A licitação, conforme se infere do art. 37, inc. XXI, da Constituição da República de 1988, é o expediente administrativo utilizado pelo Estado para selecionar particulares que desejam se relacionar comercialmente com o Poder Público no propósito de fornecer bens, prestar serviços, construir obras etc.
Conforme divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o impacto econômico das compras governamentais alcança 20% do Produto Interno Bruto (PIB). Diante do referido porcentual, não restam dúvidas de que o Estado comprador brasileiro, por meio da União federal, dos 26 Estados, Distrito Federal e dos 5.570 Municípios, apresenta-se como um grande consumidor, adquirindo bens, que vão desde objetos comuns e simplórios, como a aquisição de copos descartáveis e café, até objetos complexos, de alto valor agregado, estratégicos, a exemplo da compra de aviões de caça etc.
Acerca desta função estatal, ensina Manuel Garcia-Pelayo que o “Estado é, em todo o caso, o primeiro dos clientes do mercado nacional, exercendo, como sabemos, uma função redistributiva do produto mediante a transformação dos impostos e contribuições em bens e serviços sociais” (2009, p. 138).
Mesmo diante de um enorme volume de recursos públicos disponíveis, muitas empresas demonstram aversão quando são indagadas acerca dos motivos pelos quais não se relacionam comercialmente com o Poder Público, seja qual for o nível de governo. Como resposta, elencam diversas razões para justificar a distância do referido segmento, a exemplo da burocracia estatal; do direcionamento da licitação para determinado particular, por meio da fixação de regras editalícias que somente podem ser atendidas por um participante; da interpretação das regras do edital, durante a licitação, com excesso de rigorismo a fim de beneficiar determinado proponente; da revogação da licitação sem apresentação de um fato superveniente quando o vencedor não é o preferido do Poder Público; da inadimplência do Poder Público durante a execução do contrato; da intervenção do Tribunal de Contas competente com o escopo de modificar o valor da contratação, em razão da verificação de sobrepreço; da imposição de renegociação de contratos quando da troca de gestão administrativa; do regular pagamento em atraso sem o devido custeamento dos prejuízos do particular e da falta de critérios e respeito às regras existentes durante a condução de processos sancionatórios, expediente que se busca estudar neste artigo etc.
Diante destas circunstâncias, têm razão os muitos empresários que se afastam deste segmento de mercado, haja vista evitar colocar seu capital em risco, pois é patente a insegurança jurídica observada. Já em relação àqueles que se submetem a tais adversidades, aceita-se correr o perigo, o que é intrínseco das atividades empresariais.
Sendo assim, não há como negar que a insegurança jurídica verificada no âmbito das contratações públicas acaba por tornar tal segmento de mercado pouco atraente para a iniciativa privada, sendo essa uma das grandes razões para muitas empresas não acudirem ao chamado do Poder Público, para apresentar proposta para executar obras, prestar serviços ou fornecer os bens necessários para a Administração licitante perseguir os seus objetivos institucionais.
Acerca da segurança jurídica que deve ser garantida em todos os negócios, inclusive aqueles travados com a Administração Pública, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Professor Eros Grau, em seu voto concedido nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.685-8/DF, ensina, in verbis:
“Onde, quando nasce e para que serve a segurança jurídica? As considerações de WEBER são suficientes ao esclarecimento dessas questões: as exigências de calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica e na Administração constituem uma exigência vital do capitalismo racional; o capitalismo industrial depende da possibilidade de previsões seguras — deve poder contar com estabilidade, segurança e objetividade no funcionamento da ordem jurídica e no caráter racional e em princípio previsível das leis e da Administração. Pois o direito moderno presta-se precisamente a instalar o clima de segurança, em termos de previsibilidade de comportamentos, sem o qual a competição entre titulares de interesses em permanente oposição, no seio da sociedade civil, não fluiria plenamente” (2008).
