A preocupação com a integridade de fornecedores e o combate à corrupção têm, cada vez mais, assumido importante papel no país. E isso não se resume apenas à realidade do Mercado. O próprio Estado tem adotado medidas para que suas relações com fornecedores sejam mais transparentes, íntegras, eficientes e de qualidade.[1]
Não sem razão, diversos estados têm exigido que empresas que contratem com a Administração Pública implementem Programas de Integridade e Compliance em sua estrutura. Essa é a realidade, por exemplo, dos Estados do Rio de Janeiro,[2] Rio Grande do Sul,[3] Amazonas,[4] Goiás,[5] bem como do Distrito Federal.[6]
Referida exigência tem por base, senão, o incentivo à criação de mecanismos e instrumentos aptos ao combate à corrupção no âmbito das contratações públicas, bem como o tratamento de riscos reputacionais que possam afetar a imagem do Poder Público e da própria empresa contratada. Nesse sentido, Programas de Integridade e Compliance têm sido exigidos das empresas que contratam com o Poder Público para assegurar, dentre outros parâmetros, qualidade, eficiência, vantajosidade e sustentabilidade às contratações públicas. Não sem razão, há certa convergência entre os objetivos das leis estaduais que disciplinam o tema, principalmente em relação à busca pela (i) proteção da Administração Pública dos atos lesivos que resultem em prejuízos materiais ou financeiros causados por irregularidades, desvios de ética e de conduta e fraudes contratuais; (ii) garantia da execução dos contratos e demais instrumentos em conformidade com a lei e regulamentos pertinentes a cada atividade contratada; (iii) redução de riscos inerentes aos contratos e demais instrumentos, provendo maior segurança e transparência em sua execução.[7]
Não há como negar, portanto, que os diplomas estaduais e distrital destacados são marcos na arte do combate à corrupção nas contratações públicas, uma vez que, além de tornarem obrigatória a implementação de Programas de Integridade e Compliance nas empresas privadas que contratam com alguns Estados e com o Distrito Federal, também exigem a necessária comprovação da efetividade desses programas, o que denota coragem à busca por mudança cultural na atuação das empresas privadas e da própria Administração, que passam a pautar suas atividades em princípios como ética, integridade e transparência.[8]
Indo ao encontro dessa valorização do combate à corrupção, a exigência de implementação de programas de integridade nos contratados também foi incluída no PL nº 1292/95, que representa o Projeto de Lei da Nova Lei de Licitações e Contratos. Assim, em seu artigo 25, parágrafo 4º, o PL determina que “nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.”
Como se pode notar, naquilo que diz respeito aos critérios de aplicação da referida norma, pode-se destacar que o Projeto de Lei limitou-se a determinar os alcances objetivo e subjetivo da norma, bem como o momento e prazo para sua implementação, deixando a cargo de regulamento específico critérios como: (i) objetivo da exigência, (ii) requisitos à constituição e comprovação da existência do programa, (iii) parâmetros de avaliação do programa; (iv) atribuição de responsabilidade à fiscalização da implementação do programa, (v) atribuição de responsabilidade à avaliação da efetividade do programa, e (vi) aplicação de penalidades em caso de descumprimento da obrigação.
Em relação ao alcance objetivo da implementação do Programa de Integridade, da leitura do artigo 25, parágrafo 4º, pode-se dizer que a mesma será exigida nos contratos de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, isto é, cujo valor estimado seja superior a R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais), conforme determina o art. 6º, inciso XXII, do PL nº 1292/95. Veja-se, nesses termos, que o alcance objetivo expresso na norma se limita ao valor do contrato, sem, contudo, delimitar um prazo mínimo de vigência do mesmo, como é a praxe nas leis que já disciplinam o tema. Entretanto, considerando-se o prazo de seis meses determinado para a implementação do programa de integridade, pode-se dizer que a obrigação apenas incidirá aos contratos com vigência superior a seis meses, de modo que o que se entende é que, implicitamente, há determinação do alcance objetivo da norma em relação à vigência do contrato.
O alcance subjetivo, por sua vez, também não possui delimitação expressa no artigo 25, parágrafo 4º. Entretanto, a partir de uma interpretação sistemática do PL nº 1292/95, notadamente do artigo 6º, que trata das definições dos termos tratados no projeto, conclui-se que a exigência será obrigatória para todas as pessoas jurídicas ou consórcio de pessoas jurídicas signatários de contratos com a Administração Pública, eis que consideradas contratados nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do PL nº 1292/95.
Além disso, importante destacar que, em relação ao momento e ao prazo para implementação dos programas de integridade, denota-se do artigo 25, parágrafo 4º, que a obrigação inicia-se no momento da assinatura do contrato, devendo ser cumprida no prazo de seis meses, conforme destacado anteriormente. Isso quer dizer que a exigência de implementação ocorrerá no momento da execução do contrato, isto é, terceira fase da contratação, não implicando qualquer restrição ao caráter competitivo do certame.
