Os efeitos de uma sanção administrativa prevista na legislação licitatória, aplicada a um particular, ao cabo de um processo sancionatório, seja de redução patrimonial, a exemplo das multas, ou de penas restritivas de direito, como é o caso da declaração de inidoneidade, devem ser suportados pela pessoa apenada, de forma que os efeitos pedagógicos da punição sejam concretizados, desestimulando, assim, a prática do comportamento infracional prejudicial à Administração no âmbito das contratações públicas.
Ocorre, todavia, que as pessoas físicas integrantes do quadro societário da pessoa jurídica apenada, em especial, com punições restritivas de direito de licitar e contratar, com o escopo de se esquivar dos efeitos da sanção aplicada, constituem uma outra empresa, com nítido desvio de finalidade, e passam a acudir novamente ao chamado da Administração, participando de novas licitações, credenciamento, e celebrando o competente contrato administrativo, atas de registro de preços etc.
Diante do sucesso desta indigna empreitada, constata-se que a finalidade da sanção administrativa não é alcançada, o que permite que os sócios da pessoa jurídica apenada, por meio da constituição de novas empresas, continuem participando de licitações e celebrando contratos e passem novamente a incorrer em infrações administrativas, o que é flagrantemente prejudicial para a Administração na perseguição dos objetivos institucionais alcançados por meio de objetos em que confia a sua execução a particulares.
Ante a esta situação, tem-se que a constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social ou semelhante, com os mesmos sócios, em substituição à outra pessoa jurídica impedida ou declarada inidônea para licitar com a Administração Pública com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à legislação licitatória, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para se estenderem os efeitos da punição administrativa à nova sociedade constituída.
Tal como é hoje consagrada, a desconsideração da personalidade
jurídica é aplicável nos casos em que se desvia a pessoa jurídica de sua
legítima finalidade, o que caracteriza abuso de direito, com o fim de lesar
terceiros ou violar a lei, a configurar fraude, sendo tal entendimento
agasalhado pelo Poder Judiciário[1]
e pelas
Cortes de Contas.[2]
Não obstante inexista expressa previsão na legislação licitatória, a desconsideração da personalidade jurídica é atualmente amparada em lei em outras hipóteses, a exemplo do art. 14 da Lei fed. nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção); do art. 28, § 5º, da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor); do art. 34 da Lei nº 12.529/2011 (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência); do art. 4º da Lei nº 9.605/1998 (dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente); do art. 50 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil brasileiro) e, por último, do art. 133[3] c/c o art. 15 da Lei fed. nº 13.105/2015 (Código de Processo Civil), sendo aplicada no atual sistema punitivo das contratações públicas.
Futuramente, em razão do disposto no art. 159[4] do Projeto de Lei Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 1.292-E, de 1995, do Senado Federal (PLS nº 163/1995 na Casa de origem), a desconsideração da personalidade jurídica será legalmente prevista no sistema punitivo, continuando a ser e promovida pela própria Administração sancionadora, de forma autoexecutória, uma vez ser o meio para garantir a efetividade da ação administrativa punitiva, devendo a desconsideração ser decretada pelo próprio órgão ou entidade punidora. Não se trata, destaque-se, da aplicação de uma nova sanção administrativa, mas apenas da edição de um ato garantidor de efetividade à penalidade anteriormente aplicada pela própria Administração.
Entende-se, por derradeiro, e em razão de reverenciar o princípio do devido processo legal, que a decretação da desconsideração da personalidade jurídica deverá ocorrer ao cabo de processo administrativo, que poderá ser deflagrado por meio de uma representação oferecida pela comissão de licitação, pregoeiro ou particular, devendo a fraude ou o abuso de direito ser amplamente demonstrado e comprovado, além de serem garantidos a ampla defesa e o contraditório ao particular.
Somente após a efetiva decretação da desconsideração da personalidade jurídica, ao cabo do competente processo administrativo, é que a pessoa jurídica poderá ser afastada do processo licitatório.
No futuro, com expressa previsão legal,
espera-se que este mecanismo gere efetividade no sistema punitivo, de forma a fortalecer tal
prerrogativa estatal, afastando maus intencionados que se aproximam da Administração Pública
com o intento de apenas lesar o erário, dilapidando os já escassos recursos públicos.
[1] “A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída).
A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultados ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. nº 15.166/BA. 2ª Turma. Relator: Ministro Castro Meira. Julgado em 07.08.2003. DJU, Brasília, DF, 08 set. 2003.)
[2] “REPRESENTAÇÃO FORMULADA COM FULCRO NO ART. 113, § 1º DA LEI DE LICITAÇÕES. EMPRESA CONSTITUÍDA COM O INTUITO DE BURLAR A LEI. FRAUDE EM LICITAÇÃO. AUDIÊNCIA. REJEIÇÃO DAS RAZÕES DE JUSTIFICATIVA. DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE DE LICITANTE. NULIDADE DO CERTAME E DA CONTRATAÇÃO. 1. Confirmado que a empresa licitante foi constituída com o nítido intuito de fraudar a lei, cabe desconsiderar a sua personalidade jurídica de forma a preservar os interesses tutelados pelo ordenamento jurídico. 2. Deve ser declarada a nulidade de licitação cujo vencedor utilizou-se de meios fraudulentos.” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 928/2008. Plenário. Relator: Ministro Benjamin Zymler. Sessão de 21.05.2008. Acesso em: 13 jun. 2017.)
[3]“Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.”
[4] “Art. 159. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou à empresa, do mesmo ramo, com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.”