I – Legislação criada para o atendimento da situação pandêmica: a Lei nº 13.979/2020 e as Medidas Provisórias
A Lei nº 13.979/20 criou uma série de medidas para tornar mais célere as contratações públicas, tendo em vista a necessidade de enfrentamento da situação pandêmica instaurada em razão do Novo Coronavirus.
A criação de uma nova hipótese de dispensa de licitação pública em decorrência de situação de calamidade pública foi uma das alternativas idealizadas para dar mais agilidade às contratações públicas.
A prerrogativa excepcional de contratação direta de que cuida a lei da pandemia só é válida se evidenciada relação direta ou indireta com as consequências da crise pandêmica. Não se trata, como já adiantava o legislador, ao disciplinar a contratação emergencial de que cuida o art. 24, IV da Lei 8.666/93, de porta aberta à contratação de toda a sorte de objetos/serviços, senão daqueles cuja demanda é reflexo do problema hoje vivenciado, mesmo que por via obliqua.
A Lei da pandemia previu a exceção da exceção. Emergências outras continuam a ensejar a utilização da modalidade “tradicional” de contratação direta, sujeita, pois, ao regramento vetusto. Demandas que, lado outro, conversem com a pandemia autorizam a contratação segundo os parâmetros sazonais, ditados pelas regras editadas para cobrir o momento atual. Vale dizer: a duplicidade de regimes implica afirmar que demandas emergenciais alheias à pandemia são endereçadas segundo a abordagem antiga, menos flexível e mais burocrática, como será analisado ao longo deste texto. A necessidade urgente de determinado produto/serviço em face pandemia, mesmo que desatrelado do setor da saúde, embora relacionada ao vírus, ainda que de forma menos imediata, poderá ser resolvida com suporte na regra da legislação pandêmica. O mesmo, contudo, não se pode defender com relação às obras.
Vê-se que obras não foram contempladas na MP. Assim, a construção de postos de saúde e hospitais, por exemplo, mesmo que vitais para o atendimento de pacientes da COVID-19 devem se sujeitar aos comandos antigos, constantes do art. 24, inciso IV. Parece-nos a única intepretação possível, porque não se pode inserir objeto não contemplado na MP, embora a ausência deva ser lastimada porque não há, aparentemente, razão para a exclusão das obras que podem ser revelar igualmente imperiosas como medida de ataque ao vírus.
É importante ressaltar que a Lei nº 13.979/20 busca flexibilização e dinamização. Mas tais nortes não deveriam dirigir toda e qualquer contratação emergencial? Essa a pergunta que pavimenta este artigo.
Vejamos algumas assimetrias entre os dispositivos, já que elas não se encerram no objeto.
Em oposição ao prazo máximo de 180 dias, estabelecido no art. 24, IV da Lei Geral de licitações e contratos, a MP prevê no art. 4º-H que os contratos terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência da saúde pública. A decisão parece ajustada porque a inusitada situação pela qual passamos não autoriza conclusões precipitadas sobre a duração do problema e menos ainda sobre o período pelo qual o produto/serviço será imperioso.
Destacam-se, ainda, entre os pontos de desarmonia, a dispensa da elaboração de estudos preliminares e o gerenciamento de riscos. Os dois documentos devem ser produzidos na fase planejamento e demandam tempo para sua elaboração, razão pela qual acertada a orientação do legislador de desobrigar os responsáveis pelas contratações emergenciais de confeccioná-los[1] .
Outra vertente importante para promover a devida agilidade no novo procedimento da dispensa diz respeito ao Termo de Referência e ao Projeto Básico, dotados de novo perfil simplificado, com a redução dos elementos para sua configuração[2]. Este tema será retomado ao longo do artigo.
Ainda com o objetivo de aliviar os encargos e assim acelerar a formação do vínculo com o privado, o elemento “estimativa de preços” adquire na MP novos contornos. Abandonando a ideia de uma cesta de preços, que reúna diversas fontes de pesquisa, o art. 4º-E, § 1º, VI, da Lei nº 13.979/20 contenta-se com a indicação de apenas um dos parâmetros de pesquisa, sem sinalizar qualquer preferência. Trata-se de opção diversa da contemplada na IN 5, de 27 de junho de 2014, com as alterações posteriores. Ali, revela-se uma preferência pelo Painel de Preços e pelas contratações similares de outros entes públicos, em execução ou concluídos nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores à data da pesquisa de preços. Para além de possíveis críticas e comentários à IN 5, a rota adotada pela MP 926 é interessante. As dificuldades pelas quais passa o gestor são relevantes. Suavizar o caminho pode ser garantir a contratação. Mais que isso, a inflação de determinados preços e serviços- o que é variável concreta- de fato torna problemático considerar painel de preços ou contratos anteriores celebrados pela administração, se prévios à crise.