Dessa forma, entende-se que andou bem o Projeto de Lei nº 1292/1995 ao incluir a exigência como obrigação contratual, eis que a exigência em momento prévio a seleção do fornecedor denota flagrante inconstitucionalidade material, por violação ao princípio da competitividade.[9]
Mesma sorte não socorre ao alcance objetivo da norma, notadamente em relação ao seu valor. Isso porque, R$ 200 milhões é um valor de contratação vultoso, como a própria norma determina, o que torna o alcance restrito, e, provavelmente, impossibilitará a mudança de cultura almejada e necessária no cenário das contratações públicas. Além disso, se comparada com a realidade das leis estaduais e distrital que hoje disciplinam a matéria, existe uma desproporcionalidade exorbitante entre os diplomas. É que ao se avaliar a Lei nº 6.112/2018 do Distrito Federal ou a Lei nº 7.753/2017 do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o alcance objetivo de cada uma das normas é, respectivamente, para contratos com valor acima de cinco milhões ou acima da modalidade de concorrência (acima de R$ 3,3 milhões para obras e serviços de engenharia ou acima de R$ 1,43 milhões para demais contratações). De fato, há uma diferença bastante expressiva entre os parâmetros.
Entretanto, ainda que necessários alguns ajustes para verdadeira eficácia do dispositivo em comento, importa frisar que a previsão da exigência de implementação de programas de integridade no PL nº 1292/95, por si só, já demonstra avanço na legislação pátria, o que se espera que se reflita na prática.
Não se olvida que a falta da cultura de integridade e transparência no âmbito das contratações públicas e o tratamento da corrupção como mal necessário são, sem dúvida, o maior obstáculo à internalização da realidade do Compliance nas empresas que se relacionam com o Poder Público. Mas a verdade é que o impactante cenário proposto pela corrupção afeta a todos, mas “de forma ainda mais brutal a camada economicamente mais frágil da população, porque os recursos públicos não serão alocados de forma a suprir suas carências.”[10] E a realidade de escândalos bilionários têm implicado prejuízos tanto ao Poder Público quanto às empresas privadas, tendo ambos passado a impulsionar a busca por instrumentos de prevenção e combate à corrupção, sobretudo para preservar sua imagem, nome e reputação.[11]
Dessa forma, o Compliance no âmbito das
contratações públicas vem ganhando espaço exatamente em razão da necessidade de
se quebrar o paradigma da internalização da corrupção nos processos de
contratação. Assim, Leis e Projetos de Lei, como é o caso do PL nº 1292/1995, que exigem a implementação de
Programas de Integridade e Compliance em empresas que se relacionam com o Poder
Público auxiliam esse esforço, notadamente porque há uma necessidade de
se comprovar a efetividade desses programas, o que, por conseguinte, permite
uma aproximação da cultura da integridade e da transparência.
[1] MENDES, Francisco Schertel; CARVALHO, Vinícius Marques. Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo: Trevisan, 2017. p. 11.
[2] BRASIL. Rio de Janeiro. Lei Estadual nº 7.753, de 17 de out. 2017. Disponível em: <http://www2.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=2&url=L0NPTlRMRUkuTlNGL2M4YWEwOTAwMDI1ZmVlZjYwMzI1NjRlYzAwNjBkZmZmLzBiMTEwZDAxNDBiM2Q0Nzk4MzI1ODFjMzAwNWI4MmFkP09wZW5Eb2N1bWVudA==>. Acesso: 2 ago. 2019.
[3] BRASIL. Rio Grande do Sul. Lei Estadual nº 15.228, de 25 de setembro de 2018. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/LEI%2015.228.pdf> Acesso em: 16 jul. 2019
[4] BRASIL. Amazonas. Lei Estadual nº 4.730, de 27 de dez. 2018. Disponível em: <https://www.legiscompliance.com.br/legislacao/norma/230> Acesso: 16 jul. 2019.
[5] BRASIL. Goiás. Lei Estadual nº 20.489, de 10 de jun. de 2019. Disponível em: <https://www.legiscompliance.com.br/legislacao/norma/256>. Acesso em: 2 ago 2019.
[6] BRASIL. Distrito Federal. Lei Distrital nº 6.308, de 13 de jun. 2019. Disponível em: <http://legislacao.cl.df.gov.br/Legislacao/consultaTextoLeiParaNormaJuridicaNJUR524981!buscarTextoLeiParaNormaJuridicaNJUR.action>. Acesso em: 2 ago. 2019
[7] Sobre o tema cf. artigo 2º da Lei Estadual nº 7.737/2017; artigo 3º da Lei Distrital 6.112/2018; artigo 2º da Lei Estadual nº 4.730/2018; art. 3º da Lei Estadual nº 20.489/2019.
[8]Sobre o tema cf. artigos 6º e 13 da Lei Distrital nº 6.112/2018. Disponível em: <http://legislacao.cl.df.gov.br/Legislacao/consultaTextoLeiParaNormaJuridicaNJUR524981!buscarTextoLeiParaNormaJuridicaNJUR.action>. Acesso em: 2 ago. 2019.
[9] Sobre o tema cf. PIRONTI, Rodrigo; ZILIOTTO, Mirela Miró. Compliance nas contratações públicas: exigências e critérios normativos. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
[10]FORTINI, Cristiana; MOTTA, Fabrício. Corrupção nas licitações e contratações públicas: sinais de alerta segundo a Transparência Internacional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, nº 64, p. 93-113, abr./jun. 2016. p. 94.
[11]BERTOCCELLI, Rodrigo de Pinho. Compliance. In. Manual de Compliance. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 51.