A humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas em razão da Pandemia ocasionada pelo coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos e destes nas instituições.[1] E esse, é, sem dúvida, um enorme problema, já que ambientes sem confiança mútua e sem senso de obrigação tácito são propícios para a permanência de uma cultura cotidiana e endêmica da corrupção.
É que, quando há confiança os indivíduos interagem uns com os outros com um nível de presunção básico em relação ao que lhes é oferecido e o que podem obter. É o que o Amartya Sen chama de “liberdade de lidar uns com os outros sob garantias de dessegredo e clareza.”[2] Quando essa confiança é abalada, entretanto, o nível de presunção básico é afetado, o que facilita a prática de condutas ilícitas e fraudulentas, aumentando a assimetria de informação. É dizer, quando as instituições não são capazes de demonstrar o universalismo, a imparcialidade, a justeza e a probidade de seus procedimentos, não há apoio, solidariedade e confiança dos cidadãos, abrindo-se ala para práticas corruptas, e, por conseguinte, há prejuízos às instituições, notadamente em relação à sua credibilidade, à confiança social e à própria Democracia.[3]
No Brasil, são crescentes os casos desvelados de corrupção em razão desse cenário de desconfiança generalizada, especialmente no âmbito das contratações públicas, onde prevalece a cultura do “custo propina” e do “jeitinho brasileiro”, que, comumente, ocorre nas três fases da licitação. Isto é, na fase de planejamento da licitação, por exemplo, mediante ausência de transparência, quebra de sigilo de informações para determinados licitantes, especificações editalícias que não permitem a avaliação da performance do contratado, desvio do padrão usual de contratação, previsão de tempo inadequado para preparação das propostas, especificações editalícias para diminuição da competitividade, dentre outras. Já na fase de escolha do fornecedor, fatores como decisões tomadas por um único agente, ausência de expertise dos responsáveis pelo processo, similitude de propostas, atrasos injustificáveis na seleção e desistência do certame por licitantes qualificados, podem ser considerados sinais de alerta para condutas corruptas. Por fim, na fase de execução e fiscalização do contrato, a existência de custos além do contratado sem justificativa, a ausência ou pouca fiscalização da execução contratual e a ausência de registro de avaliações, também podem ser considerados sinais de alerta à ocorrência de corrupção.[4]
Casos práticos como os exemplos apontados, entretanto, devem ser desincentivados, reduzidos e reprimidos, o que se inicia com um sistema normativo eficaz e uma cultura organizacional aderente, como têm feito alguns estados e o Distrito Federal, que, além de implementar Programas de Integridade em sua estrutura interna, passaram a exigir que empresas que contratem com o Poder Público devam demonstrar a existência de Programa de Integridade efetivo, ou implementá-lo em determinado prazo, como obrigação contratual. Essa, senão, é a realidade do PL nº 1292/95, conforme comentado em outra oportunidade.
Exigências como a implementação de Programas de Integridade devem ser reconhecidas como instrumentos que buscam restabelecer essa confiança mútua hoje abalada, instaurando-se um ambiente pautado pela ética, integridade e transparência nas contratações públicas. E tal reconhecimento é essencial em contratações decorrentes da pandemia COVID-19, pautadas pela Lei nº 13.979/2020, que, como regra, possuem características de grande vulto e são contratações diretas (por dispensa de licitação), o que impõe a necessidade de uma realidade do Compliance.
Dessa forma, as leis locais já vigentes que requerem a implementação de Programas de Integridade efetivos às contratadas, bem como os Projetos de Lei que seguem essa mesma linha, estão aderentes não só ao gerenciamento da crise instalada, mas à minimização da incidência de fraudes e desvios em razão dela.
Sem confiança e integridade não
seremos capazes de interromper a pandemia ocasionada pelo coronavírus, tampouco
seremos capazes de alterar a cultura da corrupção endêmica e cotidiana das
contratações públicas. Mas toda crise traz uma oportunidade, e, com sorte, a
pandemia Covid-19 abrirá nossos olhos e mostrará o grande risco da falta de
confiança entre os seres humanos e destes nas instituições, seja no combate à
patologias, seja no combate à corrupção.
[1] HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade. Trad. Odorico Leal. São Paulo: Companhia das letras, 2020.
[2]Tradução literal de: “Transparency guarantees deal with the need for openness that people can expect: the freedom to deal with one another under guarantees of disclosure and lucidity. SEN, 2000, p. 39.
[3] FOCKINK, 2019, p. 191.
[4] FORTINI, Cristiana; MOTTA, Fabrício. Corrupção nas licitações e contratações públicas: sinais de alerta segundo a Transparência Internacional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, nº 64, p. 93-113, abr./jun. 2016. p. 96-100.