Com relação à documentação, a Lei prevê que poderá ser dispensada a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade com a Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição. Segundo o legislador, ainda que os documentos rotineiramente reclamados possam ter serventia, eles, no momento presente, reduziriam o campo de escolha da administração.
A intenção deste artigo é fazer uma análise crítica das formalidades exigidas no procedimento tradicional de dispensa de licitação em caso emergencial, as quais demandam tempo para além da realização da medida imediata, e da nova moldura procedimental criada pela Lei nº 13.979/20 para o enfrentamento da pandemia gerada pelo Covid-19.
II – Da necessidade de criação de uma Dispensa Especial de Licitação
Como já citado aqui, a Lei nº 8.666/93 prevê, no seu art. 24, IV, hipótese de dispensa de licitação para atender situação de emergência ou calamidade pública. Se assim o é, qual a razão de se criar uma nova modelagem de contratação direta para o mesmo fim, qual seja, situação emergencial?
A justificativa alegada é que a situação emergencial pandêmica atual demanda reação mais célere por parte do gestor[3]. Soa estranho considerar que a emergência de que se ocupa a Lei 8.666/93, a despeito do nome, pudesse tolerar reações menos febris. Afinal, emergência é emergência. Correr contra o tempo é o fator crucial. Portanto, o referencial normativo já existente deveria estar apto a socorrer agora o gestor. A criação de uma nova modelagem de contratação emergencial, segundo nos parece, evidencia que o procedimento tradicional de dispensa para emergência não atende ao fim para o qual foi criado. Apesar de o atendimento emergencial exigir rapidez e fluidez, a disciplina legal “tradicional” ainda sobrecarrega o procedimento.
Realizado um levantamento breve do trâmite da dispensa e dos documentos que compõem o processo, verifica-se uma miríade de exigências e regras, as quais burocratizam o procedimento e comprometem a sua eficiência e eficácia. A título de ilustração, sem, contudo, identificar o órgão para não expor a fonte, são apresentados aqui alguns documentos que, costumeiramente, instruem o processo da contratação direta para emergência.
– solicitação formal da unidade interessada;
– pesquisa de preços;
– proposta do fornecedor;
– minuta de contrato;
– verificação da validade do registro cadastral;
– comprovação de impedimento ou não do fornecedor para licitar ou contratar;
– documentação relativa à qualificação técnica, econômico-financeira e fiscal;
– documentos do Art. 26;
– relatório do controle interno, referente ao controle preventivo;
– despacho favorável do titular da Superintendência;
– despacho de ratificação do Secretário;
– parecer técnico da Assessoria Jurídica referente à aprovação da minuta de contrato e à correta instrução do processo, e verificação da qualificação do fornecedor.
A tramitação de toda essa documentação demanda o envolvimento de diversos atores, quais sejam: unidade solicitante; unidade de compra; assessoria jurídica; controladoria; aprovação do processo pelo gerente de área; despacho de ratificação pelo Secretário; publicação; e formalização do contrato. Como pode-se verificar, a liturgia imposta para contratação direta tradicional não está em harmonia com a necessidade premente de atender às situações emergenciais, embora se reconheça que por trás de cada passo na corrente de ações há a preocupação legítima com o destino dos recursos públicos e a utilização ajustada de contratação direta. Fato é que, ainda que compreendidos os temores, a ritualística antagoniza com o tempo.
Desse modo, o desafio era tornar efetivamente célere o procedimento para contratação dos bens e serviços necessários ao enfrentamento da pandemia do Covid-19, admitindo-se a inadequação do formato existente. Com o propósito de instituir um procedimento afinado com a realidade emergencial, criou-se uma dispensa especial, com ritos mais dinâmicos e documentos mais concisos e objetivos. Na balança entre temores diversos, falou mais alto o medo de o ritual congestionar a urgente contratação.
