1. Introdução
A participação de empresas estrangeiras nas licitações é tema que sempre gera discussões.
Há dúvidas sobre a própria possibilidade em tese de participação de licitantes estrangeiros em certos certames, sobre os requisitos que devem ser atendidos por esses concorrentes, sobre a forma de se comprovar a qualificação técnica a respeito de atividades desempenhadas no exterior, bem como sobre como devem ser conduzidos os procedimentos que contam com a participação de empresas estrangeiras.
O projeto da nova lei de licitações procura detalhar melhor as regras sobre essas questões.
2. Conceito de licitação internacional
Uma novidade marcante do projeto de lei em relação à Lei 8.666 consiste na criação de um conceito de licitações internacionais.
Conforme já pudemos destacar em obra doutrinária sobre o tema, a Lei 8.666, apesar de utilizar a denominação, em nenhum momento define o que é licitação internacional[1]. Isso provoca certas dificuldades na aplicação das normas. Por um lado, muitas vezes não se sabe se uma licitação é realmente internacional. Por outro, há dúvidas sobre as normas aplicáveis – afinal, se existe a figura da licitação internacional, é porque ela apresenta certas peculiaridades em relação a outros tipos de certames.
Essa situação tende a se alterar com o projeto de nova lei de licitações.
O inciso XXXV do art. 6º do projeto de lei define licitação internacional como sendo a “licitação processada em território nacional na qual é admitida a participação de licitantes estrangeiros, com a possibilidade de cotação de preços em moeda estrangeira, ou licitação na qual o objeto contratual pode ou deve ser executado no todo ou em parte em território estrangeiro”.
Assim, a definição de licitação internacional é composta pelos seguintes elementos: (1) trata-se de licitação realizada no Brasil, (2) admite-se a participação de estrangeiros, (3) há a possibilidade de cotação de preços em moeda estrangeira, sendo que (4) se o objeto puder ou dever ser executado no todo ou em parte em território estrangeiro, estará caracterizada também a licitação internacional, independentemente da presença dos outros elementos.
3. A admissão da participação de estrangeiros
Veja-se que a definição de licitação internacional tem como um dos elementos a admissão da participação de estrangeiros. Portanto, é inegável que empresas estrangeiras poderão participar de licitações internacionais – desde que, obviamente, atendam os requisitos de habilitação exigidos pelo instrumento convocatório e pela legislação.
De todo modo, embora a redação do inciso XXXV do art. 6º do projeto de lei possa gerar alguma dúvida, parece-nos claro que as empresas estrangeiras poderão participar também de licitações nacionais. Em outras palavras: não apenas as licitações internacionais admitem a participação de licitantes estrangeiros. Ao mencionar que estrangeiros podem participar de licitações internacionais, não nos parece que o dispositivo tenha excluído essa possibilidade em relação às licitações nacionais. A regra apenas estabelece que, nas licitações internacionais, a participação de estrangeiros será necessariamente admitida, mas não restringe a participação de estrangeiros às licitações internacionais.
Interpretar o dispositivo de forma diversa seria contrário inclusive ao esforço que se faz justamente para que haja uma maior abertura do mercado brasileiro de contratações públicas às empresas estrangeiras, que é uma tendência irrefutável – como atestam as discussões a respeito da possível adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais da OMC.
3. Incidência do princípio da isonomia
Sempre que se fala em participação de estrangeiros, é necessário considerar a aplicação do princípio da isonomia. Ao mesmo tempo que as licitações são, em princípio, abertas a licitantes estrangeiros, deve-se conferir um tratamento isonômico entre eles e os licitantes nacionais.
Justamente por isso, o inciso II do art. 9º do projeto de lei estabelece que é vedado ao agente público, ressalvados os casos previstos em lei, “estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamento, mesmo quando envolvido financiamento de agência internacional”.
4. Condições específicas
Estabelecido que deve ser observado o princípio da isonomia, o projeto de lei detalha algumas condições específicas.
4.1. Cotação em moeda estrangeira
O §1º do art. 51 estabelece que, quando for possível ao licitante estrangeiro cotar preço em moeda estrangeira, o licitante brasileiro igualmente poderá fazer o mesmo. A diferença é que o licitante brasileiro deverá receber seus pagamentos necessariamente em moeda corrente nacional (§2º do art. 51).
4.2. Garantias
O §3º do art. 51 do projeto de lei estabelece que as garantias de pagamento ao licitante brasileiro deverão ser equivalentes àquelas que são oferecidas ao licitante estrangeiro. Não se admitem, portanto, garantias diferenciadas em função da nacionalidade do licitante.
4.3. Gravames incidentes sobre os preços
O §4º do art. 51 do projeto de lei estabelece que os gravames incidentes sobre os preços constarão do edital e serão definidos a partir de estimativas ou médias dos tributos.
Apesar de genérica, a regra parece suplantar a ideia, defendida por parte da doutrina produzida à luz da Lei 8.666, de que a “equalização” de propostas de licitantes estrangeiros equivaleria a acrescentar a carga tributária nacional sobre elas.
Evidentemente, equalizar propostas não significa acrescentar a carga tributária brasileira à proposta de um licitante estrangeiro. Significa, na verdade, que a Administração Pública deverá considerar todos os custos que incidirão sobre a entrega do objeto contratual, os quais podem variar em função da nacionalidade do licitante contratado, do local de entrega e do regime aduaneiro adotado. Por brevidade, reportamo-nos ao que já defendemos em sede doutrinária a respeito do tema, entendimento que já foi acolhido pelo TCU[2].
