1.1 A Lei como “norma geral”
A Lei se qualifica como norma geral. E isto traz importantes consequências para o sistema das contratações públicas.
A Lei nova regula de por completo o tema das licitações, o que traz efeitos sistêmicos bastante relevantes. A Lei cria um novo corpo geral de normas sobre licitações isso implica que as disposições anteriores que não se amoldem às suas premissas são derrogadas, independente de preceito expresso nesse sentido. É o que está disciplinado no art. 2º da Lei de Introdução (DL 4657/1942). Regular por completo uma matéria significa, em regra, a intenção de acabar com as leis especiais anteriores (ASCENSÃO. 2005, p. 518-519) .
A nova lei geral, cria um novo “marco zero” para a interpretação de todo o sistema de contratações públicas. Criar uma nova “lei geral” representa criar um novo ponto de partida, não apenas compilar as normas antigas. A criação de uma nova lei geral instala uma nova racionalidade no sistema das licitações. E por isso, em princípio, a intenção do legislador foi regular por completo o tema, o que impacta nas normas especiais. Nessa linha, a vigência de normas especiais anteriores à nova Lei Geral depende de se demonstrar sua compatibilidade com esta.
Com efeito, desde de edição da Lei 8.666/1993, houve diversas criação de diversas normas especiais que retiravam certas matéria do âmbito daquela lei geral. Coube à jurisprudência calibrar a relação entre norma geral e especial, definindo em que termos se daria a aplicação subsidiária da norma geral. As normas especiais produzidas então ao tempo da Lei 8.666/1993, devem todas ser filtradas pelas disposições da nova lei geral o que criará a necessidade de revisitar diversos temas. A relação entre normas especiais e norma geral deverá ser ressignificado a partir das premissas valorativas da nova norma.
A relação entre norma geral e especial é traiçoeira. Ela não se avalia exclusivamente a partir de disposições normativas isoladas, mas exige que se analisem as premissas valorativas de cada um dos sistemas. Novamente, a Lei de Introdução indica isso (art. 2º, §§ 1º e 2º).
1.2 A Lei como “lei nacional”
A Lei se aplica de modo homogêneo em todos os níveis federativos, pois compete à União disciplinar privativamente normas gerais de licitação e contratos (CF, art. 22, XXVII). Apenas o que não for passível de ser enquadrado como norma geral é que pode ser objeto de disciplina em nível estadual e municipal. O problema reside na ambiguidade da expressão “norma geral”, que não poder ser definida de modo claro a (como se deu, por exemplo, no âmbito do direito tributário em que a Constituição tentou devir o que é norma geral).
Sobre esse ponto, o fato de o legislador da União ter disposto sobre o tema cria uma presunção de que tratou de norma geral, exercendo sua autonomia para conformar a Constituição de modo legítimo. Como não existe um conceito auto-evidente de norma geral, compete à União produzir normas que repute de caráter geral.
Claro que não se está defendendo que a União possa invadir a autonomia dos demais entes federativos. O que se está dizendo é que a rejeição das soluções propostas na norma geral exige que se supere a presunção de constitucionalidade que milita em favor da norma, o que exige que se demonstre que algum dos seus dispositivos tratou de norma que sob hipótese alguma pode ser vista como norma geral. Em reforço disso, perceba-se que o tema das licitações e contratos não integra o rol das competências concorrentes (CF, art. 24) e nem é de interesse local (art. 30, I).
1.3 Abrangência subjetiva da Lei
A licitação é um dever que a Constituição impõe à Administração Pública (art. 37, XXI). A Lei regulamenta esse dever de maneira genérica. Segundo se lê no seu art. 1º ela se aplica a Administração Pública Direta e também Indireta. Mais do que isso, a Lei esclareceres-te que ela se aplica aos casos em que os demais Poderes contratam (inc. I), e também aos fundos especiais e quaisquer entidades que sejam controlados por pessoas jurídicas de direito público (inc. II).