Tal fato evidencia a necessidade de depurar quais pontos merecem ser revisitados para efeito de atenuar o formalismo exacerbado da dispensa por emergência tradicional. Não se desconsideram os riscos que a não licitação pode encerrar, nem se advoga a contratação libertina. A ideia é refletir sobre o que a realidade oferece em termos de excessos nada salutares ao interesse público
Em primeiro lugar, é importante mapear e avaliar o flow efficiency (eficiência do fluxo) da dispensa tradicional adotada nos órgãos públicos. Não há validade, em uma situação emergencial, termos um rito com várias etapas se o reporte não é ágil. É hora, portanto, de se fazer o VAR[4] – cabe aqui a metáfora – do processo de contratação direta para identificar o que precisa ser revisto e adequado à realidade das contratações emergenciais e, assim, calibrar as exigências.
É impossível aceitar a justificativa de que “aqui as coisas funcionam diferentes” ou “sempre foi feito dessa forma”, pois espelha-se, assim, um olhar atomizado da realidade.
É possível, contudo, que essa imposição de um rito mais complexo decorra das orientações dos órgãos de controle, as quais acabam servindo como verdades absolutas para maioria dos agentes públicos, de tal modo que os gestores se negam a desafiar as recomendações ou questionar sua validade, disseminando o malfadado apagão das canetas. A propósito, explica Fernando Vernalha Guimarães[5]:
Decidir sobre o dia a dia da Administração passou a atrair riscos jurídicos de toda ordem, que podem chegar ao ponto da criminalização da conduta. Sob as garras de todo esse controle, o administrador desistiu de decidir. Viu seus riscos ampliados e, por um instinto de autoproteção, demarcou suas ações à sua “zona de conforto”. Com isso, instalou-se o que se poderia denominar de crise da ineficiência pelo controle: acuados, os gestores não mais atuam apenas na busca da melhor solução ao interesse administrativo, mas também para se proteger. Tomar decisões heterodoxas ou praticar ações controvertidas nas instâncias de controle é se expor a riscos indigestos. E é compreensível a inibição do administrador frente a esse cenário de ampliação dos riscos jurídicos sobre suas ações. Afinal, tomar decisões sensíveis pode significar ao administrador o risco de ser processado criminalmente. Como consequência inevitável da retração do administrador instala-se a ineficiência administrativa, com prejuízos evidentes ao funcionamento da atividade pública.
Por outro lado, os órgãos de controle justificam suas recomendações como uma reação ao estado de corrupção da Administração Pública[6]. Fato é que há uma distância entre as exigências que recaem sobre as unidades administrativas e a realidade de cada qual, o que acaba por prejudicar o atendimento do desiderato último das contratações que é o interesse público. As exigências dos órgãos de controle não podem ser uniformes para todas as esferas de governo, considerando a singularidade que separam pequenos municípios da União, por exemplo. As exigências deveriam ser moduladas para se adequarem arquitetura institucional de cada ente.
Por isso, reitera-se que se faz necessário repensar e redesenhar a tradicional contratação para dispensa de emergência, rompendo com o excesso de formalismo e retirando tudo que envolver exigências desnecessárias e desprovidas de serventia.
Com relação à possibilidade de prorrogar o contrato para além dos 180 dias, tal como preconiza o art. 4º H, não resta a menor dúvida que se trata de decisão acertada. A imprevisibilidade faz parte da natureza de um evento emergencial, ampliando as margens de incerteza da avença. Logo, a fixação de limite para o término de contrato emergencial espelha mais uma exigência burocrática, que forçará a realização de nova contratação, com todo o dispêndio e risco de descontinuidade que dela decorrem. A regra da MP deveria estimular a mudança na Lei 8666, a fim de que ali também se admitisse a contratação pelo prazo necessário para o enfrentamento da emergência, mesmo que excedente a 180 dias.
Por fim, com relação à documentação exigida na contratação emergencial, destaca-se a importância de se privilegiar o atendimento da demanda sobre a forma. A solução do problema deve ser alcançada de forma mais rápida e segura. Sendo assim, a documentação a qual deve ser aferida dos interessados deve ser apenas, e tão-somente, a estritamente necessária. Destaca-se que o art. 37, inciso XXI, da CF/88 é claro ao afirmar que somente podem ser exigidos os documentos indispensáveis à análise da capacitação técnica e financeira para a garantia da execução contratual.