Assim, parece-nos que a correta interpretação do §4º do art. 51 do projeto de lei é a de que deve haver clareza a respeito dos gravames incidentes sobre os preços, de modo que a comparação se dê sobre os valores finais das propostas, já incluídos os gravames incidentes, os quais devem obviamente ser considerados.
4.4. Equivalência de regras e condições
O §5º do art. 51 do projeto de lei prevê que as propostas de todos os licitantes (brasileiros e estrangeiros) estarão sujeitas às mesmas regras e condições, na forma estabelecida no edital.
A rigor, trata-se de aplicação direta do princípio da isonomia. Significa que não podem ser estabelecidas regras e condições diferenciadas a respeito das propostas, a não ser que tenham embasamento em lei.
4.5. Impossibilidade de estabelecimento de barreiras a licitantes estrangeiros e a questão das margens de preferência
O §6º do art. 51 do projeto de lei estabelece que, observados os termos da lei, o edital não poderá prever condições de habilitação, classificação e julgamento que constituam barreiras de acesso ao licitante estrangeiro. Admite-se, no entanto, a previsão de margem de preferência para bens produzidos no País e serviços nacionais que atendam às normas técnicas brasileiras, na forma definida no art. 26 do projeto de lei.
Portanto, a regra geral será sempre a do tratamento uniforme. Não é possível, a pretexto de criar regras de habilitação, classificação e julgamento, estabelecer previsões que acabem sendo meras barreiras à entrada de licitantes estrangeiros no mercado de contratações públicas brasileiras.
A exceção fica por conta da margem de preferência a bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras (art. 26, inciso I, do projeto de lei). Nesses casos, e desde que haja uma decisão fundamentada a respeito da necessidade de se estabelecer uma margem de preferência do caso concreto, será admissível o estabelecimento de uma margem que, em regra, será de até 10% (dez por cento). O percentual em cada caso também deverá ser estabelecido de modo fundamentado e com parcimônia, justamente para que não haja uma barreira à entrada de licitantes estrangeiros. Já para os bens manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo federal, a margem de preferência poderá ser maior, de até 20% (vinte por cento).
4.6. Documentação para demonstração da qualificação
O §4º do art. 66 do projeto de lei prevê que, no caso de licitantes estrangeiros, a comprovação de sua qualificação poderá ser feita por meio de atestados ou outros documentos hábeis emitidos por entidades estrangeiras, acompanhados de tradução para o português, salvo se comprovada a inidoneidade da entidade emissora.
A regra, portanto, procura ter a maior abertura possível. Isso é importante, na medida em que não há a emissão de atestados de qualificação técnica formais em boa parte dos países. Assim, é necessário que a comissão de licitação examine documentos que, na forma, podem ser muito diferentes dos atestados de qualificação técnica emitidos no Brasil, mas que podem ser igualmente idôneos na comprovação da qualificação do licitante estrangeiros.
Além disso, o parágrafo único do art. 69 do projeto de lei estabelece que as empresas estrangeiras que não funcionem no País deverão apresentar documentos equivalentes, na forma de regulamento emitido pelo Poder Executivo federal.
4.7. Momento da comprovação do registro ou inscrição na entidade profissional competente
O §7º do art. 66 do projeto de lei estabelece que, nos casos em que se exigir dos licitantes o registro ou inscrição na entidade profissional competente, as sociedades empresárias estrangeiras poderão comprovar isso por meio da apresentação, no momento da assinatura do contrato, da solicitação de registro perante a entidade profissional competente no Brasil.
Portanto, não se exige a demonstração no momento da habilitação, nem se estabeleceu que o licitante estrangeiro já deverá ter o registro ou inscrição propriamente ditos. Bastará demonstrar, no momento de assinatura do contrato, que solicitou o registro perante a entidade profissional competente.
A solução permite maior abertura aos licitantes estrangeiros. Na prática, dispensa-os de apresentar o documento já com a habilitação, o que poderia ser um desestímulo: o licitante estrangeiro precisaria providenciar o registro ou inscrição mesmo antes de saber se seria contratado. O ponto negativo, no entanto, é que, se o licitante estrangeiro por algum motivo não obter realmente o registro ou inscrição necessários, a Administração precisará contratar outro concorrente, o que envolverá demoras e inclusive despesas com a rescisão do contrato.
Note-se que essa possibilidade de comprovação futura é restrita à eventual exigência de registro ou inscrição perante a entidade profissional competente. A mesma solução não se aplica a qualquer outro requisito de qualificação.
5. Conclusão
Como se pode ver, o projeto de lei, além de criar uma definição de licitação internacional, procura detalhar mais algumas previsões relativas à participação de licitantes estrangeiros. O detalhamento é salutar para que se evitem dúvidas. De modo, geral, os dispositivos incorporam certos entendimentos que foram construídos ao longo dos anos de aplicação da Lei 8.666. Outro assunto diz respeito às licitantes realizadas com financiamento externo. No entanto, esse tema deverá ser objeto de outro artigo específico.
[1] SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, capitulo 1.
[2] SCHWIND, Rafael Wallbach. Licitações internacionais: participação de estrangeiros e licitações realizadas com financiamento externo. 2.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017, item 2.6.5.