A origem do projeto no Senado Federal
O projeto da “nova Lei de Licitações” surgiu no Senado Federal em 2013, autuado como PLS nº 559/2013[1]. O texto da proposição[2] foi apresentado em 23/12/2013 pela Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993), instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19, de 28/05/2013[3].
A partir do ato de constituição da referida Comissão Temporária, é importante observar que o escopo inicial do colegiado seria “debater e apresentar proposta de atualização e modernização da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993“. Ou seja, não havia uma intenção inicial no Senado Federal de se propor uma “nova” lei de licitações, substituindo, por completo, a famigerada Lei nº 8.666/1993.
Após o recebimento de 56 (cinquenta e seis) emendas de Plenário, o PLS nº 559/2013 foi analisado pelas seguintes Comissões Permanentes: Constituição e Justiça (CCJ), Assuntos Econômicos (CAE) e Serviços de Infraestrutura (CI) e, ainda, pela Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional (CEDN), na qual foi apresentado, em 09/11/2016, mediante relatório do Senador Fernando Bezerra, substitutivo ao texto inicial da Comissão Temporária.
Submetido o texto ao Plenário e diante de novas emendas apresentadas, enfim, em 13/12/2016, foi aprovado o texto final do PLS nº 559/2013[4].
O percurso na Câmara dos Deputados
Após longa tramitação no Senado Federal (dezembro de 2013 a dezembro de 2016), o PLS nº 559/2013, em fevereiro de 2017, foi encaminhado para análise da Câmara dos Deputados, sendo autuado como PL nº 6.814/2017.
Considerando que a matéria do PL envolvia competência de mais de três comissões permanentes, nos termos do art. 34, II, do RICD, o Presidente da Câmara determinou a criação de “Comissão Especial” para análise da matéria. A Comissão Especial foi de fato criada em 27/02/2018, tendo como Presidente o Deputado Augusto Coutinho (SD/PE) e como Relator o Deputado João Arruda (PMDB/PR).
Em 28/02/2018, foi apresentado pelo Líder da Minoria na Câmara, Dep. José Guimarães (PT/CE) requerimento para apensação do PL nº 6.814/2017 ao PL nº 1.292/1995[5], tendo em vista que o art. 143, II, “b”, Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), determina a junção de projetos com temática conexa ou correlata, devendo ter precedência “a mais antiga sobre as mais recentes proposições“.
O requerimento foi deferido pela Mesa Diretora da Casa, que determinou o apensamento do PL nº 6.814/2017 ao agora principal PL nº 1.292/1995 e, ainda, alterou “o nome da Comissão Especial do Projeto de Lei n. 6.814/2017, para passar a se referir ao Projeto de Lei n. 1.292/1995, que encabeçará o bloco em apreciação“[6].
Após a realização de inúmeras audiências públicas, nas quais foram ouvidos especialistas sobre o tema e entidades interessadas, a Comissão Especial, em 05/12/2018, aprovou relatório do Dep. João Arruda contendo novo texto do projeto de lei[7], em substituição ao oriundo do Senado Federal.
Aberta, em 08/05/2019, no Plenário da Câmara, a discussão do PL nº 1.292/1995, foram apresentadas 117 emendas. Em razão do volume de emendas, o Dep. Augusto Coutinho foi designado como relator ad hoc em Plenário, a fim de consolidar as proposições, sendo submetido um parecer reformulado geral na sessão de 17/06/2019.
Por força de acordos de lideranças, na sessão plenária de 25/06/2019, foi apresentado a Subemenda Substitutiva Global Reformulada de Plenário, aprovada como “texto-base”. Diante dos destaques apresentados, nas sessões realizadas nos dias 10, 11 e 17/09/2019, foi aprovado o texto definitivo do substitutivo do projeto pela Câmara dos Deputados, cuja redação final fora remetida ao Senado Federal em 10/10/2019[8].
O retorno do projeto ao Senado Federal
Diante do sistema legislativo bicameral adotado no Brasil, estabelece o art. 65 da Constituição Federal, que “o projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar“. De acordo com o parágrafo único de tal artigo, “sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora“.
Ou seja, no caso do PL da “nova Lei de Licitações”, o Senado Federal atua como “Casa Iniciadora” e a Câmara dos Deputados como “Casa Revisora”.
Após a aprovação do substitutivo pela Câmara dos Deputados no âmbito do PL nº 1.292/1995, como o retorno ao Senado Federal (“Casa Iniciadora”), o projeto deve ser anexado ao processo original, conforme estabelece o art. 246, IV, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF).