Perceba-se que a Lei se utiliza de dois critérios para definir sua incidência à Administração. A verificação de qualquer um deles conduz à aplicação das suas normas.
O primeiro deles é orgânico ou subjetivo. Toda a estrutura da Administração Pública (salvo a existência de norma especial em contrário, como no caso das estatais) sujeita-se às suas disposições. Aqui a lei se aplica às pessoas jurídicas administrativas, independente de sua natureza. Aliás, mesmo estruturas que não tenham personalidade jurídica, se sujeitam à Lei, desde que a maior parte de seus recursos seja pública.
O segundo, é um critério material ou objetivo. A lei se aplica a quem exerce função administrativa, ainda que em caráter anômalo, como acontece com o Judiciário e o Legislativo, que a exercem em caráter auxiliar de suas funções típicas. Note que isso está em linha com a própria previsão do art. 37, caput da Constituição que não se utiliza de um conceito subjetivo de Administração, mas objetivo.
Como se nota, a Lei utiliza-se de disposições amplas. A princípio, nenhuma relação administrativa escapa à incidência da Lei. O caráter “administrativo” necessário à aplicação das regras legais deve ser visto de modo amplo. Mesmo estruturas que a princípio não estariam alcançadas pela literalidade do texto (o Ministério Público, por exemplo) devem seguir suas regras.
1.4 As isenções decorrentes de critérios transnacionais
O direito brasileiro pode ser aplicado para além do território do Brasil. Por outro lado, normas estrangeiras podem ser aplicadas no Brasil. O direito internacional se ocupa de disciplinar as características gerais desses fenômenos, que costumam estar alheios à racionalidade do direito público. Contudo, cada vez mais se observa uma tendência de ampliação dos espaços jurídicos globais, o que aproxima esses temas da vida daquele que trabalha com as contratações públicas. As licitações não estão isentas desse fenômeno.
No que se refere à aplicação da Lei, algumas derrogações são previstas com vistas a harmonizar a aplicação das regras nacionais com exigências internacionais.
Em primeiro lugar (art. 1º, § 1º), a lei se ocupa de tratar das contratações feitas por representantes do Estado brasileiro no exterior. Nesses casos, em regra aplicam-se as normas do local onde o contrato será celebrado. A lei exige contudo que os princípios do regime brasileiro sejam observados, devendo isso ser regulamentado. O problema aqui diz respeito à responsabilidade dos agentes do Governo brasileiro que atuam no exterior. As diretrizes gerais servem para definir como tais funcionários devem se portar ao realizar contratos no exterior. Tais normas não têm efeitos externos, sobre a validade do contrato, mas sim podem servir para questionar as decisões tomadas pelos representantes do Brasil.
Por outro lado (art. 1º, § 2º), existe a situação inversa, em que deve se admitir que no Brasil se apliquem preceitos alheios ao nosso direito. Duas hipóteses são previstas pela Lei.
A primeira, de que haja acordos internacionais aprovados pelo Congresso e ratificados pelo Presidente. Nesses casos, as observância dessas disposições devem ser levadas em consideração pois esses atos têm força de Lei, criando uma norma especial. Aqui, a observância dos preceitos específicos não depende da disposição da Lei de Licitação, ela decorre que nesses casos os atos aprovados tem o mesmo status da Lei, não dependendo de qualquer elemento externo para serem aplicados..
Outra hipótese contemplada é a de que o financiamento do contrato advenha de organismo internacional. Nesses casos é comum que o financiador condicione o repasse a certos critérios. Nesse caso, se admitem que as regras específicas do financiador sejam aplicadas, desde que compatíveis com os princípios do nosso ordenamento e que haja aprovação das autoridades nacionais acerca da sua utilização. A deferência aos princípios internacionais recente ao conceito de ordem pública do direito internacional, que nega a aplicação no brasil e normas e a execução de decisões que contrariem as premissas elementares do nosso ordenamento jurídico. Em regra, as regras específicas de entes transnacionais estão em linha com nossos princípios, pois buscam prestigiar a seleção da melhor proposta, garantindo a isonomia. Processos de compra geralmente prestigiam estes elementos.
