo para que a Administração Pública possa impor a sanção e, de consequência, afetar a esfera jurídica do infrator. Decorrido tal prazo, o poder de punir já não mais pode ser exercido, o que representa a estabilização da posição jurídica do particular.[11]
Verifica-se, portanto, que a lei local deve fixar o prazo para prescrição do poder punitivo para conclusão do processo sancionatório devidamente instaurado em desfavor de sujeito que incorreu em infração administrativa durante o processamento da licitação ou execução dos contratos administrativos, uma vez que a atual legislação licitatória não estabelece prazos de prescrição para a aplicação das sanções administrativas.
Por ser oportuno, tem-se que a referida falha será corrigida na nova lei de licitações, conforme se observa da leitura do art. 156, § 4º, que estabelece regra para a prescrição no âmbito das contratações públicas, fixando que ela ocorrerá em 5 (cinco) anos, contados da ciência da infração pela Administração, e será (I) interrompida pela instauração do processo de responsabilização a que se refere o caput; (II) suspensa pela celebração de acordo de leniência, nos termos da Lei n° 12.846, de 1º de agosto de 2013 e (III) suspensa por decisão judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa.
Logo, no período fixado pela lei local, deverá a Administração Pública licitante ou contratante empreitar esforços para concluir o processo sancionatório, sob pena da desídia ou negligência acarretar responsabilização os agentes públicos que não conseguirem finalizar o expediente punitivo no tempo legalmente estabelecido, uma vez que é um dos deveres do servidor público observar as normas legais e regulamentares, a exemplo do que se prevê o art. 116, inc. III, da Lei federal nº 8.112/1990, repetidos nos Estatutos dos Servidores dos demais entes.
Sendo assim, ocorre que em 23 de março de 2020 restou publicada a Medida Provisória, nº 951 no Diário Oficial da União, introduzindo na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do estado de calamidade causado pelo Coronavírus, o art. 6º-D, cujo teor suspende o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.666/1993, na Lei nº 10.520/2002 e na Lei nº 12.462/2011.
Analisando o referido dispositivo, o primeiro apontamento que realizamos é a ausência da possibilidade de suspensão dos prazos prescricionais dos processos sancionatórios instaurado no âmbito das estatais, regulados pela Lei fed. nº 13.303/2016, cujo teor dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Pode ser que tal equívoco possa ser corrigido durante a tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional uma vez que as estatais estão envolvidas nas ações do governo no combate à pandemia ou enquadradas como prestadoras de serviços públicos e atividades essenciais à sociedade, conforme estabelece o Decreto fed. nº 10.329, de 28.4.2020, estando servidores estão atuando prioritariamente no combate ao Covid-19 ou garantindo aquilo que é essencial à população.
Analisando o objetivo da Medida Provisória, tem-se que a mesma tende a evitar escoamento, durante o período da pandemia, dos prazos para que os entes federativos concluam o processo sancionatório, tendo em vista que, nesse período, os esforços administrativos estão prioritariamente voltados para o combate à Covid-19. Impede-se, assim, que a Administração seja acusada de inércia em virtude da não atuação regular nos processos administrativos relacionados com a matéria, conforme apontamento nas exposições de motivos da referida Medida Provisória (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-951-20.pdf )
Demais disso, sabe-se que tais processos devem ser conduzidos de forma responsável e o processamento dos mesmos às pressas com o intento de evitar a fulminação da pretensão punitiva em razão da prescrição pode gerar uma nulidade do processo sancionatório em razão de alguma garantia fundamental ou princípio de Direito Pùblico, por exemplo. Assim o conteúdo da MP também tem o condão de evitar a declaração de nulidade futura da sanção administrativa, bem como prejuízos aos interessados, conforme apontamento nas exposições de motivos da referida Medida Provisória.
Outrossim, sabe-se que a não adoção da decisão prevista na MP pode gerar impunidade administrativa uma vez que pode o administrador público, de forma ardilosa, reduzir o ritmo ou paralisar a tramitação do processo punitivo propositavelmente com o objeto da prescrição ser alcançada. Com tal medida governamental, cessa-se pretensões desta natureza.
Encerrado o prazo de suspensão, os prazos prescricionais voltarão a fluir pelo período restante em cada caso concreto, retomando o curso do processo administrativo sancionatório, refazendo-se os atos processuais, se necessário, passando a Administração notificar o particular acerca da retorno dos trabalhos.
Esclareça-se que a referida medida provisória não apresenta um período de suspensão dos prazos prescricionais. Todavia, o art. 8º da Lei nº 13.979, de 2020, cujo teor dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, estabelece que a norma legal vigorará enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Logo, o prazo de suspensão da prescrição é indeterminado, devendo, a Administração notificar o particular acerca da suspensão do expediente punitivo.
Sendo assim, tendo em vista que o objetivo das sanções administrativas no âmbito das contratações públicas é evitar a prática de comportamentos que prejudiquem a Administração e coletividade, a determinação contida na Medida Provisória, nº 928 é de extrema importância pois objetiva evitar prejuízos aos interessados, impedir que a Administração seja acusada de inércia em virtude da não atuação regular nos processos sancionatórios e a impunidade, risco potencializado pelo estado de calamidade pública observada.
REFERÊNCIAS
CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo, v. II, 5. ed., Buenos Aires: Abedo-Perrot, 1996-1997.
NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005.
ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Revisor técnico Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo, v. 1, n. 1, p. 24, 1945.
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador: as Sanções Administrativas à Luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007.
NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005.
OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Aplicação de sanções nos
procedimentos licitatórios. Boletim de
Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, ano 26, n. 8, ago.
[1] Nesse sentido, para Lúcia Valle Figueiredo: “Denominamos regime jurídico-administrativo ao conjunto de regras e princípios a que se deve subsumir a atividade administrativa no atingimento de seus fins” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 65).
[2] “O mesmo ius puniendi do Estado pode manifestar-se, pois, (com exceção já feita às penas privativas de liberdade e de outros direito civil e político), tanto pela via judicial penal, como pela via administrativa” (ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Revisor técnico Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 190).
[3] HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo, v. 1, n. 1, p. 24, 1945.
[4] “A aplicação do Direito Penal ao Direito Administrativo, de forma subsidiária, é, entretanto, necessária, vez que a teoria sobre a unidade do ius puniendi não se encontra ainda desenvolvida no direito público, e porque as garantias individuais estabelecidas no Direito Penal são irrenunciáveis” (VERZOLA, Maysa Abrahão Tavares. Sanção no Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 133-134).
[5] “Consoante precisas lições de eminentes doutrinadores e processualistas modernos, à atividade sancionatória ou disciplinar da Administração Pública se aplicam os princípios, garantias e normas que regem o Processo Penal comum, em respeito aos valores de proteção e defesa das liberdades individuais e da dignidade da pessoa humana, que se plasmaram no campo daquela disciplina.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS 24559/PR – Relator Ministro. Napoleão Nunes Maia Filho. p. DJe 01/02/2010. J. 3/12/09 ).
[6] CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo, v. II, 5. ed., Buenos Aires: Abedo-Perrot, 1996-1997.
[7] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005. p. 86.
[8] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4. ed. Madrid: Tecnos, 2005 p. 79.
[9] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4. ed. 7. tir. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 146.
[10] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Aplicação de sanções nos procedimentos licitatórios. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, NDJ, ano 26, n. 8, ago. 2013 p. 854.
[11] MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador: as Sanções Administrativas à Luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 251.