Conforme destacado ao Observatório da Nova Lei de Licitações, o Projeto de Lei nº 1.292/1995, Projeto da Nova Lei de Licitações, indo ao encontro da valorização do combate à corrupção e do incentivo à cultura da ética, integridade e transparência, prevê a obrigatoriedade de implementação de Programas de Integridade e Compliance em contratações de grande vulto, nos termos de seu artigo 25, §4º, bem como como condição de reabilitação de licitantes ou contratadas que apresentam declaração ou documentação falsa exigida para o certame, prestam declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato (artigo 154, VIII) ou praticam os atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 (artigo 154, XII).
Além das disposições anteriores, o Projeto da Nova Lei de Licitações inovou, disciplinando ainda mais uma hipótese de valorização da adoção de Programas de Integridade por licitantes. Dessa forma, em seu artigo 59, inciso IV, o Projeto de Lei nº 1.292/1995 disciplina o desenvolvimento de Programas de Integridade pelas licitantes como critério de desempate de duas ou mais propostas do certame:
Art. 59 em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação;
II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei;
III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento;
IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle.
Da análise do dispositivo citado, percebe-se mais uma vez a intenção do Projeto da Nova Lei de Licitações em influenciar a mudança de cultura da corrupção sistêmica nas contratações públicas mediante o incentivo à implementação de Programas de Integridade nas empresas licitantes. Assim, a partir de incentivos normativos, busca-se o reconhecimento do desenvolvimento dos Programas de Integridade por empresas que participam de certames públicos, garantindo-se benefícios no critério de eventual desempate.
O Projeto de Lei, nesses termos, adota prática que seria uma espécie de “nudge” ao combate à corrupção nas contratações públicas, isto é, uma “cutucada”, um “empurrão”, que não impõe uma obrigação às licitantes, mas as orienta para o desenvolvimento de Programas de Integridade.
A ideia proposta na Teoria de “nudge” de Richard Thaler e Cass Sustein,[1] justamente, sustenta um “empurrão” para influenciar a tomada de decisão em um determinado sentido, diante da realização de intervenções que preservem a liberdade de escolha. Isso permite, por exemplo, maior efetividade da disciplina normativa, eis que o atendimento de uma imposição legal não ocorrerá por simples obrigação normativa, mas mediante um cumprimento voluntário do que se propõe com a norma.[2]
Não é novidade que corrupção “dissemina o descrédito nas instituições públicas e privadas, subverte acordos de lealdade, fragiliza regras de confiança social e vilipendia o mérito”,[3] sobretudo em se tratando de contratações públicas. Assim, importante discorrer sobre o comportamento dos licitantes para que o objetivo da norma proposta no artigo 59, inciso IV, seja atingido.
Como qualquer comportamento social, o comportamento de licitantes será sempre determinado por valores, princípios, normas de conduta e padrões de comportamento existentes.[4] Assim, o incentivo a mudança de determinado padrão de comportamento de uma organização será um importante instrumento de autoconhecimento e aculturamento para uma realidade da integridade, por exemplo. E a integridade, que pode ser considerada o oposto da corrupção, permite maior confiança entre os indivíduos, eis que traz consigo o valor da lealdade.[5] Assim, essa mudança de cultura poderá proporcionar, até mesmo, aumento de confiança nos certames públicos, atraindo empresas qualificadas e idôneas que outrora se afastaram desse mercado.
Ocorre, tal mudança ocorrerá apenas se as licitantes, de fato, aderirem a essa nova cultura proposta, que deverá decorrer, essencialmente, por vontade própria das empresas – ainda que por influência do Estado -, mediante o comprometimento de sua alta administração. Do contrário, será apenas mais um cumprimento forçado de disciplinas legais, que, em que pese no curto prazo sejam efetivas, a longo prazo não mudarão a realidade que se pretende combater: custo propina e fraude nas licitações.