Nesta toada, diante da importância da previsibilidade estatal no âmbito das contratações públicas, “a Lei nº 8.666 preocupou-se intensamente em consagrar regras sobre a disciplina licitatória, visando a reduzir a margem de indeterminação na aplicação concreta de seus dispositivos. A existência dessas regras é de vital importância para a segurança jurídica de todos os envolvidos.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 70)
É por tal razão que o atual Estatuto federal de Licitações e Contratos Administrativos assenta um exaustivo rol de procedimentos, objeto de tantas críticas, com o escopo de disciplinar, por meio de regras inflexíveis e detalhistas, a conduta do administrador público quando conduz o procedimento licitatório. Ante tal desiderato, a “licitação não é concorrência livre, mas aprisionada. Por mais que se tenha abrandado o regime jurídico do cárcere, ainda está presa numa cela de regras, que a isola da vida lá fora, isto é do mercado, no qual – e somente no qual – ocorre a verdadeira concorrência.” (BARROS, 1999, pp. 152/153)
Todavia, mesmo provido de pormenorizado regramento, a certeza do direito, fato que garante a possibilidade de realização de previsões seguras e objetivas do funcionamento da máquina estatal, não é garantida nas compras governamentais, uma vez ser comum a mudança de entendimentos e interpretações das normas legais no transcurso dos procedimentos afetos às contratações públicas, fato que gera, fatalmente, incertezas e receios e, por conseguinte, instabilidade nas relações jurídicas no âmbito deste segmento de mercado e que acarreta, consequentemente, o afastamento de parte do empresariado deste mercado.
Com efeito, a garantia aos participantes do certame licitatório de um regramento que assegure certeza e previsibilidade da atuação estatal, circunstância que gera confiança e certeza jurídica pelos interessados, são os elementos necessários para a iniciativa privada analisar e calcular os riscos de atuar neste segmento mercadológico, pois, diante da incerteza de retorno do capital e remuneração adequada (lucro), corre-se o risco de não ser acudido o chamado da Administração Pública, restando prejudicado o interesse público almejado com a colaboração particular.
Vislumbrada tal problemática e com o objetivo de corrigir a omissão observada na atual legislação licitatória, observa-se que no Projeto de Lei nº 1.292/1995, que atualmente encontra-se no Senado para discussão, avançou no tocante à efetividade do princípio da segurança jurídica no âmbito das contratações públicas.
Neste passo, observa-se que o princípio da segurança jurídica está previsto expressamente no art. 5º do referido projeto de lei, fato que veda ao administrador público, por exemplo, a mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. (DI PIETRO, 2009, p. 76)
Demais disto, com o objetivo de concretizar tal princípio, por exemplo, deverá o administrador público empreender esforços para garantir no edital e contrato as novas cláusulas necessárias que garantam a segurança jurídica, como, por exemplo, fixar no ato convocatório os critérios e a periodicidade da medição, quando for o caso, e o prazo para liquidação e para pagamento (art. 91, inc. VI, da propositura).
Outrossim, quando for o caso, deverá constar cláusulas editalícia e contratual definidoras de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadoras do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação (matriz de risco – art. 22, §2º, da propositura).
Ademais, deverá constar também no edital e contrato o prazo para resposta ao pedido de repactuação de preços e pedido de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, essencial para afastar a execução do objeto contratado sem a manutenção das condições efetivas da proposta comercial, o que acarreta prejuízo financeiro ao contratado (art. 91, inc. X, da propositura).
Outro ponto que merece destaque é a vedação da Administração contratante ensejar retardo imotivado da execução de obra ou serviço, ou de suas parcelas, inclusive na hipótese de posse do respectivo chefe do Poder Executivo ou de novo titular no órgão ou entidade contratante (art. 114, §2º, da propositura).
Demais disto, observa-se no art. 114 do referido projeto de lei que, nas contratações de obras, a expedição da ordem de serviço para execução de cada etapa seja obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada, sendo absolutamente impenhoráveis os valores depositados na referida conta.
Em sede de conclusão, observa-se que o princípio da segurança jurídica no âmbito das contratações públicas apresenta-se como imprescindível para gerar a confiança necessária e atrair parte da iniciativa privada descontente com a fragilidade dos regramentos existentes. Os exemplos acima colacionados provam tal assertiva.
Espera-se que tal regramento seja mantido, aperfeiçoado e ampliado
pelo Congresso Nacional, para que, efetivamente, se concretize o princípio da
segurança jurídica no âmbito das contratações públicas, traduzido em benefícios
não para os empresários e Administração, mas para toda a coletividade, pois a
ampliação de competidores pode gerar a obtenção de propostas mais vantajosas e,
consequentemente, menor ônus ao erário.
BIBLIOGRAFIA
BARROS, Sérgio Resende. Liberdade e contrato: a crise da licitação, 2. ed. Piracicaba, UNIMEP, 1999.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
GARCIA-PELAYO, Manuel. As transformações do estado contemporâneo. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012.