Nos últimos dias, as informações e mentes estão concentradas no COVID-19 e, no mundo todo, medidas públicas tem sido adotadas para a segurança dos cidadãos, bem estar, saúde, esclarecimento e atendimento.
A iniciativa privada, indivíduos e coletividades também estão se organizando e contribuindo para que, como sociedade global, consigamos passar por este período com minimização de dano e ampliação dos valores humanos de solidariedade, empatia, zelo e sentido de pertencimento.
Além da dor, física, psiquica e emocional daqueles diretamente afetados pelo coronavírus e de seus familiares, pelas tristes perdas que já ocorreram, esta crise tem gerado medo e ansiedade também em pessoas não expostas ao vírus. Às primeiras, minha solidariedade e às segundas digo: a incerteza não pode comprometer nossa capacidade humana de focar em soluções e agir no que está ao nosso alcance. Além da saúde pública, teremos implicações sociais e econômicas a médio prazo e sobre elas devemos estar preparados como sociedade, antecipando cenários na medida do possível e nos planejando para a definição e implementação de estratégias, inclusive no âmbito das licitações.
Esta é uma coluna mensal sobre contratações públicas e o novo PL 1292/95. E o que, neste espaço, posso me propor a contribuir no cenário atual do COVID-19?
A resposta é: informação, reflexão e convite à ação.
Serei objetiva, linguagem clara, assertividade e foco.
Estamos preparados com a lei geral de licitações e contratos a situações como esta?
Há algo que, quando superada a crise, possa resultar em aprendizado no âmbito do direito administrativo e em melhorias nas previsões até o momento constantes no PL 1292/95?
Vejamos.
A Lei 8.666/93 fornece segurança jurídica para contratações emergenciais (artigo 24, IV), desde que precedidas da comprovação administrativa inequívoca da necessidade do afastamento da regra legal do dever de licitar e presentes os demais requisitos do artigo 26, parágrafo único:
Artigo 24. É dispensável a licitação:
IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2o e 4o do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8o desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos.
Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos:
I – caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, quando for o caso;
II – razão da escolha do fornecedor ou executante;
III – justificativa do preço.
IV – documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
A recente Lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, expressamente dispôs sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Seu artigo 4º possibilita:
Art. 4º Fica dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
§ 2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
Os permissivos legais não implicam em utilização desarrazoada, não motivada e pressupõem observância efetiva da impessoalidade e princípios da Administração Pública, sendo recomendável ações institucionais que possibilitem a demonstração à sociedade da transparência pública nas contratações, além da especial atenção dos gestores públicos para verificarem previamente as condições do mercado e valores, evitando-se que, a excepcionalidade da situação de saúde pública, social e econômica decorrente do coronavírus seja via de entrada como contratados pelo setor público de fornecedores inescrupulososos e antiéticos com elevem sobremaneira seus preços. Em tais situações, é dever a comunicação aos órgãos competentes para apuração de eventual configuração de crimes contra a economia e relações de consumo (Lei 8.137/90).
No tocante aos contratos em execução, mormente serviços, há de se atentar para a especial situação dos terceirizados e as autoridades gestoras dos órgãos públicos não deverão desatender, em relação a estes, as cautelas de saúde. Assim, diálogo junto às contratadas é necessário, a fim de garantir a proteção à saúde dos terceirizados e a ausência de prejuízos à Administração. Neste sentido, obtida autorização telefônica da autoridade para divulgação pública, destacamos a atuação proativa da Superintendência de Administração da Advocacia-Geral da União em São Paulo, reunindo-se com as empresas contratadas e empreendendo ações práticas para resguardar a saúde dos terceirizados, sem que se configure ato de ingerência na administração das contratadas. Acrescento, por oportuno, que foram adotadas também medidas preventivas para uma gestão pública sustentável, no tocante ao horário de funcionamento, teletrabalho, dentre outras. Este, aliás, tem sido o espírito público da Advocacia-Geral da União, conforme Portaria 84, de 17 de março de 2020, do Advogado-Geral da União e medidas balizadoras para aplicação nacional nas unidades da AGU pela Secretaria-Geral de Administração, orientadoras para proteção e redução de riscos para o enfrentamento da emergência de saúde decorrente do COVID-19.
Há notícias de vários outros órgãos públicos pelo Brasil adotando ações fundamentais e imprescindíveis para que as contratações públicas e a gestão organizacional das atividades sejam condizentes com a pandemia na qual nos encontramos e sem prejuízo à prestação dos serviços aos cidadãos. Neste sentido, a suspensão dos prazos processuais até 30 de abril, no âmbito do Poder Judiciário nacional, por Resolução aprovada em 19 de março pelo Conselho Nacional de Justiça, evidencia o comprometimento do Judiciário para com a proteção dos cidadãos, partes, advogados, servidores, terceirizados e estagiários e gerará a necessidade prática de equacionamento administrativo e de gestão dos contratos públicos vigentes.
Assim, este é, mais do que nunca, um momento no qual boas práticas deverão ser replicadas e disseminadas, em uma rede colaborativa de informações rumo à uma gestão pública efetivamente sustentável perante a sociedade.
No tocante ao cenário de médio e longo prazo, a excepcionalidade hoje vivenciada e seus impactos na execução das contratações públicas vigentes leva-nos a uma segunda reflexão, referente à importância do planejamento e gerenciamento de riscos ser efetivamente internalizado como uma cultura no setor público, seja por capacitações, seja por estabelecimento de novos fluxos internos que confiram cada vez mais efetividade à previsão constante na IN 5/2017 – SEGES/MPDG. Sobre este tema, destacamos a atuação precursora do Tribunal de Justiça do DFT que, por intermédio de sua Coordenadoria de Gestão Socioambiental, estabeleceu dinâmicas de reuniões, planejamento coletivo envolvendo diversos setores para diagnóstico, definição das estratégias de gestão, evitando-se decisões compartimentalizadas. Sobre o tema, o Plano de Logística Sustentável é ferramenta fértil para articulação concatenada entre os setores.
Ao final, o direito administrativo tem um papel crucial no enfrentamento de situações excepcionalíssimas como a do COVID-19 e seus impactos nas contratações e gestão pública brasileiras. Assim, há de se ressaltar que o PL 1292/95 destaca o desenvolvimento sustentável como um princípio licitatório e o momento atual é propício para que, com clareza de espírito e ideias, iniciemos um movimento de reflexão no campo jurídico sobre as previsões legais sobre contratações públicas e sua suficiência, ou não, em cenários como o atual. São reflexões a se iniciar e que prosseguirão com o tempo e com a identificação das dificuldades encontradas pelos gestores públicos brasileiros.
Este é um debate necessário, com olhar atento aos próximos meses, a fim de que, em tempo hábil, se verifique se haverá necessidade ou não de inserção de novas previsões no PL que contemplem o atendimento do interesse público em situações excepcionais como a atual.
Nota de rodapé
Agradeço à Dra. Adriana Tostes, Coordenadora de Gestão Socioambiental do TJ DFT pelas reflexões conjuntas sobre o cenário atual e seus impactos nas dimensões sociais da sustentabilidade nos contratos de prestação de serviços.