Destaco que foi utilizado o termo “deve” pelo fato de que, não obstante já ter sido o autógrafo do substitutivo da Câmara enviado à Secretaria Geral da Mesa do Senado, o documento ainda não foi lido em Plenário, não podendo, assim, ser considerado como efetivamente “recebido” pela “Casa Iniciadora”. E, ainda, não há perspectivas de que tal leitura ocorra ainda em 2019…
Há, em tal contexto, uma questão salutar: nos termos do art. 143, II, “b”, do RICD, o então PL nº 6.814/2017 (decorrente do PLS nº 559/2013) foi apensado ao projeto de lei mais antigo em tramitação na Câmara que tratava da alteração da Lei nº 8.666/1993, qual seja, o PL nº 1.292/1995[9]. Ocorre que tal projeto de lei decorre do PLS nº 163/1995[10], originado do Senado Federal, de autoria do Senador Lauro Campos. Note-se que no Ofício nº 1.062/2019, de 10/10/2019, ao tratar do encaminhamento do substitutivo ao Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados vincula o PL nº 1.292/1995 ao PLS nº 163/1995, não fazendo qualquer menção ao PLS nº 559/2013[11].
Assim, à luz da prática observada na Secretaria Geral da Mesa do Senado, o “substitutivo” da Câmara dos Deputados, materializado no PL nº 1.292/1995, ao que tudo indica, será vinculado, no Senado Federal, ao PLS nº 163/1995 e não ao PL nº 559/2013.
Feita a leitura do substitutivo da Câmara em Plenário, o Presidente do Senado “despachará” a matéria, indicando quais as Comissões que deverão examinar e emitir parecer sobre o substitutivo da Câmara. O despacho do Presidente também fixará a sequência de apreciação de cada Comissão.
Reitere-se, a título de esclarecimento, que o PLS nº 559/2013, em sua tramitação inicial no Senado, passou pelas seguintes Comissões Permanentes: Constituição e Justiça (CCJ), Assuntos Econômicos (CAE) e Serviços de Infraestrutura (CI).
Em decorrência da multidisciplinariedade dos temas vertidos no projeto da “nova Lei de Licitações”, oportuno frisar a possibilidade de, por decisão do Presidente, ser criada “comissão especial” para análise e parecer do substitutivo vindo da Câmara dos Deputados.
Quanto à sistemática da apreciação de projetos de lei oriundos do Senado, é fundamental observar que o RISF apresenta uma seção específica para tratar das “emendas da Câmara a Projeto do Senado“, contemplada nos artigos 285 a 287.
No caso, o teor tanto do PLS nº 163/1995 quanto do PLS nº 559/2013 foi alterado integralmente pela Câmara dos Deputados, porquanto foi aprovado um “substitutivo” (referente à Subemenda Substitutiva Global Reformulada de Plenário de relatoria do Deputado Augusto Coutinho).
Ocorre que, à luz do RISF, cada dispositivo do substitutivo (artigo, inciso, parágrafo, alínea e item) é considerado como uma “emenda” (art. 137 do Regimento Comum do Congresso Nacional). No caso, o art. 285 do RISF dispõe expressamente que “a emenda da Câmara a projeto do Senado não é suscetível de modificação por meio de subemenda“. Ou seja, cabe ao Senado apenas aprovar ou rejeitar a emenda (correspondente ao dispositivo em análise), sendo vedado alterar seu conteúdo.
Sobre o tema, estabelece o art. 287 do RISF: “o substitutivo da Câmara a projeto do Senado será considerado série de emendas e votado, separadamente, por artigos, parágrafos, incisos, alíneas e itens, em correspondência aos do projeto emendado, salvo aprovação de requerimento para votação em globo ou por grupos de dispositivos”.
Assim, após parecer conclusivo das Comissões Permanentes (indicadas conforme despacho do Presidente do Senado), a matéria será deliberada pelo Plenário do Senado Federal, em regra, ponto a ponto, podendo haver, mediante aprovação de requerimento nesse sentido, votação em globo ou em grupos de dispositivos.
É fundamental, portanto, ressaltar que, quanto à deliberação do “substitutivo” aprovado pela Câmara dos Deputados, poderá o Senado aprová-lo ou rejeitá-lo não apenas integralmente, mas, também, parcialmente.
Na sistemática do processo legislativo bicameral brasileiro, na tramitação de leis ordinárias e complementares, havendo a rejeição de emenda proveniente da “Casa Revisora”, prevalecerá a respectiva redação do projeto original elaborado pela “Casa Iniciadora”. Daí se compreender, no rito ordinário legislativo, a primazia da “Casa Iniciadora”.