Importante considerar ainda que o art. 32, da Lei nº 8.666/93, para as compras de pronto pagamento, com entrega integral, já prevê que o administrador pode abster-se de maiores rigores com relação à exigência de documentos habilitatórios. Diz a norma:
Art. 32.: os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da administração ou publicação em órgão da imprensa oficial.
§ 1o A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão.
Ora, se a lei de licitações permite que se consulte o mínimo de documentos possíveis, quando se trata de entrega imediata de bens, qual a razão aventada para agir diferente na contratação emergencial em que o escopo é o mesmo?
Fato é que a superestimada atenção à habilitação compromete a participação de potenciais interessados e, como consequência, a competitividade resta afetada. A razão destes excessos , sabe-se, é justificada pelo temor dos servidores com relação à fiscalização dos órgãos de controle[7]. Com isso, acabam exigindo todos os documentos como forma de blindagem, precavendo de responsabilização civil ou administrativa por ter adotado interpretação distinta das recomendações feitas pelo órgão de controle. O formalismo na aplicação da Lei é nefasto para as contratações públicas, pois o gestor público passa a multiplicar todas as possíveis exigências de habilitação, inclusive adicionando exigências que nem se sabe a razão de sua previsão.
Isto posto, nessa condição de contratação direta por emergência, é importante que se adotem movimentos para agilizar e dispensar os documentos que não são essenciais.
III – Termo de Referência e Projeto Básico simplificados: o que é indispensável?
O Termo de Referência (TR) e Projeto Básico (PB) são documentos que integram a fase de planejamento dos processos licitatórios e contém uma espécie de código genético da contratação. O uso da metáfora explica-se pelo fato de que, nestes documentos, encontram-se as principais informações do processo licitatório e o ajuste que se pretende celebrar . Com efeito, no Termo de Referência e no Projeto Básico devem constar os elementos essenciais adicionais ao já dispostos no edital e na minuta de contrato, sob pena de repetir as mesmas regras e criar dificuldade de compreensão, tanto para a Administração quanto para os fornecedores.
Dessa feita, os elementos descritos no art. 4º-E, § 1º, da Lei nº 13.979/20 se revelam suficientes e se aproximam do conhecimento das áreas requisitantes. Qual a serventia para as contratações públicas de documento com rol extenso de requisitos e, ainda, compilados em outros instrumentos? Muitas vezes, o que vemos é uma exigência de ritualização distante da realidade das unidades administrativas, dificultando a confecção do TR/PB e comprometendo o tempo de processamento da contratação. Qual a necessidade de constar o item garantia da execução contratual em todos os Termos de Referência? Se a garantia não for necessária, a área demandante terá que justificar a não previsão. É consabido que a exigência de garantia não é regra e deve ocorrer quando de fato se entender que há, pelo prazo do contrato, pelo objeto ou seu valor, peculiaridade que assim reclama. Isso porque garantias tendem a majorar o valor da contratação. Logo, se a regra é a não garantia, qual a funcionalidade de se apinhar ainda mais o TR? Além disso, qual a razão de constar no TR cláusulas contratuais padronizadas que já se fazem presentes na minuta de contrato?
À vista desse debate, o interesse público anseia que os serviços e ou bens sejam colocados à disposição do administrador no momento em que ele necessita. Em suma, é importante que os responsáveis pela construção deste documento estabeleçam os elementos estritamente necessários à prossecução de sua demanda e se distanciem de uma definição turva e densa de um processo de dispensa cheio de achismo e com poucas explicações.
Como adverte Yara Darcy Police Monteiro[8]: “O serviço que se pretende alcançar por meio do processo licitatório deve acontecer a tempo e a hora. De nada adianta conseguir a melhor proposta de contrato que venha com atraso de dois, três, cinco, seis meses”. O atraso é tudo que de quer evitar. A contratação mais célere é o que anima a contratação emergencial. Aliviar, tanto quanto possível o percurso, sem abandonar as cautelas de fato relevantes, deve ser o desiderato a informar toda e qualquer regra sobre contratação emergencial, seja ou não relativa ao COVID-19.
Por que apenas a contratação pandêmica há de ser mais flexível ? Existe hierarquia entre as emergências ?
IV – Estimativa de preços simplificada ou dispensada: cuidados.
De início, é importante chamar atenção para a dificuldade de se fazer uma pesquisa de preços minuciosa e que reflita verdadeiramente o mercado em um momento enredado pela situação emergencial. Usualmente, esta dinâmica já é um desafio, visto que o levantamento realizado não sofre tratamento estatístico e as fontes de coletas apresentam uma falta de simetria com a realidade local.
