É com imensa satisfação que fomos convidados para contribuir para o portal do Observatório da Nova Lei de Licitações, em que propomos tratar do tema instigante que envolve as licitações sustentáveis.
As licitações sustentáveis prometem a aplicação de uma inteligência ambiental e social na estruturação de processos licitatórios e na concepção de contratos administrativos. O desafio para implantação de licitações sustentáveis é enorme; envolve variáveis institucionais e legais, a (des)informação e capacitação dos agentes, além das limitações orçamentárias. Pretendemos, nessa coluna, explorar essas variáveis de modo a contribuir para a implantação adequada da ideia de licitações sustentáveis no Brasil, especialmente nos contornos a serem delineados pela Nova Lei de Licitações.
Neste primeiro artigo introdutório buscaremos realçar as disposições da Nova Lei de Licitações sobre o assunto. E compreender a extensão dos avanços propostos pela Nova Lei de Licitações no tema das licitações sustentáveis envolve, em alguma medida, conhecer o histórico normativo antecedente.
O desenvolvimento de uma consciência ecológica na Administração Pública decorre de um movimento internacional, externado desde pelo menos a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, ainda em 1992. Naquela oportunidade a Agenda 21, documento resultado da Conferência, já reconhecia a influência exercida pelos governos nas decisões empresariais e na opinião pública, bem como recomendava a incorporação do aspecto ecológico em suas políticas de aquisições[1].
No âmbito Europeu, em 2001, a Comissão Europeia editou a Comunicação Interpretativa sobre o direito comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações ambientais nos contratos públicos – COM (2001) 274. O documento indica como e quando se pode lançar mão de critérios ambientais em licitação e contratação pública. No âmbito europeu o assunto culminou com incorporação de regras e critérios ambientais nos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços – Diretiva nº 2004/18.
É, portanto, à luz das experiências estrangeiras que as licitações ou contratações sustentáveis foram institucionalizadas no Brasil. Buscou-se incorporar a variável socioambiental como possibilidade (e em alguns casos, como um dever) do gestor em licitações, com o propósito de minimizar os impactos ambientais e sociais das atividades administrativas, induzir comportamentos do mercado e incentivar adoção de hábitos e rotinas sustentáveis nos particulares.
No Brasil, desde alguns anos já se caminha neste sentido. Em 1999, a Administração Federal editou a Agenda Ambiental na Administração Pública (A3P), um conjunto de iniciativas cuja compilação foi coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente. A A3P tem como objetivo estimular os agentes públicos a incorporar critérios de gestão ambiental em suas atividades rotineiras. Trata-se de documento voltado para o uso racional dos bens e, como o objetivo era estimular os agentes públicos, tem forte caráter orientativo.
Basicamente a A3P estrutura-se em cinco eixos, que compreendem, além das licitações sustentáveis, o uso racional dos recursos, a gestão adequada dos resíduos, a qualidade no ambiente do trabalho e a gestão de servidores. Divulga, por exemplo, medidas de economia de luz e água, e orienta acerca do padrão de cores para os recipientes de resíduos sólidos, coleta seletiva.
Nove anos depois da A3P, o Ministério do Meio Ambiente editou a Portaria Ministerial nº 61/08, com a finalidade de introduzir as licitações sustentáveis naquela pasta. O documento discrimina algumas práticas sustentáveis como a preferência pelo correio eletrônico, de lâmpadas eficientes, a recomendação da adoção de projetos de ilhas de impressão, dentre outras medidas de gestão ambiental.
O marco legal pioneiro quando se trata de licitações sustentáveis é a Lei Federal nº 12.187/09 – Política Nacional sobre Mudança do Clima[2] – que passou a prever, no inciso XII do seu artigo 6º, o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações para as propostas que proporcionem maior economia de recursos naturais, redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos. Registra-se, já de antemão, que a norma que prevê o direito de preferência no âmbito da Política Nacional sobre Mudança do Clima depende de regulamentação, posto que não discrimina requisitos e como será exercida a aludida preferência.
Em 2010, a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão editou a Instrução Normativa nº 01/10, que estabelece critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras na Administração Pública Federal.