Incidência objetiva da Lei
Embora a Lei possua caráter geral, fato é que ela se destina a regular certas espécies de contratos (art. 2º). Ela ressalva de modo expressão que certos vínculos escapam da sua incidência (art. 3º).
Em termos simples, a Lei deixa de fora de sua incidência contratos de natureza concessionária (em que o particular assume a exploração econômica de uma atividade pública), os contratos celebrados pelas estatais que têm regulamentação autônoma na Lei 13.303/2016 e os contratos relativos às operações de crédito, que possuem lógica própria. A Lei reforça o caráter especial das normas que regem essas modalidades contratuais, pelo que em princípio não se aplicam a tais ajustes os preceitos da norma geral. Contudo, essa solução não é definitiva, conforme exposto abaixo
Sobram para serem disciplinados pela Lei os contratos de fornecimento em que a Administração adquire, bens, produtos ou serviços. Nesses casos, a Administração contrata bens e serviços necessários à realização das atividades que lhe são assinaladas em lei. A lei disciplina ainda contratos relativos à transferência de imóveis públicos para utilização privada (concessão, permissão e autorização de uso de bem público). Nesses casos, bens públicos serão postos à disposição da utilização por parte de particulares.
Todavia, como visto acima, a Lei assume caráter de norma geral, regulamentando em termos amplos o procedimento licitatório e definindo as feições elementares dos contratos administrativos. Nessa perspectiva, ainda que ela não se destine a reger certos contratos, fato é que isso não afasta a aplicação supletiva da lei geral. Por exemplo, a Lei 8.987/1995 rege o procedimento relativo às licitações para a celebração dos contratos de concessão comum. Suas disposições, contudo, não dispõem sobre todos os aspectos relativos ao procedimento licitatório. Logo, é necessário transladar para as licitações relativas às concessões, disposições da lei geral, de modo a se completar o seu sentido e alcance.
Em suma, o fato de a Lei prever que certos contratos escapam às suas disposições, isso por si só, não exclui por completo a sua incidência supletiva. Como anotado acima, a análise da especialidade deve ser dada caso a caso. A complexidade do direito impede soluções pret à porter.
1.5 Conclusões
- A Lei tem natureza de norma geral, o que implica que ela é a norma base a regulamentar licitações e contratos no direito brasileiro, tendo dando regulação nova e completa ao tema.
- A edição de uma nova norma geral implica a necessidade de avaliar todas as normas especiais que não foram derrogadas expressamente, à luz das suas premissas. Apenas as normas que estiverem de acordo com a norma nova podem ser consideradas vigentes.
- A Lei tem aplicação vinculante em todos os níveis federativos, pois trata de norma geral sobre licitações e contratos. Em princípio, milita em favor da abrangência nacional a liberdade de conformação de que goza o legislador para definir o conteúdo da previsão constitucional do art. 22, XXVII.
- A norma adota critérios amplos para definir sua incidência, sua aplicação se dá tanto por força de critérios orgânicos, quanto por força de critérios materiais. Qualquer um deles já justifica a aplicação das suas disposições.
- A Lei ressalva situações em que o ordenamento jurídico brasileiro admite a aplicação de normas internacionais. No plano interno isso se dá em face de atos internacionais devidamente internalizados, assim como admitem-se a aplicação de normas específicas de seleção, aplicadas por organismos internacionais.
- A Lei se aplica a contratos de fornecimento em favor da Administração e aos atos ou contratos em que há cessão de bens à utilização privada. A Lei ressalva que ela não se aplica aos contratos de tipo concessionário, de financiamento e das estatais. Nesses casos, reforça-se que tais modalidades são regidas por leis especiais. De todo modo, considerando o caráter geral da Lei, fato é que ela poderá ser aplicada de modo supletivo, nos casos em que não haja incompatibilidade de princípios entre ela e a norma especial.
REFERÊNCIAS
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito, 3ª Ed, Rio de Janeiro: Renovar, 2005.