Em regra, a pesquisa não oferece a exata dimensão do valor estimado ou valor real por inúmeros fatores como, por exemplo, a realidade/ necessidade do órgão e a praça na qual este se situa. Uma especificação diferente, o volume de produtos, o local de entrega ou de prestação, tudo isso pode interferir no valor do bem/serviço. Assim, importar o parâmetro de contratos outros da administração pública, por exemplo, é sempre uma variável imprecisa porque as particularidades daquele ajuste dificilmente serão idênticas às do ente que agora quer contratar. Enfim, o comando normativo com exigência do dimensionamento econômico de preços, se utilizadas variáveis que não correspondem à realidade do órgão demandante, faz com que a finalidade da pesquisa colida com o seu propósito.
A Lei nº 13.979/20, alinhada à orientação da Instrução Normativa nº 5 do Ministério da Economia, prevê quais fontes podem ser consultadas. Mas, não obriga. a utilização prioritária do parâmetro do painel de preços e de contratações similares de outros entes públicos.
Ademais, a previsão legal dispensa a estimativa de preços, desde que seja excepcional e mediante justificativa. Todas as duas orientações são bem-vindas, para contratos emergenciais, já que a previsão de que seja feita uma pesquisa atual, abrangente, efetiva e parametrizada acaba por gerar um complicador, pois não há tempo hábil para a confecção de documento com este nível de detalhamento, além da possibilidade de as tabelas de preços estarem defasadas quando confrontadas com a realidade. Essa a situação de uma série de bens necessários ao enfretamento do Covid-19. Seus preços hoje distam do que mercado praticava há menos de dois meses. Por isso, a Lei veio permitir a contratação, pelo Poder Público, por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, desde que devidamente justificada.
Há que ficar claro, de outra parte, que o fornecedor busca o lucro. Seu agir não é reflexo de uma alma dadivosa, merecedora de confiança plena, ainda mais em tempos de escassez de produtos na área de saúde. Notadamente, é importante que o gestor tenha cuidado com os preços coletados e faça uma análise crítica, tentando encontrar as melhores oportunidades.
Em síntese, é possível dizer que a pesquisa de preços, segundo os cânones tradicionais, aqui representados pela IN 5, quase sempre é um entrave na engrenagem da contratação direta, além de inepta para refletir a realidade mercadológica pelos fatores já citados. Se assim o é, por que não repensar as exigências da contratação direta de que cuida a Lei 8666/93? Uma vez mais pergunta-se onde estaria a razão para a ambiguidade de tratamento se lá ou acolá o elemento comum do atendimento rápido e central?
V – O Registro de Preços e a Contratação Emergencial
A Medida Provisória nº 951, que altera a Lei nº 13.979/20, previu a utilização da dispensa de licitação para registro de preços, “quando se tratar de compra ou contratação por mais de um órgão ou entidade”.
Esta modelagem do sistema, que condiciona a participação de mais de um órgão, pode ser uma boa alternativa para os municípios de médio e pequeno porte, se for implantada por meio dos consórcios intermunicipais de saúde, que tem como finalidade atender as demandas dos municípios consorciados e já tem a expertise de gerenciar aquisições compartilhadas.
A principal questão que o SRP encerra, em tempos de COVID-19, que podem tornar inviável sua utilização, é a oscilação dos valores registrados impactados pela volatilidade do mercado. Considerando que o prazo de validade da ata de registro de preços é de 12 meses é possível que ocorra pedidos de revisão por parte do fornecedor. E tal como hoje está disciplinado no Decreto Federal 7.892/13, quando o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, o órgão gerenciador poderá liberar o fornecedor do compromisso assumido (art. 19).
Portanto, a vantagem do SRP, enquanto engrenagem que congrega demandas plurais, esbarra no possível cancelamento precoce da ata de registro de preços, considerando a impossibilidade de revisão para aumentar o preço. A solução poderia ser uma regra pontual que melhor endereçasse a questão da equação financeira da ata, possibilitando adequar a realidade mercadológica.
VI – O Covid-19 e a Necessidade de Soltarmos as amarras do formalismo na dispensa de emergência
Os efeitos do formalismo instalados nos processos de contratação por dispensa de emergência são perversos para o atingimento do interesse público. Com o propósito de evitar a corrupção, é reverenciada a processualização e são adotadas medidas burocráticas[9].