No final de 2010, a Lei nº 12.349 alterou o artigo 3º da Lei nº 8.666/93, passando a veicular a promoção do desenvolvimento nacional sustentável como uma das finalidades da licitação pública, ao lado da garantia da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa. Na Lei nº 8.666/93 é essa, portanto, a única previsão que determinaria a incorporação da variável socioambiental na estruturação de licitações e na concepção de contratos administrativos.
A Lei nº 12.462/11, que institui o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), foi além. O §1º do artigo 4º exige que as contratações realizadas com base no RDC devem respeitar normas relativas à disposição final adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras, a mitigação por condicionantes e compensação ambiental definidas nas licenças ambientais, a utilização de produtos, equipamentos e serviços ecologicamente eficientes, a avaliação do impacto de vizinhança, a proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial e a acessibilidade. O artigo 4 da mesma Lei prevê que na fase de habilitação das licitações disciplinadas pelo RDC podem ser exigidos requisitos de sustentabilidade ambiental; o artigo 7º admite a possibilidade de solicitar certificação ambiental do produto ou processo de fabricação; e o artigo 10 admite a possibilidade de remuneração variável vinculada ao desempenho do contratado de acordo com critérios de sustentabilidade ambiental.
Apesar, portanto, das disposições do RDC serem um pouco mais específicas do que a previsão amplamente genérica e abstrata do artigo 3º da Lei nº 8.666/93, o RDC tem alcance restrito às áreas contempladas pelo aludido regime diferenciado. Para todas as demais contratações continuaria prevalecendo a previsão genérica do artigo 3º da Lei nº 8.666/93.
Visando regulamentar o artigo 3º da Lei nº 8.666/93 (na forma veiculada pela redação proposta pela Lei nº 12.349/10), a Presidente da República editou o Decreto Federal nº 7.746/12[3]. O artigo 4º enumera as diretrizes de sustentabilidade que podem ser consideradas nas licitações, como menor impacto sobre recursos naturais, preferência por fornecedores locais, maior eficiência ecológica, maior geração de empregos, maior vida útil, preferência por inovações que reduzam pressão sobre meio ambiente e origem regular dos recursos naturais usados na produção dos bens e na execução de serviços e obras.
Os artigos 3º, 5º, 6º, 7º e 8º do Decreto Federal nº 7.746/12 também enumeram as possibilidades decorrentes da utilização de critérios de sustentabilidade no procedimento licitatório. Estatui que critérios e práticas de sustentabilidade podem ser veiculados como especificação técnica do objeto ou obrigação da contratada. Autoriza a Administração Pública federal a exigir que os produtos adquiridos sejam produzidos por material reciclado, atóxico ou biodegradável, dentre outros elementos. Exige que as especificações de obras e serviços de engenharia devam proporcionar economia da manutenção e operacionalização da edificação e a redução do consumo de energia e água. Autoriza a exigência, ao contratado, de práticas de sustentabilidade na execução dos serviços contratados e critérios de sustentabilidade no fornecimento dos bens, bem como que as condicionantes veiculadas no edital sejam comprovadas por meio de certificação emitida por instituição pública oficial, instituição credenciada ou formas alternativas contempladas no edital.
Por fim, à exemplo das previsões do RDC, a Lei nº 13.303/16, Lei das Estatais, também incorporou o desenvolvimento nacional sustentável como princípio das licitações realizadas em seu âmbito. A Lei nº13.303/16 igualmente reproduz as previsões do RDC sobre a disposição final adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras, a mitigação por condicionantes e compensação ambiental definidas nas licenças ambientais, a utilização de produtos, equipamentos e serviços ecologicamente eficientes, a avaliação do impacto de vizinhança, a proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial e a acessibilidade. Disciplinou ainda, dentre outros dispositivos, a possibilidade de se solicitar certificação da qualidade do produto e processo de fabricação, inclusive sob o aspecto ambiental e a possibilidade de estabelecimento de remuneração variável do contratado vinculada ao seu desempenho com base também em critérios de sustentabilidade ambiental.
Esse é, em essência, o panorama normativo que antecede a Nova Lei de Licitações.
Na proposta atual[4], no que tange à incorporação da variável socioambiental no processo licitatório e de contratação, a Nova Lei de Licitações recebe um tratamento mais aprofundado do que as alterações promovidas pela Lei nº 12.349/10 à Lei nº 8.666/93, e bastante similar ao RDC e Lei das Estatais.