No caso do projeto da “nova Lei de Licitações”, como o substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados constitui alteração substancial no texto original do Senado, se considerarmos que o parâmetro será o PLS nº 163/1995 (que acrescenta apenas dois parágrafos ao art. 72 da Lei nº 8.666/1993), a bem da verdade, não haverá texto original do Senado correspondente ao dispositivo (artigo, inciso ou parágrafo) rejeitado.
Com efeito, se o Plenário do Senado rejeitar parte do substitutivo vindo da Câmara, o “restante” eventualmente aprovado comporá o conjunto do texto que constituirá o autógrafo final a ser encaminhado à Presidência da República.
Enfim, após a deliberação definitiva do Plenário do Senado, caso existam, no texto final, vícios de linguagem, impropriedades de expressão, defeitos de técnica legislativa ou palavras desnecessárias, caberá à Comissão Diretora elaborar a redação final (art. 98, V, RISF).
Consolidado o texto final, a proposição aprovada será encaminhada, em autógrafos (assinados pelo Presidente do Senado), à Presidência da República, via Casa Civil, para fins de sanção ou veto (art. 66 da Constituição Federal).
Perspectivas no Senado Federal
A despeito de haver um indicativo regimental de solução quanto à vinculação ao PL nº 1.292/1995, o fato é que a questão ainda permanece em “aberto”, o que, talvez, possa ser um indicativo do motivo pelo qual o Senado Federal ainda não procedeu à leitura do substitutivo da Câmara dos Deputados.
Pela lógica do “jogo” parlamentar e a dinâmica bicameral do processo legislativo ordinário[12], não se pode olvidar que, ao ter alterado substancialmente o projeto originado do Senado e, por meio da aplicação do disposto no art. 143, II, “b”, do RICD, virtualmente retirado da “Casa Iniciadora” a possibilidade de substituir as partes eventualmente rejeitadas do substitutivo, a Câmara dos Deputados promoveu desequilíbrio de potestades na formação da norma.
Daí, portanto, o tempo demandado pela Secretaria Geral da Mesa do Senado para avaliar as possibilidades regimentais de considerar o substitutivo aprovado pela Câmara como vinculado ao PLS nº 559/2013 e não ao PLS nº 163/1995.
Ademais, a estruturação da sequência de tramitação da revisão a partir do despacho do Presidente do Senado também será decisiva para a sorte do projeto: quem será o relator (Sen. Fernando Bezerra ou outro parlamentar)? Por quais comissões permanentes o PL passará? Será criada uma comissão especial para tal finalidade?
O animo de enfrentamento do tema pelo Plenário do Senado (e a própria possibilidade de destaques ao substitutivo da Câmara ou votação em globo) dependerá sobremaneira dos citados aspectos regimentais (em especial do teor dos pareceres de cada comissão permanente), do contexto da pauta política em 2020 (lembremos das reformas constitucionais e da sobreposição da agenda no 2º semestre em razão das eleições municipais) e do grau de priorização da matéria a ser conferido pelo Governo por meio de suas lideranças parlamentares.
Em
conclusão, por todo o exposto, pode-se dizer, tanto sob o ângulo regimental,
quanto pelo ângulo político, que o futuro do projeto da “nova” Lei de
Licitações está totalmente em aberto no Congresso Nacional, não sendo possível
“cravar”, com razoável chance de sucesso, que seu processo de formação findará
ainda em 2020.
[1] Inteiro teor e tramitação disponíveis em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115926>.
[2] Texto inicial da Comissão Temporária disponível em: < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3800554&ts=1571777437193&disposition=inline>.
[3] Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4728346&ts=1571775820327&disposition=inline>.
[4] Autógrafo enviado para a Câmara dos Deputados disponível em: < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4988596&ts=1571777487403&disposition=inline>.
[5] Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1641978&filename=Tramitacao-PL+6814/2017>.
[6] Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1644950&filename=Despacho-PL+1292/1995-16/03/2018>.
[7] Substitutivo da Comissão Especial disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1698056&filename=SBT-A+1+PL129295+%3D%3E+PL+1292/1995>.
[8] Autógrafo do substitutivo disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1819580&filename=Tramitacao-PL+1292/1995>.
[9] Por força do Despacho do Presidente da Câmara dos Deputados exarado em 16/03/2018 em apreciação ao Requerimento nº 8.165/2018 [link: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_depachos?idProposicao=2122766>].
[10] Inteiro teor e tramitação disponíveis em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/1489>].
[11] Expediente disponível no link: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=63D1836FCF5A434ABE53981438790127.proposicoesWebExterno1?codteor=1819580&filename=Tramitacao-PL+1292/1995>.
[12] Sobre o tema, vide: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. A dinâmica decisória no processo legislativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.