A questão que se coloca é saber o quanto as medidas burocráticas de fato desencorajam ilícitos concorrenciais ou, ao revés, o quanto podem alimentar o desarranjo. Se o ritual burocrático pudesse ser visto como vacina, o cancro da corrupção nas contratações públicas teria sido extirpado e os contratos estariam de fato a atender os propósitos que desencadearam a ação administrativa. Sabe-se, todavia, que o passado registra desacertos e insatisfação e o futuro não é alvissareiro.
A provocação não é nova e não há a pretensão de descer às profundezas em artigo cujo propósito é apenas estimular a discussão. Mas o Covid-19 acaba por evidenciar, ainda mais, o esgotamento da arquitetura erguida sobre o procedimento de contratação direta em situações emergenciais .
Por fim, é importante deixar assentado que “os estudiosos da mudança declaram que toda transformação decorre de uma crise. Crise aqui entendida como um momento de separação, um momento de perigo, mas, sem sombra de dúvida, um momento de oportunidade e de decisão. Utilizando aqui o exemplo dos chineses que representam a palavra crise por meio de um ideograma, o wei-jin, resultado da combinação de dois elementos: perigo e oportunidade”[10].
Assim, reitera-se a importância de revisar os parâmetros de contratação por emergência de qualquer sorte, assim como refletir acerca das práticas existentes para obter-se avanço significativo e efetivo.
Evidentemente que não entendemos que a
contratação emergencial posso ocorrer em desprestigio ao interesse público.
Assim, o controle sobre ela há de ser ainda mais intenso, a fim de se apurar a
existência de suporte fático-jurídico a sustentá-la e a fim de se verificar os
critérios utilizados para a escolha do contratado. A questão do valor é
igualmente relevante mas sabe-se que o mercado inflacionou os valores,
vitimizando hospitais privados também.[11]
A solução para a especulação não passa por condenar o agente público que de
fato não tinha outra alternativa senão a compra do produto quando esse era
indispensável ao enfretamento da pandemia. [12] [13]
[1] De acordo com a IN 2, a hipótese de dispensa por emergência fica dispensada da elaboração do estudo técnico preliminar. Essa temática será tratada em tópico próprio.
[2] Art. 4º-E, § 1º, da Lei nº 13.979/20.
[3] Estudo apresentado por Alessandro Anibal Martins da Almeida, pag. 289, Compras na Administração Pública, 1ª ed., Natal, EDUFRN, mostra que o excesso de rigidez e formalismo foram os fatores que mais geraram impactos no tempo de execução dos processos.
[4] O VAR (vídeo de assistant referee) significa o aviso de que um lance precisa ser revisto com ajuda do árbitro assistente.
[5] O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. Acesso em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/fernando-vernalha-guimaraes/o-direito-administrativo-do-medo-a-crise-da-ineficiencia-pelo-controle
[6] Maria Coeli Simões Pires, comentando sobre a lei de Licitações e Contratos, Manual de Licitações e Contratos e Sanções Penais e Administrativas – Programa Permanente de Desenvolvimento Municipal – PRODEMU – pag. 9, quando trata da Lei nº 8.666/93, faz referência a essa preocupação como pano de fundo da construção do texto legal.
[7] Infelizmente o art. 113 da Lei nº 8.666/93 trouxe uma inversão da presunção de boa-fé atribuindo aos servidores a responsabilidade de demonstrar que o procedimento da contratação, sob sua custódia, respeitou os princípios da legalidade e regularidade da despesa e execução.
[8] Ato Convocatório: Vícios Insanáveis”, BLC, set./1997, nº 9, ano X, pag. 473.
[9] Sugestão de leitura do artigo de Vanice Regina Lírio do Vale – Do Sistema Brasileiro de Licitações ou de como os meios passaram a justificar os meios, ILC, nº 42, agosto/97, pag. 595.
[10] Inaldo da Paixão Santos Araújo. Mudanças de Paradigmas na Auditoria Pública. ILC, nº 44, outubro/97, p.805.
[11] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/25/alta-de-precos-pressiona-redes-de-saude-e-ameaca-acoes-contra-covid-no-pais.htm
[12] A AGU recomenda que se acionem órgãos de defesa do consumidor e da concorrência. http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/908837
[13] O art. 22 § 1o da Lei 13.655/18 destaca o primado da realidade.
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