O desenvolvimento nacional sustentável continua a ser objetivo da licitação no inciso IV do artigo 11, e passa também a ser previsto como princípio da licitação no artigo 5º.
A Nova Lei de Licitações incorpora, de forma definitiva, o ciclo de vida do objeto da licitação/contrato como importante variável de sustentabilidade das licitações. O ciclo de vida aparece como (i) um componente da vantajosidade da licitação, outro dos objetivos da licitação previstos no inciso I do artigo 11; além de (ii) variável que compõe os custos indiretos da proposta a serem considerados, a critério da autoridade administrativa, no julgamento pelo critério menor preço ou maior desconto.
A certificação ambiental prevista no RDC e na Lei das Estatais é incorporada à Nova Lei de Licitações por meio do inciso III do artigo 41. Nesse aspecto, inclusive, a Nova Lei de Licitações parece ter aprimorado o modelo do RDC e da Lei das Estatais ao admitir a possibilidade de que a qualidade e a conformidade do produto ou do processo de fabricação à requisitos e padrões ambientais possa ser aferida por outros documentos similares à certificação.
O artigo 44 da Nova Lei de Licitações também reproduz as previsões do RDC e da Lei das Estatais acerca da disposição final adequada dos resíduos sólidos gerados pelas obras, da mitigação por condicionantes e compensação ambiental definidas nas licenças ambientais, da utilização de produtos, equipamentos e serviços ecologicamente eficientes, da avaliação do impacto de vizinhança, da proteção do patrimônio cultural, histórico, arqueológico e imaterial e da acessibilidade, isso em referência às obras e serviços de engenharia.
Por fim, ainda merece destaque nessa primeira aproximação com o tratamento dispensado pela Nova Lei de Licitações às licitações sustentáveis, a possibilidade do estabelecimento de remuneração variável vinculada ao desempenho do contratado com base em critérios de sustentabilidade ambiental. O §1º do artigo 143 inova ao estabelecer que “o pagamento poderá ser ajustado em base percentual sobre valor economizado em determinada despesa, quando o objeto do contrato visar à implantação de processo de racionalização, hipótese em que as despesas correrão à conta dos mesmos créditos orçamentários, na forma de regulamentação específica”, prática já bastante comum em contratos de eficiência energética, notadamente nos domínios privados.
Em síntese, uma primeira análise da Nova Lei de Licitações permite concluir que as previsões alusivas às licitações sustentáveis, em essência, incorporam ao estatuto geral de licitações e contratos previsões já existentes no âmbito do RDC e das Estatais, com ajustes ou inovações pontuais especialmente relacionadas ao ciclo de vida do produto, às certificações ambientais e à remuneração variável vinculada ao desempenho do contratado.
A Nova Lei de
Licitações não desce a alguns dos pormenores atualmente veiculados no Decreto
Federal nº 7.746/12, tampouco incrementa o grau de segurança jurídica que os
agentes públicos encarregados e envolvidos em processos licitatórios usualmente
reclamam para incorporar, de forma substancial, a variável ambiental nos
processos licitatórios e contratos administrativos, notadamente quando isso
possa circunscrever de forma significativa o universo de competidores ou
incrementar, também de forma relevante, os custos finais da contratação.
[1] “(d) Exercício da liderança por meio das aquisições pelos Governos […]
4.23. Os próprios Governos também desempenham um papel no consumo, especialmente nos países onde o setor público ocupa uma posição preponderante na economia, podendo exercer considerável influência tanto sobre as decisões empresariais como sobre as opiniões do público. Conseqüentemente, esses Governos devem examinar as políticas de aquisição de suas agências e departamentos de modo a aperfeiçoar, sempre que possível, o aspecto ecológico de suas políticas de aquisição, sem prejuízo dos princípios do comércio internacional” (grifo acrescido).
[2] Dispositivos similares são encontrados em legislação estadual. Em Santa Catarina, a Lei da Política Estadual sobre Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Sustentável (Lei 14.829/09) estabelece o seguinte: “Art. 25. As licitações para aquisição de produtos e serviços pelos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta do Estado devem, no que couber, incluir critérios ambientais que atendam às diretrizes e objetivos desta Política”.
[3] Regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para estabelecer critérios, práticas e diretrizes para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas contratações realizadas pela administração pública federal, e institui a Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública – CISAP
[4] Nos referimos à versão do Projeto de Lei de 17 de setembro de 2019.