Um dos maiores riscos ao atendimento dos “nudges” relacionados à licitação e contratos é, justamente, a falta de um modelo de conduta ética endossado pela alta administração das empresas privadas, aliado à incompatibilidades entre o comportamento e o discurso daqueles que ocupam os cargos da alta administração.[6] Daí, por exemplo, emergiu o problema de grande parte das empresas envolvidas na operação Lava Jato, que, em que pese possuíssem Programas de Integridade, não detinham em seus cargos diretores com o comprometimento necessário.[7]
O comprometimento da alta administração representa, dessa maneira, o ditado em inglês “walk the talk”, que significa fazer o que se discursa.[8] Assim, a alta administração deve dar o exemplo, deve se manifestar e propagar a cultura do compliance, conferindo apoio incondicional com recursos humanos e financeiros.[9]
A credibilidade da implementação de uma nova cultura organizacional, dessa forma, está intrinsecamente vinculada ao exemplo prático de seus gestores, tendo em vista que de nada vale a demonstração de entusiasmo da alta administração ou a reserva de orçamento para a área de compliance, quando aquela não demonstra interesse no tema e suas atitudes não coadunam com o conteúdo das normas da sociedade, seus valores e os treinamentos aplicados.[10]
O artigo 59, inciso IV, portanto, busca incentivar e influenciar o comportamento ético das licitantes, mediante a implementação de Programas de Integridade efetivos – por vontade própria – o que vai de encontro aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência disciplinados no caput do artigo 37, da Constituição da República de 1988.
Nesses termos, é importante registrar que o “nudge” aqui apresentado – consideração do desenvolvimento de Programas de Integridade por licitantes como critério de desempate – não viola o artigo 37, inciso XXI da CRFB/1988,[11] já que em nenhum momento o Projeto de Lei nº 1.292/95 estabelece a implementação dos Programas de Integridade como condição de habilitação, isto é, não se trata de uma condição à participação no certame, mas, sim, de um incentivo à preferência em eventual empate de propostas. Assim, qualquer empresa poderá participar de certames licitatórios, possuindo ou não Programas de Integridade.
É importante deixar claro que o valor apresentado nas propostas das licitantes, a sua capacidade técnica e o atendimento aos demais documentos habilitatórios continuarão sendo os únicos critérios classificatórios e habilitatórios à obtenção da proposta mais vantajosa pela Administração Pública. Apenas em caso de eventual desempate é que serão escolhidas as empresas que estejam buscando adequação à nova realidade do mercado: combate à corrupção mediante instrumentos de prevenção, mitigação e repressão de atos ilícitos e fraude às contratações, como os Programas de Integridade. Portanto, a proposta legislativa apresentada – implementação de programa de integridade como critério de desempate – não inviabiliza a participação de empresas sem Programas de Integridade implementados em licitações públicas.
Finalizo afirmando, dessa forma, que: já que não há
obrigatoriedade ao desenvolvimento de Programas de Integridade para
participação da licitação e avaliação de critérios de habilitação, não há que
se falar em exigência de qualificação técnica dispensável, e, tampouco,
restrição ao caráter competitivo do certame, devendo “nudges” como o
ora proposto serem melhor explorados pela Administração Pública, especialmente
na área de licitações e contratos.
[1] THALER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R.Nudge: o empurrão para a escolha certa. 2008.
[2]A principal advantage of nudges, as opposed to mandates and bans, is that they avoid coercion. Even so, they should never take the form of manipulation or trickery. The public should be able to review and scrutinize nudges no less than government actions of any other kind. SUSTEIN, Cass R. Nudging: A Very Short Guide. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2499658>. Acesso em: 05 fev. 2020.
[3]ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 27.
[4]Idem, p. 41.
[5]Idem, p. 49.
[6]CLAYTON, Mona. Entendendo os desafios de Compliance no Brasil: um olhar estrangeiro sobre a evolução do compliance anticorrupção em um país emergente. In. DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique (Coord.). Temas de Anticorrupção e Compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 152.
[7] Sobre o tema cf. LEGAL, ETHICS, COMPLIANCE – LEC. Odebrecht: estabelecendo um novo padrão. Disponível em: <https://lec.com.br/blog/odebrecht-estabelecendo-um-novo-padrao/>. Acesso em: 12 dez. 2019.
[8]ANDRADE, Renata Fonseca. Compliance no relacionamento com o governo. In. Governança, Compliance e Cidadania. NOHARA, Irene Patrícia; PEREIRA, Fábio Bastos. (coord). Governança, Compliance e Cidadania.2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.p. 353.
[9]CARVALHO, Itamar; ALMEIDA, Bruno. Programas de Compliance: foco no programa de integridade. In. CARVALHO, André Castro; ALVIM, Tiago Cripa; BERTOCELLI, Rodrigo de Pinho; VENTURINI, Otávio (Coord.). Manual de Compliance. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 62-63.
[10]PIRONTI, Rodrigo; ZILIOTTO, Mirela Miró. Compliance nas contratações públicas: exigências e critérios normativos. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 126.
[11] Art. 37 (…) XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifou-se).